Sujeitos do Delito

AutorFernando de Almeida Pedroso
Ocupação do AutorMembro do Ministério Público do Estado de São Paulo. Professor de Direito Penal. Membro da Academia Taubateana de Letras
Páginas133-154

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4.1. Sujeito ativo

Sujeito ativo ou agente do delito é aquele a quem coube o implemento físico da ação incriminada. É a pessoa que realiza o núcleo do tipo. É o autor da conduta punível233.

É evidente que apenas a pessoa física ou natural (o ser humano considerado como indivíduo) possui capacidade delitiva. Somente ela (a pessoa física ou natural) pode figurar na posição de agente do crime.

As pessoas jurídicas ou coletivas carecem dessa aptidão, pois lhes falta, pela sua própria estrutura e essência ontológica, a capacidade delinquencial.

Efetivamente.

Os entes coletivos ostentam personalidade jurídica por mera ficção legal. Representam corpos sociais voltados ao cumprimento de certa finalidade. Não obedecem a um impulso próprio de vontade. Esta é característica do homem, do ser dotado de razão e raciocínio. Como pontifica Ferrara, é navegar a plenas velas no mar da fantasia aludir à vontade de um ente coletivo234.

Exatamente pela falta de substrato anímico e de vontade própria direcionada, pressupostos da anatomia e arquitetura da ação típica, é insofismável que as pessoas jurídicas não têm condições para figurar como agentes de condutas puníveis. Elas não apresentam, portanto, os requisitos necessários para a prática de ação com conteúdo penalmente relevante.

Por tal razão, societas delinquere non potest.

Não alterou este panorama jurídico, sob a ótica da capacidade delinquencial, a Lei n. 9.605, de 12 de fevereiro de 1998, que dispõe sobre as sanções a condutas e

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atividades lesivas ao meio ambiente, ao editar, em seu art. 3º, de maneira surrealista, que as pessoas jurídicas também são penalmente responsáveis pelos delitos incrustados no referido diploma legal.

Os legisladores, representantes do povo incumbidos da árdua tarefa de elaboração das leis, muitos deles - senão a maioria - sequer bacharéis em Direito, enclausurados em seus gabinetes e alheios à realidade jurídica, têm feito e engendrado - não raras vezes - normas que desprezam e afrontam todo um pensamento jurídico já sedimentado na doutrina e consolidado na jurisprudência, fazendo surgir dispositivos legais divorciados de comezinhos princípios adrede estabelecidos.

Infelizmente, foi o que sucedeu com o diploma legal supramencionado, que ousou incluir, no registro de Miguel Reale Júnior, entre diversas outras monstruosidades jurídicas que consagrou e o renomado penalista apontou, uma pretensa responsabilidade penal para as pessoas coletivas235, levando, na observação de José Carlos de Oliveira Robaldo, o Direito Penal na contramão da história236.

Lei que deixa de apresentar congruência e adequação com os princípios jurídicos que moldam todo um sistema está destinada a se tornar letra morta, a cair no vazio e projetar-se para ângulo sombrio. A lei não pode tudo, senão aquilo que se fizer juridicamente plausível pelos princípios que norteiam o direito. A lei não tem poder absoluto e não se concebe possa ser onipotente.

Como escreveu Luiz Vicente Cernicchiaro ao abordar o tema da responsabilidade penal da pessoa jurídica, o instituto jurídico não se caracteriza pelo batismo do legislador, importando, sim, o contexto de princípios que o disciplina237.

Por conseguinte, as sanções impostas às pessoas jurídicas na legislação citada, em seu art. 21, ainda que sob o rótulo equivocado e errôneo de penas restritivas de direitos e prestação de serviços à comunidade, juntamente com a pecuniária, não passam de sanções de índole administrativa, como acontecia com o antigo art. 99 do CP (revogado pela Lei n. 7.209/1984 e substituído por outro dispositivo) que previa como medida de segurança de natureza administrativa e patrimonial a interdição de estabelecimentos comerciais ou industriais ou de sede de sociedade ou associação, se serviam de meio ou pretexto para a prática de infração penal.

O que se tem na atualidade, pois, não é a criação duma responsabilidade penal para os entes coletivos, o que constituiria verdadeira heresia jurídica, postura legal contrastante e antinômica com a estrutura dogmática do Direito Penal. Há, isto sim, possivelmente na senda da sugestão de Hassemer238, um direito de intervenção, um meio-termo entre

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o Direito Penal e o Administrativo. Aplicar o Direito Penal às pessoas jurídicas, na verdade, é fazer aplicação de princípios de outra área jurídica239.

Ademais, na correta ponderação de Oswaldo Henrique Duek Marques, atribuir a autoria de uma infração penal à pessoa jurídica por fato de terceiro constituirá retorno à responsabilidade objetiva e coletiva, oriunda de uma época totêmica na qual os clãs primitivos atuavam como um todo, solidários na ação e na responsabilidade. As sanções atingirão todos os integrantes da entidade e, acrescentamos, igualmente terceiros (verbi gratia: acionistas, credores, funcionários), tenham ou não participação no crime, atitude que violará o princípio da personalidade da pena240e até poderá deixar incólume o próprio autor do delito.

