O Supremo Tribunal de Justiça Português e as Condições Gerais dos Contratos

AutorConso Araújo Barros
CargoConselheiro do Supremo Tribunal de Justiça de Portugal
Páginas29-52

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1. Introdução
1.1. Objeto desta intervenção

Como o próprio título da comunicação sugere, não tenho intenção de me preocupar com uma análise teorética de natureza juscientífica do regime das condições gerais dos contratos, limitando-me – neste aspecto a remeter para as mais meritórias obras que sobre o assunto foram, nos últimos anos, publicadas: “Cláusulas Contratuais Gerais”, de Mário Júlio Almeida Costa e António Menezes Cordeiro, Coimbra, 1990; “Cláusula Penal e Indemnização”, de António Pinto Monteiro, Coimbra, 1990; “Cláusulas Contratuais Gerais e o Paradigma do Contrato”, de Joaquim de Sousa Ribeiro, Coimbra, 1990; e “Cláusulas Contratuais Gerais e Directiva Sobre Cláusulas Abusivas”, de Almeno de Sá, Coimbra, 2000.

Procurarei antes, sem embargo de uma breve, mas necessária em termos de lógica expositiva, indicação das posições do legislador, fazer uma quanto possível completa viagem pela jurisprudência mais recente do Supremo Tribunal de Justiça [de Portugal], tentando dar conta das soluções e orientações encontradas no que respeita à interpretação e aplicação das normas que, no nosso direito, disciplinam a matéria das ainda denominadas “cláusulas contratuais gerais”.

Não vou abordar, com alguma pena, por manifesta falta de tempo, a matéria atinente à fiscalização prévia das condições gerais dos contratos, em particular no que respeita às providências inibitórias e às disposições processuais enunciadas no Dec.-lei 446/85, de 25 de outubro.

É, pois, modesta a minha contribuição, naturalmente pautada por critérios mais de informação do que de formação, embora não propriamente acrítica já que, aqui e ali, me pronunciarei acerca da justeza e adequação das cerca de 90 decisões do STJ [Supremo Tribunal de Justiça de Portugal] que pude consultar.

1.2. O contrato Negociações preliminares e liberdade negocial. As condições gerais

O contrato é, consensualmente, considerado a primeira das fontes de obrigações no âmbito do direito civil.

Sem grande preocupação de rigor, pode afirmar-se que existe um contrato quando duas ou mais declarações negociais se conjugam com a intenção de produzir determinado efeito jurídico pretendido pelos seus autores.

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Será, numa perspectiva terminológica mais perfeita, “o acordo vinculativo, assente em duas ou mais declarações de vontade (oferta ou proposta de um lado; aceitação do outro), contrapostas mas perfeitamente harmonizáveis entre si, que visam estabelecer uma regulamentação unitária de interesses”1.

Configura-se, no dizer de Carlos Ferreira de Almeida, como “o acordo formado por duas ou mais declarações que produzam para as partes efeitos jurídicos conformes ao significado do acordo obtido”2.

Sem definição legal, dir-se-á, de um ponto de vista normativo, “o instrumento que a ordem jurídica faculta aos sujeitos para, por acordo, realizarem as operações económicas e sociais que lhes convêm, atribuindo a esses acordos caráter jurídico, isto é, vinculativo”3.

No âmbito da contratação, consagra a nossa lei como regra o princípio da liberdade dos contraentes que, dentro dos limites da lei, têm a faculdade de fixar livremente o conteúdo dos contratos, celebrar contratos diferentes dos previstos no Código Civil (contratos inominados), incluir neles as cláusulas que lhes aprouverem e reunir no mesmo contrato regras de dois ou mais negócios, total ou parcialmente regulados na lei (artigo 406º do
C. Civil).

Claro que o contrato, usualmente, até porque apenas se mostra concluído quando as partes houverem acordado em todas as cláusulas sobre as quais qualquer delas tenha julgado necessário o acordo (artigo 232º), não surge sem que previamente as partes negoceiem os respectivos termos e conteúdo, discutam as cláusulas necessárias, acertem, em suma, o acordo que vão concluir: é a denominada fase das negociações preliminares, no decurso da qual os potenciais contraentes devem proceder segundo as regras da boa-fé (artigo 227º, n. 1).

À medida, porém, que o poder económico dos grupos se foi fortalecendo com o desenvolvimento do capitalismo e, mais tarde, da economia de mercado, a atividade das empresas se foi diversificando e a oferta de produtos em massa se foi alargando, “iniciou-se um processo de objetivação, caracterizado pela progressiva perda da relevância do elemento volitivo, da intenção real e efetiva do declarante, ganhando peso crescente o próprio comportamento declarativo, tal como exteriormente observado”4.

