Tempo e trabalho

AutorBárbara Ferrito
Ocupação do AutorMagistrada e pesquisadora do Direito do Trabalho
Páginas77-132
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3Tempo e trabalho
Qualquer pesquisa sobre o tempo esbarra na dificuldade de tratar daquilo
que não se vê, não se tateia, não se ouve, mas sabe-se que existe. Apesar dessa
impossibilidade de acesso pelos sentidos (ELIAS, 1998, p.7), o tempo está aqui:
controlando vidas e sociedades. Essa importância do tempo no cotidiano das
pessoas move pesquisadoras a enfrentar esse enigma, ainda que permaneçam
durante todo o trajeto com a vista enevoada e sofram a angústia da imprecisão de
seu objeto.
Para cumprir a missão é possível trilhar inúmeros caminhos. A partir dos
gregos, tem-se a distinção entre os dois deuses relacionados ao tempo: Chronos
e Kairós. O primeiro tratava do tempo cronológico, mais objetivo, trazendo em si
a ideia de ordem como “elemento determinante do funcionamento das relações
(TAVARES, 2014, p.235). A partir dessa visão, o tempo é colocado como organi-
zador, sendo capaz de interferir diretamente na sociedade. Ao seu lado, Kairós
abraça a ideia de tempo como oportunidade, como momento ideal para a realiza-
ção de algo.
Para Norbert Elias, a divisão absoluta entre tempo de Newton, como dado
objetivo do mundo, e tempo de Descartes, visto de forma subjetiva, isto é, como um
modo de captar acontecimentos, não tem lugar. Outrossim, incabível a celeuma
eterna entre o tempo físico e o tempo social, na medida em que a natureza só se
manifesta em sociedade e a esta se apresente no mundo natural, não sendo pos-
sível cindir esses dois fenômenos e seus tempos correspondentes, como coisas
apartadas. “O tempo não se deixa guardar comodamente numa dessas gavetas con-
ceituais” (ELIAS, 1998, p.11).
De todo modo, o tempo que interessa para o objetivo dessa pesquisa carac-
teriza-se como o tempo sociológico, convencionado socialmente. Nesse sentido,
também é de Elias a observação segundo a qual o relógio não mede o tempo, mas
sua duração, servindo como padronização social formador do quadro de referên-
cia, que formula arquétipos de comportamentos, exercendo, pois, certa forma de
coerção social (ELIAS, 1998, p.60). Para o autor, esse tempo cronológico seria
mera representação simbólica e, por isso, deve ser adotado por todo o grupo social
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— se cada um tivesse seu próprio modelo temporal, o objetivo de harmonização
social nunca seria alcançado (ELIAS, 1998, p.27).
Para tanto, o tempo pressupõe a existência de seres capazes de produzir
memória. Os humanos, como centro de perspectiva, são qualificados para conca-
tenarem os eventos sucessivos e gerarem, a partir deles, memória (ELIAS, 1998,
p.33). Essa circunstância alinha o tempo à ideia de sua irreversibilidade, que, por
sua vez, relaciona-se com o próprio envelhecimento do ser humano. Assim, o reló-
gio foi indispensável para a criação de um quadro de referência temporal capaz de,
em certa medida, harmonizar o ritmo biológico ao padrão social adotado (ELIAS,
1998, p.46).
Thompson, a seu turno, também trata do tempo como convenção das horas,
entendendo que, entre os povos primitivos, a medição do tempo passa pelos
ciclos do trabalho e das tarefas domésticas, sendo difícil separar trabalho e vida.
Ademais, em pequenas comunidades de pesca ou agricultoras, a necessidade de
harmonização do tempo não se apresenta como algo tão premente, sendo certo
que são as tarefas em geral que terminam por impor seu próprio ritmo. O cenário
mudo quando se iniciam as divisões de tarefas, e surgem, ainda que incipiente-
mente, relações do tipo empregado-empregador, que se apropriam da ideia de que
tempo é dinheiro. Nesse novo contexto, o uso econômico do tempo passa a exigir a
formação de novos hábitos de trabalho, dotando de maior relevância da sincroni-
zação dos tempos (THOMPSON, 1998, p.269-304).