Assim, a máxima societas delinquere non potest permanece viva, pois a simples inserção de palavras em um papel, como se procedeu na citada lei, não pode ter o condão de alterar, sem qualquer embasamento, uma realidade jurídica totalmente consolidada.

Como realçou Clóvis Beviláqua, as pessoas jurídicas são realidades do direito, porém não são realidades fisiopsíquicas: não podem agir por si, como as pessoas naturais, pois necessitam de órgãos, para a sua vida de relação, que são os seus representantes, diretores e gerentes241. Possível é, entretanto, que os membros da pessoa coletiva dela se valham para o cometimento de fatos contemplados na lei com perfil criminoso. Nesse caso, a pessoa jurídica será instrumento ou meio para a consecução do ilícito. Mas a ação criminosa é dirigida pelos atos e pela vontade das pessoas físicas que a constituíram, a estes integrantes sendo atribuível o crime.

Nessa conjuntura, quando se constatar que os dirigentes de empresas valeram-se delas para o cometimento de fatos típicos, ambos serão punidos: aqueles, penalmente, como autores de crimes, e estas, administrativamente, com as penalidades previstas no diploma legal citado.

Consequentemente, a punição dos entes coletivos somente poderá verificar-se - no âmbito penal - de forma reflexa ou oblíqua, ou seja, de forma acessória, depois de apurada a responsabilidade penal dos sócios que delinquiram: um consectário da condenação destes. Jamais, segundo pensamos, terá lugar a instauração de processo penal direta e imediatamente contra a pessoa jurídica, sem a prévia identificação dos membros que por intermédio dela delinquiram, o que sói acontecer - para fins exclusivamente administrativos - em esfera própria, alheia ao setor penal. Como bem pontuou o Colendo STJ, apenas terá cabimento ação penal aforada em desfavor de pessoa jurídica se a imputação for conjunta com a da pessoa física que atuou em seu nome, decorrência da teoria da imputação dupla ou simultânea242, igualmente denominada princípio da responsabilidade por ricochete ou por empréstimo.

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Em apertada síntese:

"Não se pode compreender a responsabilização do ente moral dissociada da atuação de uma pessoa física, que age com elemento subjetivo próprio" (STJ, REsp. n. 564.960

- SC, rel. Min. Gilson Dipp, 5ª T, DJU de 13.06.2005).

Cumpre lembrar, sobretudo, que a responsabilidade penal é eminentemente subjetiva e apresenta conotação personalíssima. Desta sorte, a simples responsabilidade de pessoa jurídica por eventos danosos inscritos na lei penal não acarreta, quod plerumque accidit, diretamente, a responsabilidade penal de seus diretores, gerentes ou sócios. É imperioso demonstrar, nesse caso, a efetiva participação destes para o sucesso criminoso. Não basta, pois, "que alguém seja sócio ou diretor de uma empresa para responder criminalmente por ato penalmente típico praticado no exercício de atividades da mesma" (RT. 612/319)243.

O mesmo sucede com os animais irracionais. Seres desprovidos de razão e raciocínio, agem apenas movidos pelo instinto, sem qualquer vontade própria a dirigi-los. Por via de consequência, no ataque de animais, ante a inexistência de vontade direcionada, não há ação com contornos típicos.

Os animais, no entanto, podem servir de instrumentos do delito, quando a vontade do homem - que sobre eles tenha poder de comando e domínio - os dirige ao ataque, como, verbi gratia, na hipótese de cão bravio ser instigado e açulado contra outrem: quem incitou o cachorro a avançar será o sujeito ativo do fato delituoso, pela sujeição do acontecimento à sua vontade.

Em suma: unicamente o ser humano possui capacidade delitiva. Falta às pessoas jurídicas e animais irracionais vontade própria, razão pela qual não podem externar uma ação típica e são incapazes de culpabilidade.

Fala-se, ainda, em partícipe, copartícipe ou coautor. Este realiza juntamente com o autor atos de conotação típica imediata. Aqueles figuram no contexto do crime como cúmplices ou comparsas: na posição de extraneus concorrem e colaboram, de qualquer forma, com o autor principal (sujeito ativo) para a concreção do núcleo do tipo (v. n. 21.2).

4.2. Crimes comuns, especiais e de mão própria

Recebe a designação comum tudo que concerne à generalidade das pessoas, aquilo que a todos se estende e abrange, sem distinção.

Nesta vertente, delito comum é o ilícito penal que, ao atender à capacidade delitiva, não exige, para a concreção do núcleo típico, qualquer condição especial do sujeito ativo. O tipo se coloca em posição desinteressada a respeito de quem pratica a ação típica. Qualquer pessoa que perpetrar a conduta incriminada figurará como agente do

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crime, pouco importando sua qualidade, condição ou categoria pessoal. É indiferente à subsunção típica a quem coube o implemento físico da...

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