As súmulas dos tribunais administrativos e os limites de sua obrigatoriedade por seus órgãos julgadores

AutorFernando L. Lobo D'eça
CargoAdvogado Tributarista em São Paulo
Páginas67-88

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I - Introdução

As recentes modificações do Regimento Interno dos Conselhos de Contribuintes, para a introdução da obrigatoriedade de observância de Súmulas de Jurisprudência nos julgamentos de suas Câmaras, e da conseqüente possibilidade de indeferimento de recursos administrativos por mero despacho de Presidentes de Câmaras, quando contrariem Súmula em vigor, evocam uma reflexão sobre os limites de autotutela exercida por aqueles órgãos administrativos bem como, sobre a liberdade e independência dos julgadores administrativos na análise dos recursos que lhes são submetidos à apreciação.

Embora não se possam ignorar os inegáveis benefícios da instituição de Sú-mulas como técnica de sumarização dos julgamentos dos Tribunais e referência oficial aos precedentes jurisprudenciais nela compendiados, conferindo maior estabilidade à jurisprudência predominante nos Tribunais e assim possibilitando maior celeridade dos julgamentos e evitando que sejam contraditórios, não se pode esquecer das intransponíveis limitações das Súmulas como fonte de direito e das indesejáveis interferências na liberdade, independência e imparcialidade dos julgadores, que não só podem comprometer a realização da justiça no caso concreto, neutralizando as virtudes da autotutela1 dos atos administra-

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tivos, que obviamente não deve desbordar em instrumento de arbítrio do Poder Público na imposição de seu entendimento.

Realmente, não se pode perder de vista que, a par de possibilitar maior eficácia e controle de decisões, que propicia o aperfeiçoamento e evita a corrupção dos órgãos públicos, a autotutela dos atos administrativos e os recursos a ela inerentes, não são instituídos somente no interesse dos administrados, mas principalmente no interesse e aperfeiçoamento da própria Administração,2 no chamado autocontrole da legalidade dos atos administrativos, evitando assim que a Fazenda Pública se apresente perante o Poder Judiciário, como autora ou como ré, lastreada em atos ou títulos eivados de ilegalidade, irregularidade e, portanto, ilíquidos, incertos e inexigíveis, com todas as funestas conseqüências jurídicas da sucumbência judicial.

Daí a necessidade de uma reflexão mais acurada sobre os limites de atuação dos julgadores administrativos de modo a compatibilizar os vários interesses em disputa, de um lado assegurando as necessidades de controle, eficiência e eficácia das decisões administrativas, e de outro assegurando as imprescindíveis independência e imparcialidade na atuação dos julgadores administrativos, assim proporcionando rapidez, segurança e qualidade na solução pacífica dos conflitos submetidos à instância administrativa. Vejamos quais são estes limites.

II - Os limites jurisdicionais dos Tribunais Administrativos e seus órgãos julgadores: os princípios da independência, da imparcialidade e da livre convicção motivada

É elementar e nos lembra Themísto-cles Brandão Cavalcante, que "um dos deveres primordiais do Estado é garantir o exercício de todos os direitos individuais”3 de modo a propiciar um equilíbrio e um tratamento equânime entre as pessoas (físicas e jurídicas) em suas relações jurídicas, sociais e econômicas, principalmente no exercício dos Direitos que a própria Constituição assegura aos cidadãos.

Nessa ordem de idéias, Castro Nunes4 há muito já esclarecia que "o conceito de

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jurisdição é de direito público", mas "não se confina nas estreitezas do direito judiciário", vez que "as vias judiciárias não esgotam a função jurisdicional”, porquanto "do ponto de vista material, o ato juris-dicional tanto pode ser praticado por um funcionário ou agente do poder público, como por um magistrado", donde decorre que o "contencioso administrativo ou, mais corretamente matéria contenciosa administrativa, existe mesmo nos Estados onde não haja jurisdição administrativa organizada como via paralela às vias judiciárias", sendo certo que "a autoridade que decide por aplicação da norma legal invocada como fundamento do direito reclamado pratica necessariamente um ato de jurisdição, na acepção material desta palavra".

Distinguindo claramente as ativida-des exercidas pelo Poder Judiciário, das exercidas pelo Poder Executivo, a melhor Doutrina5 acentua que a denominada "jurisdição administrativa é considerada apenas uma faculdade jurisdicional do poder administrativo, e não um desmembramento da jurisdição judicial", razão pela qual "os tribunais administrativos são órgãos jurisdicionais, por meio dos quais o Poder Executivo impõe à administração respeito ao direito", consubstanciando "apenas uma das formas por meio das quais se exerce a autoridade administrativa" e, portan-to "são parte integrante do sistema da administração julgando os seus próprios atos" donde resulta que "as decisões das instâncias administrativas coletivas estão sujeitas à apreciação judicial, podendo o Judiciário comum, considerar tais decisões como verdadeiros atos administrativos".

