Temas complexos: democracia e cidadania

AutorCassiana Alvina Carvalho
Páginas43-52

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Introdução

Vivemos um momento difícil1 e extremamente complexo. A sociedade de hoje busca respostas que velhos paradigmas já não atribuem respostas necessárias. As relações sociais, a vida em comum do homem com o meio, o Estado, a democracia, o papel do cidadão e tantos outros temas nos remetem, indubitavelmente, a uma série de pensamentos aparentemente descordenados e desconectados, muitas vezes o que pareceria indissociável surpreende pela imbricação. Estamos diante de uma crise, uma crise de época com consequências inimagináveis.

Vale lembrar Capra:

As últimas décadas de nosso século vêm registrando em estado de profunda crise mundial. É uma crise complexa, multidimensional, cujas facetas afetam todos os aspectos de nossa vida – a saúde e o modo de vida, a qualidade do meio ambiente e das relações sociais, da economia, tecnologia e da política. É uma crise de dimensões intelectuais, morais e espirituais; uma crise de escala e premência sem precedentes em toda história da humanidade.2

O período é de contestação, de revolução, não uma revolução que suja as mãos com sangue, mas uma revolução de pensamentos, de mentalidades; finalmente aceitamos que a primazia da razão entra em crise e tudo que considerávamos sólido e certo se desfaz com uma facilidade única, por insustentabilidade de seus fundamentos. O ambiente crítico, essa “Era daPage 44 Desconstrução”, desassossega de tal forma por não trazer soluções matematicamente prontas para o que acabou de romper-se.

Isso se dá, também, e principalmente, com o próprio ser humano e com a forma de encarar o poder e sua forma de exercício, qual seja: democracia e cidadania.

Nesse momento nada é simples, nada é lógico, nada é certo, a sociedade é outra, o homem é outro, por consequência o Estado é outro e a forma de expressar-se dentro desse Estado já não compactua com formas instaladas nos primórdios do Estado Moderno, a partir de então surge uma série de indagações: Quais as novas formas de exercício do poder? O significaria falar em uma democracia dos “pós-modernos”? Quem é o cidadão da “nova era”?

Mais uma vez respostas nada simples, nada exatas, nada lógicas. Nosso papel é repensar toda essa situação, não mais sob a égide de paradigmas vencidos pela superação do próprio raciocínio humano, que entendeu a necessidade de discutir o que parecia certo e imutável, tudo por força das demandas sociais que requerem mais do que nunca respostas novas e atualizadas a questões jamais imaginadas por aqueles que pensaram de forma linear, o que possuía dimensão cíclica.

Toda essa desestruturação foi descrita por Morin:

A espessura das evidências foi destruída, a tranquilidade das ignorâncias foi abalada, as alternativas ordinárias perderam seu caráter absoluto, outras alternativas se desenham: a partir disso, o que a autoridade ocultou, ignorou, rejeitou, sai da sombra, enquanto que o que parecia o pedestal do conhecimento se quebra.3

Dentro desse contexto, que beira o caótico, dois temas tomarão nossa especial atenção no presente trabalho: a democracia e a cidadania.

Se há muito tempo cedemos parte de nossas liberdades a fim de que esse ente (Estado), que se formava a partir de um pacto conjunto, retificado por séculos e séculos, nos trouxesse segurança, e se essa segurança já não responde às demandas que a própria sociedade outorgante impõe, nossa tarefa é discutir a natureza dessa nova conformação e as nuanças desse novo entendimento. Afinal, o que significa cidadania e democracia na pós-modernidade?

O presente trabalho tem a singela intenção de trazer à baila a complexidade advinda da necessidade de atualização das teorias, tema esse que toma assento nas academias de todo o país, mas, antes de tudo, cabe a tarefa de introduzir a problemática resultante da crise da razão moderna e do enfrentamento de paradigmas até então incontestáveis.

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1 O Pensamento Complexo e a Crise da Razão Moderna

O pensamento moderno foi uma forma aprimorada do que já vinha sendo estruturado no período medieval, como lembra Villey as escolas medievais começam a se estruturar nas formas mais difundidas de ver o direito e o jurídico, quais sejam: o positivismo jurídico, a exaltação do papel do homem, sua razão entre outras correlatas4. A partir de então, sobreveio a prevalência do egocentrismo onde o homem achava-se no centro de tudo e em um patamar mais elevado, além de separado de seu meio e onde o meio (social, ecológico...) era visto como um sistema desconectado e independente, sob total controle da razão humana.

Como bem lembra Capra, os pensadores do século XVII levaram a abordagem mecanicista a todas as áreas do conhecimento, aplicando os princípios da mecânica newtoniana às ciências da natureza e da sociedade humanas, tendo Locke como expoente, mas essa concepção foi muito adiante influenciando gerações de pensadores5.

Esse pensamento dominou todas as áreas de conhecimento e de pesquisa humana, o pensamento mecanicista chegou a seu ápice e consequente início de declínio na segunda metade do século XX, onde os primeiros pensadores chegaram à conclusão que o pensamento lógico e linear já não guardava alento aos problemas complexos da modernidade.

O pensamento simplificado clássico da época significava, como bem lembra Morin, a incapacidade de conceber a conjunção do uno e do múltiplo, chegando ao que o doutrinador chama de “identidade cega”, já que não conseguia conceber o elo inseparável entre o observador e a coisa observada, sendo que essa incapacidade de perceber a complexidade da realidade antropossocial, em sua microdimensão (o ser individual) e em sua macrodimensão (o conjunto da humanidade planetária), conduz a infinitas tragédias e nos conduz à tragédia suprema6, nas palavras do autor:

A patologia da razão é a racionalização que encerra o real num sistema de ideias coerente, mas parcial e unilateral, e que não sabe que uma parte do real é irracionalizável, nem que a racionalidade tem por missão dialogar com o irracionalizável.7

Dessa forma, o maniqueísmo e a simplificação anularam qualquer possibilidade de analisar a parte associada ao todo correlato a que inegavelmente fazia parte trazendo concepções inaplicáveis de teorias que a sociedade jamais pode transformar em realidade. O pensamento filosófico moderno expressou uma dependência e submissão aos imperativos do método das ciências naturais e daPage 46 racionalidade instrumental, e essa redução a um sistema fechado exprime a crise da razão moderna8.

Parafraseando o título do próprio Morin, chega a hora de "religar os saberes", isso ocorre quando o homem tem a percepção que é apenas mais uma parte de um jogo de inter-relações que tem seu liame muitas vezes fixado através da comunicação, e para isso a própria história tem papel único já que somente podemos pensar o presente e o futuro dentro de um contexto histórico/temporal, recordando sempre que a experiência do presente retroage sobre a história9.

A superação do paradigma da razão trouxe consigo um novo modo de pensar com as partes do todo interligadas entre si e com o meio, que foi nomeado de “Teoria dos Sistemas”, que traz em seu contexto o princípio da complexidade. Nas palavras de Capra:

A ciência sistêmica mostra que os sistemas vivos...

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