Interessante perceber que, sendo um conceito construído socialmente, o
tempo está, no entanto, relacionado diretamente com elementos da natureza. Essa
circunstância facilita a naturalização do tempo como algo dado e não edificado,
fazendo com que seja esquecida a condição de articulador da harmonização da
sociedade. Assim, tende “a ser tratado pela sociedade como espontâneo e inevitável”
(ALVES, 2014, p.23).
Desta feita, indispensável perceber que, ao lado dos demais tempos sociais,
o tempo de trabalho também se coloca como uma construção social, que sofre
influxos de diversas circunstâncias, inclusive dos sistemas econômicos. Assim,
no período pré-industrial verifica-se o tempo único, com trabalho e lazer entre-
laçados ao longo das tarefas rotineiras. O quadro se altera no período industrial,
com sua separação rígida de jornada, capaz de determinar com precisão o tempo
de trabalho e o tempo de não trabalho. Na atualidade, vive-se o período pós-in-
dustrial, no qual o tempo de trabalho contamina toda a rotina do indivíduo, não
sendo possível, muitas vezes, falar em um tempo livre propriamente, na medida
em que este se torna, no dizer de Mañas, acessório e residual àquele (MAÑAS,
2005, p.18).
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Se no segundo capítulo procurou-se demonstrar a importância da leitura
feminista do Direito do Trabalho para a análise do mercado de trabalho das
mulheres, neste, o objetivo é entender como esse outro conceito social, de tempo,
e mais especificamente, tempo de trabalho, se manifesta na vida das mulheres
trabalhadoras. De nada adiantaria tratar aqui de tempo, se o ponto de partida não
fosse aquele elaborado no primeiro capítulo, qual seja, desde uma perspectiva
feminista.
Para tanto, o presente capítulo será dividido em duas partes. A primeira tra-
tará propriamente do tempo, do tempo de trabalho e dos usos do tempo, a fim de
sistematizar conceitos e disciplinas normativas sobre essa temática. Na segunda
seção do capítulo, será analisado o conceito de pobreza de tempo, a partir do
exame dos dados obtidos junto ao IBGE, nas Estatísticas de Gênero, publicada em
2018, e na pesquisa piloto sobre uso do tempo, realizada em 2009.
3.1. TEMPO DE TRABALHO E TEMPO DE NÃO TRABALHO
Como dito acima, nas civilizações antigas, a vida era regida pelo trabalho,
que tinha seu próprio ritmo, por tarefa. Apesar de não haver clara distinção entre
o tempo de trabalho e de não trabalho, os ritmos não eram tão intensos quanto os
atuais, na medida em que a natureza das coisas era respeitada, bem como diante
da parca evolução tecnológica alcançada. Nessa fase, antes mesmo da invenção
dos relógios, os calendários já guiavam os tempos (da colheita, da pesca etc.).
Antes da Revolução Industrial, portanto, a atividade econômica dos indivíduos
tinha por norte seus deveres morais e religiosos, sendo certo que o tempo era
usado para atender anseios próprios ou da comunidade na qual se estava inserido
(ALVES, 2014, p.41). Para Rosso, em uma sociedade que não tenha a acumu-
lação em destaque, o papel do trabalho como catalisador da vida social é restrito
(ROSSO, 1996, p.61).
Nesse período, o labor estava fortemente limitado pelas restrições tecno-
lógicas. Assim, antes que se dominassem as técnicas de iluminação artificial, o
trabalho se desenrolava de sol a sol, mas não na escuridão. A agricultura sofria,
ainda, o influxo das estações do ano, que não tinha seu rigor atenuado de maneira
alguma (ROSSO, 1996, p.71). Ademais, o labor é marcado pela irregularidade, já
que se combinam períodos de trabalho intenso com outros de ócio, o que dificulta
a assunção do trabalho como organizador da estrutura social (ROSSO, 1996,
p.99).
Foram os avanços tecnológicos buscados pela Igreja Católica que deram
início à corrida do homem com o tempo (ROSSO, 1996, p.71). Na busca pela
disciplina e obediência em seus recintos, a Igreja foi a primeira instituição a se

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