Por que temer o povo? O debate sobre o Sistema Nacional de Participacao Social (Decreto n. 8.243/14)/Why being afraid of the people? The debate about the Nacional System of Social Participation (Decreet n. 8243/14).

AutorFilho, Marcio Camargo Cunha
  1. Introducao

    O Sistema Nacional de Participacao Social foi criado pelo Decreto n. 8.243, de 23 de maio de 2014, assinado durante a Arena de Participacao Social, evento que reuniu cerca de 2.500 pessoas em Brasilia.

    Desde entao, o Sistema passou a ser objeto de fervorosos debates, tanto no ambito academico quanto na esfera politica. O argumento mais levantado, nessa discussao, e o de que o governo federal estaria tentando esvaziar o poder das tradicionais instancias de representacao politica--em especial o Congresso Nacional--em prol da construcao de um sistema de participacao democratica direta que seria, na verdade, mera fachada de um regime autoritario, ou, nas palavras dos criticos mais duros, de um "regime bolivarianista" inspirado nos modelos politicos de Venezuela e Cuba.

    Depois de expor as criticas dirigidas ao Sistema, este artigo examina suas caracteristicas e rejeita a tese de que o Decreto n. 8.243/14 esvazia as instancias representativas da democracia brasileira. Argumenta-se que a instituicao de mecanismos de participacao direta da populacao no processo decisorio e nao apenas viavel do ponto de vista politico, mas tambem desejavel, pois aumenta a representatividade do regime. As criticas ao Sistema, ainda que bastante acidas e incisivas, nao trazem quaisquer evidencias concretas de suas proposicoes. Argumentaremos que, na verdade, o Decreto deve ser criticado por ter sido demasiadamente timido na instituicao de mecanismos de participacao social, e por, na realidade, ter avancado pouco em prol da democracia direta no Brasil.

  2. Sistema Nacional de Participacao Social: as principais criticas e suas origens teoricas

    Imediatamente apos sua aprovacao, o Sistema Nacional de Participacao Social passou a ser alvo de duras criticas, que se iniciaram nos grandes veiculos de comunicacao e se espalharam rapidamente para outras esferas da sociedade e tambem para os partidos de oposicao ao governo federal.

    A polemica comecou com a publicacao, no inicio de junho de 2014, de editorial que ocupou a primeira pagina do jornal O Estado de Sao Paulo. A noticia alertava para os riscos de criacao de um "poder paralelo" exercido pelos conselhos de politicas publicas. Imediatamente depois, blogs vinculados a Revista Veja classificaram como violador de direitos o Decreto que cria "um tal Sistema Nacional de Participacao Social" e que representaria um tentativa de extinguir a democracia por meio de ordem unilateral da Presidenta da Republica. A partir de entao multiplicaram-se as manifestacoes a respeito dos "absurdos" perpetrados pelo "Decreto bolivariano".

    Os "absurdos" apontados estariam relacionados principalmente ao papel dos conselhos de politicas publicas no processo de tomada de decisoes politicas. Estes orgaos colegiados teriam o poder de esvaziar a atuacao do Poder Legislativo, tradicional foro de representacao dos interesses dos brasileiros.

    O jornalista Reinaldo Azevedo, em artigo publicado em seu blog em 29/5/2014, defendeu a democracia representativa como a verdadeira forma de participacao consagrada pela Constituicao de 1988, sugerindo a inconstitucionalidade da participacao direta do cidadao, seja individualmente ou por meio de movimentos organizados. Segundo ele,

    A Constituicao brasileira assegura o direito a livre manifestacao e consagra a forma da democracia representativa: por meio de eleicoes livres, que escolhem o Parlamento. O que Dilma esta fazendo, por decreto, e criar uma outra categoria de representacao, que nao passa pelo processo eletivo. Trata-se de uma iniciativa que busca corroer por dentro o regime democratico (Azevedo, 2014). Azevedo argumenta que o Poder Publico, por meio da indicacao dos lideres desses conselhos, estaria na verdade cooptando foros de decisionmaking pretensamente legitimos, mas que se tornariam, na pratica, instrumentos por meio dos quais o governo federal direcionaria, unilateralmente, o conteudo das politicas publicas do pais. Em outras palavras, os conselhos seriam meios que o governo federal utilizaria para contornar as forcas sociais de oposicao e impor sua vontade a toda a sociedade. Este ponto de vista fica bastante evidente na opiniao de Ives Gandra Martins:

    A linha da proposta e tornar o Congresso Nacional uma Casa de tertulias academicas, pois os conselhos e comissoes eleitos pelo "povo" serao aqueles que dirigirao o pais. Por exemplo, a comissao encarregada da comunicacao social podera determinar que o ministerio correspondente imponha restricao de conteudo a imprensa, a pretexto de que e esta a "vontade do povo", que sera "obrigado" a atender aos apelos populares (Martins, 2014). Os intelectuais mencionados, apesar de atacarem o Decreto e o Sistema, nao explicitam em momento algum qual a razao de relacionarem a ideia de participacao direta aos regimes ditatoriais por eles mencionados. Suas analises, eminentemente normativas e abstratas, sao desprovidas de quaisquer bases factuais ou concretas que permitam comprovar suas hipoteses. Nao indicam exemplos de foros de participacao social que atuam como titeres do governo. Nao trazem dados historicos, nem ao menos dos ultimos governos petistas, para demonstrar que o Estado tem forca ou intencao de manipular a sociedade civil. Esquecem-se de que os conselhos e as outras instancias de participacao nao tem poder de aprovar projetos de lei ou outros instrumentos normativos, mas apenas de apresentar propostas. Enfim, escondem-se atras de sua ideologia para encobrir a falta de teoria e de empiria em suas analises.

