Sujeitas ou Sujeitadas? a Prostituição como Relação de Poder e de Trabalho

AutorJoão Felipe Zini Cavalcante de Oliveira; Pedro Augusto Gravatá Nicoli
Ocupação do AutorMestrando em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)/Professor Adjunto da Faculdade de Direito da UFMG e membro do corpo permanente de professores do Programa de Pós-Graduação em Direito da UFMG
Páginas163-197
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SUJEITAS OU SUJEITADAS? A PROSTITUIÇÃO COMO RELAÇÃO DE PODER
E DE TRABALHO
SUBJECT OR SUBJECTED? PROSTITUTION AS A RELATIONSHIP OF POWER AND
LABOR
João Felipe Zini Cavalcante de Oliveira
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Pedro Augusto Gravatá Nicoli
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RESUMO: O presente artigo busca discutir o modo como a prostituição é tratada pelo
Direito do Trabalho, sobretudo os motivos pelos quais ainda é considerada, pela maior parte
da doutrina e jurisprudência como trabalho ilícito. A prostituição é atividade antiga e já foi
vista pela sociedade das mais diversas maneiras. Havia um conceito de prostituição sagrada,
hospitaleira, benevolente, em contraposição àquela prestada por mulheres em cabarés, portos
e tabernas. Desde esse momento, pode-se perceber uma diferença de tratamento das
prostitutas pobres e negras (sobretudo em países marcados pela escravidão africana, como o
Brasil). O ocidente, com a ascensão da Igreja Cristã, reforçou o estigma contra prostitutas,
colocando-as enquanto pecadoras, desvirtuantes do próprio objetivo do que é ser mulher.
Assim, buscou-se analisar o discurso dado à prostituição na jurisprudência trabalhista
brasileira, tendo sido analisados 906 acórdãos sobre a questão, que foram separados e
classificados de acordo com o modo com que a temática foi abordada pelos magistrados.
Palavras-chave: Prostituição, sujeição, trabalho ilícito, estigmatização, reconhecimento.
ABSTRACT: This essay aims to discuss how prostitution is treated by labour law,
especially the reasons why it is still considered, by most doctrine and jurisprudence as illicit
work. Prostitution is an ancient activity and it has been seen by society in many ways. There
was a concept of sacred prostitution, hospitable, benevolent, an opposition to that provided
by women in cabarets, ports and taverns. From this moment, no one can see a difference in
the treatment of poor and black prostitutes (especially in countries marked by African
slavery, like Brazil). The West, with the rise of the Christian Church, has reinforced the
stigma against prostitutes, placing them as sinners, deviating from the very purpose of being
a woman. Thus, we sought to analyse the discourse given to prostitution in Brazilian labor
jurisprudence, to do so we analysed 906 judgments on the issue, which were separated and
classified according to the way it was approached by magistrates.
Keywords: Prostitution, subjection, illicit work, stigmatization, recognition.
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Mestrando em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Membro do Grupo de Pesquisa
“Trabalho e Resistências” da UFMG e do Programa de Extensão "Diverso UFMG- Núcleo Jurídico de
Diversidade Sexual e de Gênero" da Faculdade de Direito e Ciências do Estado da UFMG. Pesquisador na área
de Direito do Trabalho e Cidadania com foco nas relações de subordinação e sujeição de subjetividades
dissidentes. E-mail: niizufmg@hotmail.com
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Professor Adjunto da Faculdade de Direito da UFMG e membro do corpo permanente de professores do
Programa de Pós -Graduação em Direito da UFMG. É Doutor, Mest re e Bacharel em Direito pela UFMG. É
coordenador do Grupo de Pesquisa “Trabalho e Resistências” da UFMG, bem como do Diverso UFMG -
Núcleo Jurídico de Diversidade Sexual e de Gênero. Desenvolve pesquisas em Direito do Trabalho, Direito
Social, Direito Internacional do Trabalho e Direitos Humanos. E-mail: pedrogravata@gmail.com
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INTRODUÇÃO
Quando falamos de prostituição estamos pisando em terreno arenoso, onde qualquer
passo em falso pode representar a manutenção de um mecanismo de opressão. Qualquer
palavra dita de maneira equivocada ou disposta de maneira infeliz pode acabar por subverter
a intenção inicial. Foi pensando nisso que este trabalho foi escrito de maneira mais didática,
explorando um universo de cada vez, a fim de deixar o terreno mais firme e preparado para
as discussões jurídicas necessárias.
