Súmulas, Crise e Ordem Constitucional: alguns elementos para debate

AutorValdete Souto Severo
Páginas166-172

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Valdete Souto Severo *

O TRT da Quarta Região já ultrapassou a marca de cem súmulas editadas. Apenas este ano, foram 28 novas súmulas, além de outras alteradas e de duas “teses jurídicas prevalecentes”. A aceleração na construção de entendimentos cristalizados, sem dúvida, tem relação com a alteração promovida em 2014, no art. 896 da CLT, notadamente no seu parágrafo terceiro, quando determina que os Tribunais Regionais uniformizem sua jurisprudência e apliquem o incidente de uniformização de jurisprudência previsto no novo CPC.

Os reflexos dessa atividade legislativa do Poder Judiciário sequer podem ser completamente dimensionados e certamente ainda serão aprofundados, mas já é possível propor algumas reflexões. A primeira delas é a de que estamos alterando drasticamente a forma de produzir o Direito. Há uma quebra evidente do equilíbrio entre os poderes da República, algo que não se limita à realidade regional, porque se verifica igualmente em nível nacional, com o processo de cristalização de entendimentos empreendido pelo TST (que já tem 462 súmulas no total, sem contar as orientações jurisprudenciais) e pelo STF, se considerarmos apenas a seara trabalhista.

As súmulas mais recentemente editadas pelo TRT da Quarta Região (TRT4) fornecem um material interessante de análise. A Súmula n. 97 estabelece que “o pagamento da remuneração relativa às férias fora do prazo legal resulta na incidência da dobra, excluído o terço constitucional quando este for pago tempestivamente”. Se olharmos para a Constituição, encontraremos no artigo sétimo, o inciso XVII, que afirma ser direito constitucional dos trabalhadores a “gozo de férias anuais remuneradas com, pelo menos, um terço a mais do que o salário normal”. Ou seja, férias significa tempo de descanso com remuneração correspondente a salário acrescido de 1/3. Na CLT, a regra do art. 137 é a de que “sempre que as férias forem concedidas após o prazo de que trata o art. 134, o empregador pagará em dobro a respectiva remuneração”. Qual remuneração? Salário acrescido de 1/3. Pois bem, a Súmula n. 97 autoriza que o acréscimo de 1/3 não componha o cálculo da dobra, criando inter-pretação restritiva que, na realidade fática, implicará

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a supressão de parte do valor devido ao trabalhador. A “dobra” do salário, que é o que a Súmula n. 97 do TRT4 diz que deve ser pago, não constitui dobra da remuneração correspondente às férias, já que a remuneração relativa às férias é igual ao salário acrescido de 1/3. Então, se suprimimos o acréscimo de 1/3, não estaremos mais remunerando o descanso anual devido, mas apenas pagando salário. A compreensão de que o pagamento do dobro da remuneração correspondente às férias, não abrange parte da rubrica que lhe corresponde, é ainda contrária ao entendimento cristalizado pelo TST na Súmula n. 450, segundo a qual “é devido o pagamento em dobro da remuneração de férias, incluído o terço constitucional, com base no art. 137 da CLT, quando, ainda que gozadas na época própria, o empregador tenha descumprido o prazo previsto no art. 145 do mesmo diploma legal”.

A Súmula n. 98 fixa que “o empregado faz jus à indenização correspondente aos gastos realizados com a lavagem do uniforme quando esta necessitar de produtos ou procedimentos diferenciados em relação às roupas de uso comum”. Qual é a base legal para essa restrição à regra do artigo segundo da CLT, pela qual os riscos e, portanto, o ônus do empreendimento deve ser suportado pelo empregador? Note-se que a orientação cristalizada parte do pressuposto de que os gastos com lavagem de uniforme devem ser suportados pelo empregador, mas cria condição para isso. Essa condição fixada pelo TRT não está estabelecida na legislação trabalhista.

A Súmula n. 99 estabelece que “a recusa injustificada da empregada gestante à proposta de retorno ao trabalho afasta o direito à indenização do período da garantia de emprego prevista no art. 10, inciso II, alínea b, do ADCT, a partir da recusa”. Ora, porque a gestante despedida de modo ilegal e inconstitucional, precisa justificar sua recusa ao trabalho, se sequer ao empregador, malgrado a disposição expressa do inciso I do artigo sétimo da Constituição, exige-se justificativa para o ato de dispensa? E mais: qual é a norma jurídica que permite essa restrição ao direito fundamental de garantia no emprego, estabelecido no referido artigo sétimo, I, e no art. 10 dos Atos das Disposições Constitucionais Transitórias? E ainda mais: o que fazer com a norma expressa do art. 496 da CLT, cuja aplicação por analogia é o parâmetro que a legislação trabalhista nos oferece para resolver situação como aquela descrita pela súmula? Esse dispositivo estabelece que “quando a reintegração do empregado estável for desaconselhável, dado o grau de incompatibilidade resultante do dissídio, especialmente quando for o empregador pessoa física, o tribunal do trabalho poderá converter aquela obrigação em indenização devida nos termos do artigo seguinte”. A Lei n. 9.029, quando trata de despedida discriminatória, utiliza o mesmo critério. A Convenção n. 158 da OIT, cuja utilização, apesar de sua denúncia por decreto ainda sujeito à análise na ADI n. 1625, já foi chancelada pelo TST no caso EMBRAER, também dá a mesma solução: sendo inviável a reintegração, deve o empregado receber o valor que corresponde ao período de garantia no emprego. Note-se: não se trata de concordar ou não com a afirmação contida na referida súmula. Trata-se de examinar a sua compatibilidade com o ordenamento jurídico trabalhista vigente, para o efeito de discutir, seriamente, as consequências desse apartamento entre o que dispõem as normas jurídicas e o que está sendo decretado pelas súmulas de nossos tribunais.

Seguindo a leitura das últimas súmulas editadas pelo TRT4, temos ainda a determinação de que “havendo condenação solidária ou subsidiária, o recolhimento das custas processuais por um dos recorrentes aproveita aos demais, independentemente de aquele que efetuou o recolhimento pedir a exclusão da lide” (Súmula n. 102). Isso, apesar da dicção expressa do art. 789, parágrafo primeiro, da CLT. Aliás, até mesmo o CPC, cuja aplicação aqui não seria de se cogitar, pois ausente omissão, dispõe que “concorrendo diversos autores ou diversos réus, os vencidos respondem proporcionalmente pelas despesas e pelos honorários”, devendo a sentença “distribuir entre os litisconsortes, de forma expressa, a responsabilidade proporcional pelo pagamento das verbas previstas no caput” e, se nada dispuser a sentença, diz o parágrafo segundo desse art. 87, “os vencidos responderão solidariamente pelas despesas e pelos honorários”. Parece haver uma tendência, que está bem representada pelo teor da Súmula n. 331 do TST, em proteger os interesses da tomadora, criando em seu favor “direitos” que não estão previstos na legislação trabalhista. Além do direito de não recolher custas, instituído pela Súmula n. 102 do TRT4, temos em âmbito nacional a criação, pela referida Súmula n. 331, dos direitos de figurar no polo passivo da reclamatória desde o início (apesar do texto expresso do art. 4º da LEF que autoriza promoção de execução contra o responsável); de fruir o benefício de ordem da denominada responsabilidade...

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