O tempo e o direito

AutorCristiane Pires
Páginas57-94
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CAPÍTULO II
O TEMPO E O DIREITO
Vivendo no tempo, tenho um saber íntimo daquilo que ele é; quan-
do busco conhecê-lo expressamente, ele me escapa.
Santo Agostinho
2.1 Considerações iniciais do capítulo
A inserção de enunciados que tratam de questões tem-
porais na linguagem do direito é marcada e influenciada pela
própria forma em que os indivíduos e a sociedade a que inte-
gram entendem e se relacionam com o tempo. O estudo desta
relação (indivíduos, sociedade, linguagem e tempo) é, portan-
to, um passo muito importante na análise do tempo jurídico,
tempo positivado e das tensões geradas entre Estado e jurisdi-
cionados a respeito do assunto. Neste sentido, vislumbramos
a importância do incurso, neste momento, no campo filosófico
onde residem as principais reflexões sobre o tempo ao longo
da evolução histórico-cultural.
É por isso que, para a abordagem do capítulo que agora se
introduz, partimos do emprego da “Filosofia no Direito”, isto é,
de categorias que se valem de meditações filosóficas, inserindo-
-as no campo da Dogmática jurídica, penetrando nas constru-
ções da Ciência, com nítido intuito de alcançar novos caminhos
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CRISTIANE PIRES
para aproximação do nosso objeto de estudo, expandindo o co-
nhecimento e dando mais consistência ao saber jurídico.
Na sequência, pela perspectiva própria da dos estudos
sociológicos, examinaremos como e com quais propósitos a
sociedade tem, ao longo de sua história, buscado medir o tem-
po, evidenciando as medições temporais não são obras do aca-
so, mas resultado de uma espécie de acordo de interesses e do
exercício da dominação.
No mesmo propósito, faremos uma análise pelo plano
semântico do vocábulo “tempo”, com escopo a demonstrar
a variabilidade com que este termo pode ser trabalhado nas
relações comunicacionais. Estudo cuja relevância poderá ser
notada a todo o momento ao longo desse trabalho, tendo em
vista que diversas das concepções, trazidas ao lume, poderão
ser resgatadas ao tratarmos da institucionalização do tempo
no mundo jurídico.
Tais aproximações nos prepararão para dissertar sobre a
relação tempo e direito, analisar a importância e as ameaças
que cercam a jurisdicização do tempo, e já estabelecermos as
bases que utilizaremos para a edificação dos próximos capí-
tulos nos quais adentraremos no campo dos textos jurídicos
com intuito a construir proposições crítico-avaliativas sobre o
fenômeno jurídico ora estudado, realizando, deste modo tam-
bém, o que se pode chamar de “Filosofia do Direito”55.
2.2 O tempo
O tempo é uma preocupação muito antiga, algo que já
aparece na mitologia, com as noções de eterno e temporal56,
55. Sobre a distinção entre “Filosofia do Direito” e “Filosofia no direito”, ver CAR-
VALHO, Paulo de Barros. Direito tributário: linguagem e método. 6. ed. São Paulo:
Noeses, 2015, p. 7.
56.
Os gregos antigos tinham duas palavras para o tempo: Chronos e Kairos. Chronos
representava o senhor do tempo, aquele que tudo devora ao mesmo tempo em que
gera. Segundo a mitologia Chronos devorava seus filhos tão logo deixavam o ventre de
sua mãe por temer a profecia de que um de seus filhos um dia iria destroná-lo. Kairos,
por sua vez, era representado por um jovem que só podia ser pego no instante de sua
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O TEMPO E O TRIBUTO
e passa, então, a suscitar uma série de reflexões filosóficas e
científicas que partem de diversas perspectivas do fenôme-
no, atribuindo-lhe, no mais das vezes, um caráter misterioso
e insondável. Com efeito, o tema parece estar sempre como
recôndito nas variadas concepções de mundo construídas no
decurso da história humana. A persistência e o fascínio do de-
bate sobre o tempo pode ser claramente percebida em cada
linha das diversas obras daqueles que o pesquisam.
Percebemos, assim, que o tempo representa algo de esti-
mável valor para os seres humanos. Tomado como algo cada
vez mais escasso, evanescente, fugaz, a cada dia ele também
se torna mais desejado. O tempo parece estar em tudo o que
sentimos, pensamos e fazemos. Mas, se o tempo está em tudo,
o que ele é? Como dizê-lo?
O estudo do tempo constitui uma das clássicas preocupa-
ções do pensamento ocidental, mas tratar do tema não é uma
tarefa fácil, como bem adverte
Cristiano Paixão araúJo Pinto
:
“dizer o tempo é uma tarefa invariavelmente intrincada, seja
passagem; tendo passado, não seria mais possível alcançá-lo. Mas sua velocidade não
ultrapassava a justa medida. A balança em suas mãos representa o equilíbrio, a tem-
perança (OST, François. O direito do direito. Tradução de Élcio Fernandes. Bauru:
Edusc, 2005, p. 7-8). Em Chronos encontra-se a concepção fundamental do tempo
como medida, quantidade de duração, periodicidade, a idade; o tempo que se mede.
Já Kairos aponta para a natureza qualitativa do tempo, para o momento especial em
que algo acontece: a experiência do momento certo, oportuno. O termo Kairos é usado
também em teologia para descrever a forma qualitativa do tempo, como o ‘tempo de
Deus’. John E. Smith após transcrever o conhecido trecho de Eclesiastes “Tudo tem o
seu tempo determinado, e há tempo para todo o propósito debaixo do céu. Há tempo
de nascer, e tempo de morrer; tempo de plantar, e tempo de arrancar o que se plantou;
Tempo de matar, e tempo de curar; tempo de derrubar, e tempo de edificar; Tempo de
chorar, e tempo de rir; tempo de prantear, e tempo de dançar; Tempo de espalhar pe-
dras, e tempo de ajuntar pedras; tempo de abraçar, e tempo de afastar-se de abraçar;
Tempo de buscar, e tempo de perder; tempo de guardar, e tempo de lançar fora; Tem-
po de rasgar, e tempo de coser; tempo de estar calado, e tempo de falar; Tempo de
amar, e tempo de odiar; tempo de guerra, e tempo de paz” (Ecl. 3: 1-8) comenta: “we
know that all the English expressions “a time to” are translations of the term kairos,
the right or opportune time to do something often called “right timing.” This aspect of
time is to be distinguished from chronos, which means the uniform time of the cosmic
system, the time which, in Newton’s phrase, aequabiliter fluit” (SMITH, John E. Time
and qualitative time. In: Rhetoric and kairos. SIPIORA, Philip; BAUMLIN, James S.
(editores). Nova Iorque: State University of New York Press, 2002, p. 46 – PP. 46 a 57).

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