Desta forma, objetivando revelar as diferentes realidades de subordinação – e
sujeição – de trabalhadoras e trabalhadores, o primeiro tópico se debruçará sobre esses
conceitos, subsumindo a vivência de prostitutas num contexto de trabalho precário. A
prostituição, por si só, é responsável pela desconsideração da vida dessas mulheres, que são
vistas pela sociedade em geral como seres vivos que não têm vida, propriamente dita. Elas
não são consideradas para fora do ambiente e do gueto em que estão inseridas. Tal
desconsideração leva à naturalização dos casos de violência contra essas profissionais, sejam
elas físicas, psicológicas ou jurídicas.
O processo de sujeição pelo qual passam as prostitutas deve, ainda, ser encarado sob
o aspecto corporal, tendo o próprio corpo como pivô de sua representação no mundo e seu
avatar de performatividade. É o corpo que frequentemente sofre as agressões e é ele quem
representa a primeira marca de estigmatização de um ser. Desse modo, o corpo não é apenas
um signo de culpa e transgressão – a corporificação da proibição, e suas consecutivas
sanções, advinda da norma social – mas também é formado pela matriz discursiva que cerca
o conceito de sujeito de direito.
Ser prostituta acaba reverberando uma matriz sexista que tem na mulher a imagem
de um objeto a ser utilizado na cama, sendo este um de seus principais (se não o principal)
“serviços” prestados ao homem, que, por sua vez, a “presenteia” ou sustenta. O ato de servir
pressupõe a existência de um senhor, de uma sujeição, que não apenas está presente na
prostituição, mas em inúmeros outros institutos inerentes à figura feminina.
Percebe-se, assim, que a profissional do sexo está inserida em um contexto de
exploração de sua liberdade sexual. É ele quem se objetiva proteger por meio dos crimes de
lenocínio e exploração sexual.
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Realizou-se, ainda, extensa análise jurisprudencial acerca da prostituição, abarcando
não apenas casos em que se buscava o reconhecimento do vínculo empregatício de
prostitutas, mas também situações em que a prostituição figurava no processo apesar de não
ser o ponto principal. Nesse sentido, foram analisados 906 acórdãos, cujos comentários serão
tecidos no quarto tópico deste trabalho.
1. PODER E SUJEIÇÃO: UMA ANÁLISE A PARTIR DA REALIDADE DE
PROSTITUTAS
Prostitutas destoam do socialmente presumido – e aceito – a partir do momento em
que desempenham suas atividades e/ou agem de maneira que o público em geral associa à
venda de sexo. Elas enfrentam desde cedo a fúria de uma sociedade religiosa, machista e
conservadora, perpassando ambientes domésticos, familiares, escolares e, fatalmente,
profissionais – objeto de análise do presente trabalho.
Para que se possa iniciar devidamente o estudo da relação conturbada existente entre
o Direito do Trabalho e a prostituição, é necessário que analisemos a temática que a envolve:
as estruturas em que se baseia a própria noção de poder; a construção de uma realidade de
sujeição do indivíduo (sobretudo da prostituta); as particularidades que permeiam esse
público específico e, finalmente, as suas influências da estigmatização dessas profissionais
sobre a prática trabalhista que lhe nega reconhecimento.
Vale dizer, a título de introdução, que a maioria (senão a totalidade) das relações
humanas possuem, intersticialmente, vínculos de poder, legitimados ou não
299
. Debruçar-se-
á sobre a análise da (suposta) legitimidade que alguém (empregador) tem para dar ordens a
outrem (empregado), focando a realidade enfrentada por prostitutas no desempenho de sua
profissão.
Os estudos e propostas acerca da referida população, contudo, vêm enfrentando
grandes dificuldades de aceitação na ciência jurídica em razão do tabu que a circunda. Nesse
sentido, uma teoria que se reclame crítica e transformadora deve reconhecer o caráter
ideológico
300
do isolamento do Direito e da norma positiva como objeto da ciência jurídica.
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FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: a vontade de saber. Tradução de Maria Thereza da Costa
Albuquerque e J.A. Guilhon Albuquerque. 13. ed. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1988. p. 89.
300
“Ideologia é justamente a forma de pensamento que, correspondendo aos interesses da classe dominante,
tende a manter a posição social de uma classe mediante a conservação do status quo”. COELHO, Luiz
Fernando. Saudade do futuro: transmodernidade, direito e utopia. 2ª ed. Curitiba: Juruá, 2007, p. 198.

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