A supranacionalidade do direito no mercado de capitais

AutorBruno Pierin Furiati
Páginas152-163

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1. Introdução

Os efeitos da globalização no mercado de capitais são notórios, ao mesmo tempo em que a hipercomplexidade do mundo estabelece dilemas que nele interferem di-retamente. As consolidações recentes do mercado, em seu dinamismo, na atuação dos agentes e na constante troca de informações, cada vez mais se apresentam como ineficientes a fim de diminuir a pressão seletiva frente à sociedade heterárqui-ca, num ciclo de regulamentação e desre-gulamentação que apenas muda de sentido a cada crise, ao mesmo tempo em que se torna global.

A simples transposição de um direito supranacional traz conseqüências sobre sua efetiva legitimação como tal. Afinal, um direito supranacional não pode ser concebido fora do âmbito democrático.

Partindo desses pontos, buscar-se-á abordar, de maneira direta, como o mercado de capitais foi afetado ao longo da história pelo internacionalismo e pelo direito comercial, para, em seguida, traçar os paralelos de duas das mais importantes teorias do direito supranacional, quais sejam: a teoria da argumentação de Habermas e a teoria dos sistemas como defendida, sobretudo, por Teubner.

Isso permitirá que na abordagem do direito do mercado de capitais possa ser feita uma análise crítica sobre a real importância e necessidade de conceituação do direito do mercado de capitais sob prisma global.

2. O mercado de capitais e a globalização

O efeito global da economia e do direito mercantil existe desde seus primórdios. Provavelmente tal afirmação tenha, para muitos, um significado altamente vago e impreciso, tendo em vista que o conceito de globalização somente veio a surgir no fim do século XX. Porém, o entendimento do termo "global" deve servis-to como a extensão do mundo na forma como o homem, ao longo da História, o conheceu. A ampliação do horizonte do comércio se deu na mesma medida que o ser humano estendeu suas fronteiras.

Nesse caso, porém, para uma melhor análise, a compreensão do "efeito 'global'"

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deve ser feita sob a ótica da revolução comercial, pós-Idade Média, evitando-se, assim, generalizações. Diante disso, é justamente nessa época que a figura do comerciante, como profissional, irá surgir, constituindo sob a forma autônoma o direito comercial, e com ele o "mercantilismo".1

Dessa mesma forma, a interpretação do argumento não deve ser feita da forma como a globalização é vista atualmente, vinculada a uma "maior integração econômica dos Países do mundo por meio do aumento do fluxo de bens e serviços, capitais e até mão-de-obra",2 mas por meio da circulação de riquezas entre povos e Nações e seus efeitos e conseqüências. Nesse contexto, empresta-se a expressão de Marcelo Neves, em que "a sociedade mundial significa, em princípio, que o horizonte das comunicações ultrapassa as fronteiras territoriais do Estado".3 Notem-se: o modo como o mercado bancário e de capitais foi criado e expandido; o histórico das crises financeiras; e a forma e extensão da lex mercatoria, ainda que sob a roupagem da "nova" lex mercatoria, que, mesmo com suas alterações conceituais ao logo do tempo, ainda está viva no cenário do direito global.

2. 1 Mercado bancário e de capitais

Os primeiros bancos4 foram criados durante o Império Romano. Porém, com o declínio desse, principalmente, em razão da restrição do comércio e de práticas religiosas contra a usura, praticamente deixaram de existir, ressurgindo, após a Idade Média, com a Renascença. Nesse sentido, segundo Galbraith, "tanto o seu declínio quanto o seu renascimento ocorreram na Itália; nenhum banqueiro, desde essa época, nem mesmo os Rothschilds ou J. Pier-point Morgan conseguiram igualar os Me-dicis, em grandiosidade (...). As casas bancárias de Veneza e Gênova são as precursoras reconhecidas dos bancos comerciais modernos regulares".5

Antes dos bancos de emissão, outros institutos de grande inovação foram fundamentais para o início do desenvolvimento do direito mercantil. Dentre esses, a ob-jetivação do crédito (criação dos títulos de crédito)6 e a autonomia dos direitos cartu-lares, o que significou a "coisificação" do crédito e, por conseguinte, a possibilidade de transmissão dos títulos, o que acelerou a circulação de riquezas. Aponta Alfredo Lamy que, "para prevenir-se nas longas viagens que fazia em busca das feiras ou dos locais de negociar, [o comerciante] depositava seus recursos num estabelecimento com filiais e dele recebia um papel com a ordem a seu correspondente no local de destino para pagar ao portador o montante recebido: era a 'letra de câmbio', ou uma

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promessa de pagamento (nota promissória)".7

O título de crédito, originalmente criado para trazer maior segurança nas transações comerciais - já que o comerciante não corria risco de saque em suas viagens -, acabou por culminar no aparecimento dos bancos e das primeiras companhias. Essas emitiam quotas transmissíveis a investidores para que estes participassem como sócios de aventureiros colonizadores do "Novo Mundo".