Em suma, na sempre atual lição do saudoso Francisco Campos, é inquestionável que "a Administração quando aplica a Lei, ou estabelece que se verificaram as condições de fato para a sua aplicação, exerce uma função jurisdicional ou em todos os pontos análoga ou idêntica à função judicial. A identidade será completa na hipótese em que a Lei prescreva à Administração um processo contraditório, ou do qual participem os interessados, isto é, um processo de natureza judicial"6

O caráter jurisdicional das decisões administrativas exaradas em processos contenciosos de natureza fiscal não somente é matéria há muito pacificada na Doutrina,7 como está reconhecido no Código Tributário Nacional, que em seu art. 100, inc. II, expressamente se refere às "decisões de órgãos singulares ou coleti-vos de jurisdição administrativa".

Ao tratar das características dos tribunais administrativos paritários (Balanced Tribunals) e de seus integrantes, por meio dos quais se exerce a jurisdição administrativa nos Estados Unidos e na Inglaterra, os ilustres administrativistas Bernard Schwartz e H. W. R. Wade, acentuam que:

"A característica dos tribunais é determinada pelo tipo de pessoas que prestam serviço neles. Embora haja exceções a quase todas as regras gerais que se possam estabelecer, há alguns princípios imposter-gáveis.

"Imparcialidade.

"O primeiro e mais importante repousa na imparcialidade. Os tribunais são integrados por pessoas independentes, não

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por funcionários do governo. Sua jurisdição lhes é dada por ato do Parlamento e é axiomático que eles não estão sujeitos a ordens e influências externas de nenhuma espécie. Qualquer tentativa de um ministério de intervir tornará a decisão legalmente inválida, (...). De fato, está plenamente reconhecido pelo governo, assim como por todos, que os tribunais estão inseridos no princípio de independência do judiciário e que qualquer tentativa de influenciar suas decisões seria totalmente imprópria.

"Tribunais paritários (Balanced Tribunals).

"A grande maioria dos tribunais são integrados por cidadãos privados servindo meio período (part time). (...). Da mesma forma como os jurados administrando o direito criminal precisam ser representantes de todas as classes da sociedade, esses tribunais devem adequadamente representar divergentes interesses sociais e econômicos."8

Entre nós, conceituando a relação jurídica dos integrantes dos diversos tribunais administrativos de composição paritária, como é o caso dos Conselhos de Contribuintes, Hely Lopes Meirelles ensina que se trata de:

"Agentes honoríficos: são cidadãos convocados, designados ou nomeados para prestar, transitoriamente, determinados serviços ao Estado, em razão de sua condição cívica, de sua honorabilidade ou de sua notória capacidade profissional, mas sem qualquer vínculo empregatício ou estatutário e, normalmente, sem remuneração. Tais serviços constituem o chamado múnus público, ou serviços públicos relevantes, de que são exemplos a função de jurado, de me-sário eleitoral, de comissário de menores, de presidente ou membro de comissão de estudo ou de julgamento e outros dessa natureza.

"Os agentes honoríficos não são servidores públicos, mas momentaneamente exercem uma função pública e, enquanto a desempenham, sujeitam-se à hierarquia e disciplina do órgão a que estão servindo, podendo perceber umpro labore e contar o período de trabalho como de serviço público. Sobre estes agentes eventuais do Poder Público não incidem as proibições constitucionais de acumulação de cargos, funções ou empregos (art. 37, XVI e XVII), porque sua vinculação com o Estado é sempre transitória e a título de colaboração cívica, sem caráter empregatício. A Lei 9.608, de 18.2.1998, dispondo sobre o serviço voluntário, define-o como a atividade não remunerada prestada por pessoa física a entidade púbica de qualquer natureza ou instituição privada sem fins lucrativos com objetivos cívicos, culturais, educacionais, científicos, recreativos ou de assistência social, inclusive mutualidade. Tal serviço não gera vínculo empregatício, nem obrigações de natureza trabalhista, previden-ciária ou afim entre prestador e tomador. A lei permite o ressarcimento das despesas comprovadamente realizadas pelo prestador, desde que estejam autorizadas pela entidade a que for prestado o serviço voluntário. Somente para fins penais é que...

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