    As criticas ao Sistema comecaram nos veiculos de comunicacao, mas nao se limitaram a esses meios. No Congresso Nacional, a indignacao com a edicao do Decreto foi tamanha que levou alguns parlamentares a proporem diversos Projetos de Decreto Legislativo (PDC) com a finalidade de sustar os efeitos do Decreto da Presidenta da Republica. O debate no ambito do Congresso Nacional foi tao intenso que, logo apos o segundo turno das eleicoes presidenciais de 2014, foi aprovado na Camara de Deputados o PDC 1491/14, por meio do qual foram sustados os efeitos do Decreto n. 8.243/14. O PDC seguiu entao para apreciacao do Senado Federal. Recebido no Senado, o presidente da Casa, Senador Renan Calheiros, imediatamente afirmou que ele tambem sofreria derrota nesta casa legislativa (Folha Politica, 2014). No entanto, ate o momento de finalizacao deste artigo (maio de 2015), o Projeto de Decreto Legislativo ainda nao havia sido votado pelo Senado, o que significa que o Sistema Nacional de Participacao social continua em vigor, ao menos por enquanto.

    Frente a esse debate, saltam aos olhos algumas questoes. De onde vem tamanho desconforto com a ideia de participacao social? Quais sao as origens desta desconfianca e deste temor ao povo?

    O ponto de vista dos intelectuais mencionados, reproduzido e ecoado no pensamento de parte da populacao brasileira, fundamenta-se em uma longa tradicao politica, que surgiu e se desenvolveu concomitantemente as teorias democraticas contemporaneas.

    Esta tradicao politica e apresentada por Aguiar (2011) como essencialmente demofobica. Para a autora, "a teoria democratica se reinventou na modernidade tendo em relevo o medo das massas--e todos seus correlatos, como o terror, a aversao e o desprezo" (Aguiar, 2011: 610). Aguiar revisa autores da chamada teoria classica da democracia (1) para chegar a conclusao de que, nos trabalhos de todos eles, mesmo nos daqueles considerados entusiastas da democracia, encontram-se argumentos que, associados ao elitismo, ao preconceito e a propria disputa entre classes, buscam limitar a participacao das pessoas nos processos decisorios. Esta limitacao ocorre, prioritariamente, por meio da reducao do conceito de "povo" a ideia de "representados", em clara tentativa de manter as direcoes politicas das nacoes sob o controle de um grupo restrito de pessoas.

    No contexto da revolucao francesa, por exemplo, Benjamin Constant pregava cautela a incorporacao das massas revolucionarias ao processo politico. Ele acreditava que a politica era um assunto para os que gozavam de intelecto privilegiado, ou seja, era assunto para poucos. Ele escreveu, por exemplo, que a "classe trabalhadora (...) nao apresentava as imprescindiveis condicoes de ilustracao" (Constant, 1997, apud Aguiar, 2011: 615). Assim, era "preciso, portanto, uma condicao a mais do que o nascimento e a idade prescrita pela lei. Essa condicao geral [era] o lazer indispensavel a aquisicao das luzes, a retidao do julgamento" (idem, ibidem). Para Constant, portanto, a possibilidade de participacao deveria estar relacionada ao nivel intelectual das pessoas. Aguiar (2011) nota que neste requisito estavam claramente embutidos outros relacionados a renda ou e status socioeconomico.

    Alexis de Tocqueville tambem demonstrou, em diversas passagens de suas obras, posicionamentos que demonstraram reservas com relacao a ampliacao da participacao politica das pessoas. Ele chegou a afirmar que o povo era "incapaz e indigno de viver livre (...) tao impaciente, tao irreflexivo, tao desprezador da lei, tao fraco diante do exemplo e temerario diante do perigo como o foram seus pais" (Tocqueville, 1991, apud Aguiar, 2011: 617). Aguiar nota que, na obra de Tocqueville,

    O medo do qual se derivou o elemento demofobico da democracia moderna apresentou-se em matizes diversos, se confundindo, por vezes, com asco e desprezo despertados pela constituicao fisica do povo--o que era proprio daqueles espiritos altivos da aristocracia remanescente e da burguesia emergente (Aguiar, 2011: 617). Outros influentes pensadores buscaram, seguindo a mesma linha de raciocinio, blindar a democracia da participacao social. Os proprios federalistas, como Madison, tambem se preocuparam em criar mecanismos institucionais de protecao das "minorias", ou seja, das classes privilegiadas, em detrimento da massa camponesa que se formava nos Estados Unidos. Toda a sua teoria girava em torno da preocupacao em controlar os governantes e instituir limites ao poder...

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