Da mesma maneira, a internacionalização sempre foi um atributo inerente ao mercado de capitais. Desde seu nascimento, com a emissão de ações pela Cia. das Índias e da Cia. Mares do Sul, na medida em que tais Companhias angariavam recursos provenientes de investidores por meio da emissão de ações com o objetivo de se aventurar pelo mundo ainda inexplorado. Frise-se que, durante a expansão do mundo, conjugada com o desejo de explorar terras recentemente conquistadas, aventureiros precisavam de recursos para suas atividades, e para tanto foram buscar nas cidades, junto a comerciantes e nobres.

Todavia, até aquele momento não havia uma regulação efetiva sobre o mercado de ações, de forma a evitar fraudes ou especulações. Justamente esses dois fato-res é que marcaram o início das emissões de ações.

2. 2 Crises financeiras

Apesar de a crise mais citada ser provavelmente a depressão norte-americana de 1929, a primeira crise internacional de que se tem notícia ocorreu em 1720,8 "coincidentemente" com as primeiras emissões de ações, com as bolhas da "Mares do Sul" e da "Mississipi".9 A Cia. do Mississipi (Compaignie d'Occident), posteriormente denominada Cia. das Índias, foi criada em meados de 1717 pelo escocês John Law, financista e na época radicado na França, com o intuito de explorar ouro na Louisia-na (Estados Unidos da América), gerando, assim, riquezas à França. Investidores britânicos, franceses e escoceses já em 1719 empilhavam-se na Rue de Quincampoix, em Paris, a fim de comprar ações da Mississipi.10

Enquanto os britânicos compravam as ações da Mississipi, italianos, holandeses e franceses adquiriam ações da Mares do Sul na Inglaterra, com especulações de igual porte, mas junto ao mercado inglês. O ápice da especulação se deu no outono de 1720, quando os investidores, em meio ao frenesi, começaram a tentar realizar suas aplicações. Naquele momento, tanto "Londres e a Europa Continental mostravam estar juntos no desastre".11 Vale ressaltar que a Companhia nem sequer tinha iniciado suas atividades no território da Louisiana. Após a crise de 1720, inúmeras outras crises internacionais se formaram. E não foram poucas.

Entretanto, cabe lembrar que nem toda crise tem abrangência internacional, mesmo em um mundo globalizado. Prova disso foi a primeira crise financeira, a "Crise das Tulipas", em 1637, nos Países Baixos, e a crise de Tóquio em 1990. Economistas podem explicar tais acontecimentos

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de várias maneiras; contudo, há sempre necessidade da pesquisa empírica.

Como toda grande crise, a procura pelos seus causadores não foi pequena, inclusive com alguns Republicanos culpando o Presidente Hoover, e esse a Europa.12 Como elementos externos que influenciaram o crash, podemos citar a recuperação da Europa no pós-guerra, com produção excessiva e a renegociação das taxas de juros aos empréstimos londrinos no mercado de Nova York. Seus reflexos, por outro lado, foram surtidos na Europa, América do Sul e até mesmo Austrália.

Automaticamente, com a quebra, cancelou-se praticamente a totalidade dos financiamentos à importação. Com isso, mercados exportadores de commodities (tais como Brasil e Argentina) tiveram suas balanças de pagamento severamente comprometidas, incapazes, assim, de adimplir suas dívidas a curto prazo, ao mesmo tempo em que estavam impossibilitados de contrair novas dívidas, em razão do fechamento do mercado de crédito internacional, o qual só voltou a funcionar na primeira metade de 1930.13

Da mesma forma a atual crise do suprime, a qual se iniciou com o aumento expressivo das inadimplências nos pagamentos das hipotecas (mortgages) nos Estados Unidos, mas que gerou efeitos adversos gigantescos no sistema financeiro mundial, muito porque a maioria desses créditos foi securitizada.14 Vale destacar que, após essa crise, os ventos da regulação voltaram a soprar. É o inevitável ciclo (regulação/des-regulamentação) após cada crise.

2. 3 Aspectos atuais dos efeitos transnacionais

O que atualmente se vê é uma propagação, em velocidade quase instantânea, dos efeitos dos mercados de capitais no mundo. Segundo Galgano, uma das grandes novidades de nosso tempo reside na expansão mundial da organização produtiva.15 Não se faz necessário muito esforço para encontrar uma notícia de efeitos cor-relatos nos mais diversos mercados. Já em 1998, na visita que o então Presidente nor-te-americano Bill Clinton fez ao Primeiro-Ministro japonês, Keizo Obuchi, foi exigida, por parte dos Estados Unidos da América, uma série de...

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