Concomitantemente, as sociedades técnicas e industrializadas da atualidade introduziram alterações de vulto nos parâmetros da liberdade contratual. A negociação privada, assente no postulado da igualdade formal das partes, deixou de corresponder ao concreto da vida. Adveio a

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estandatização negocial feita por empresas como forma de racionalização e normalização necessárias a uma adequada previsão de custos e lucros e a uma gestão equilibrada.

Em consequência, um número significativo de contratos, em vez de serem precedidos de uma discussão prévia, em ordem a conformar o seu conteúdo à medida da vontade e dos interesses de ambos os intervenientes, passam a traduzir, de fato, a vontade e os interesses de um deles apenas, normalmente uma empresa, que predetermina, unilateralmente, no todo ou em parte, o seu conteúdo, elaborando para o efeito condições ou cláusulas contratuais gerais destinadas a integrar o conteúdo dos múltiplos contratos a celebrar no futuro,
mediante a sua oferta, em massa, ao público
interessado. A liberdade da contraparte fica
praticamente limitada a aceitar ou rejeitar,
sem poder realmente interferir, ou interferir
de forma significativa, na conformação do
conteúdo negocial que lhe é proposto, visto
que o emitente das condições gerais não está
disposto a alterá-las ou a negociá-las. Se o
cliente decidir contratar, terá de se sujeitar
às cláusulas previamente determinadas por
outrem, no exercício de um law-making power de que este desfruta, limitando-se aquele, pois, a aderir a um modelo prefixado.”

É o que hoje acontece em grande parte dos contratos (designadamente nos denominados contratos de consumo – seguros, operações bancárias, fornecimento de gás, água e eletricidade, locação financeira e aluguer de longa duração, compra e venda de móveis e bens de equipamento, com ou sem reserva de propriedade, transporte de mercadorias, acesso a meios de comunicação, em especial no que concerne a telemóveis) em que a liberdade negocial do consumidor se mostra largamente restringida, traduzindo-se apenas numa subscrição de adesão ao previamente clausulado, ou, em contrapartida única, numa recusa de celebração do negócio proposto.

Por isso que tais contratos, em que o cliente ou consumidor não tem a menor participação na preparação e redação das respectivas cláusulas, e se limita a aceitar o texto que o outro contraente oferece, se denominam, significativamente, contratos de adesão5.

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1.3. Condições gerais e condições particulares dos contratos (condições especiais)

Não obstante os contratos de adesão (aqueles de que, no essencial, apenas constam condições ou cláusulas gerais que a parte aderente se há de limitar a subscrever), a verdade é que cada contrato é, na sua celebração, simultaneamente individual, ou seja, realizado com um único sujeito. Donde, e à partida, ter-se-á que analisar a forma como as cláusulas contratuais gerais são incluídas no contrato concerto realizado, bem como atender a que, no mesmo contrato concerto, coexistem necessariamente condições particulares e, por vezes, também condições especiais (naturalmente resultantes de negociação).

Assim, as condições gerais são as estipulações que, de um modo genérico, regulam determinado tipo de contrato, que previamente foram elaboradas, aprovadas, revestem caráter imperativo para o aderente e são idênticas para todos os contratos do mesmo género.

Já as condições particulares são o enunciado dos elementos individuais necessários à elaboração do contrato singular; são as cláusulas manuscritas ou às vezes datilografadas que permitem adaptar o contrato a cada espécie (identificação das partes, objeto do contrato, preço, riscos, data da subscrição, duração do contrato etc.).

Por último, as condições especiais, meramente facultativas, são as estipulações que modificam, no caso concreto, condições normalmente adotadas pela proponente relativamente ao tipo de negócio celebrado, a ter em consideração apenas quando se encontrem discriminadamente referenciadas nas condições particulares.

E bem se pode considerar que “as próprias condições gerais de um determinado contrato não são, necessariamente, cláusulas contratuais gerais, podendo muito bem resultar de negociações preliminares, ainda que abreviadas”6.

2. Regulamentação das condições gerais

Anunciando que se ponderaram as diretrizes dimanadas do Conselho da Europa, mas procurando evitar um reformismo abstrato, que desconhecesse as facetas da realidade portuguesa, foi pela primeira vez regulado no nosso país o regime jurídico das cláusulas contratuais gerais, através da publicação do Dec.-lei 446/85, de 25 de outubro.

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Este diploma “veio, seguindo basicamente a legislação alemã, dar um passo mínimo de proteção à parte que não tem o law making power, que pode ser uma empresa, mas será sobretudo um consumidor, em boa medida indefeso perante o poder económico da outra parte, para não se falar na influência arrasadora da publicidade e do estado de...

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