A Tensão entre Constitucionalismo e Exceção: a Ordem Estatal

AutorHenrique Smidt Simon
CargoDoutor em Direito, Estado e Constituição (FD/UnB)
Páginas43-85
A Tensão entre Constitucionalismo e
Exceção: a Ordem Estatal sobreposta aos
Direitos Fundamentais
The Tension between Constitutionalism and Exception:
when the State Order Prevails over Fundamental Rights
Henrique Smidt Simon*
Centro Universitário UniEURO, Brasília – DF, Brasil
1. Introdução
Nos últimos tempos o fortalecimento do poder de coerção do estado tem
sido bastante evidente. Sob o argumento de garantir a ordem e a proteção
contra ameaças internas e externas (manifestações e terrorismo), o apa-
relho coercitivo do estado aumenta a repressão e sua capacidade de agir
sobre a população.
Tal crescimento do poder do uso da coerção institucionalizada tem
como consequência imediata a diminuição do âmbito de proteção de in-
divíduos ou grupos contra o estado. Em outros termos, assiste-se a um
movimento de restrição (às vezes suspensão) dos direitos fundamentais
constitucionalmente garantidos1.
Essencialmente dois mecanismos têm sido utilizados para essa prima-
zia do uso do poder do estado: tipif‌icação de condutas que antes não eram
legalmente previstas ou seu tratamento não era considerado duro o suf‌i-
* Doutor em Direito, Estado e Constituição (FD/UnB). Professor do Programa de Mestrado em Ciência
Política no UniEURO (DF). Professor do IDP (DF). Professor do UniCEUB (DF). Advogado. E-mail:
henrique.s.simon@gmail.com.
1 A referência a “direitos fundamentais constitucionalmente garantidos” pretende abarcar tanto os direitos
de defesa contra o estado quanto os de prestação, conteúdos legais ou materiais expressos na constituição
(portanto, exigíveis). Sobre tais funções dos direitos fundamentais, ver ALEXY, 2009. Neste artigo defende-
se que a prevalência do estado sobre a constituição leva à aceitação de que direitos constitucionais expressos,
independente de tipo ou função, podem ser f‌lexibilizados, suspensos ou inef‌icazes. E o estado cria
mecanismos para impedir sua realização ou reivindicação de acordo com sua conveniência e oportunidade.
A constituição, assim, torna-se incapaz de regular plenamente o estado.
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ciente; estabelecimento de situações de urgência (similares ao estado de
defesa brasileiro), alegando-se a necessidade de restabelecimento da ordem
e da segurança públicas.
Como o estado é o detentor do poder soberano, em situações como as
referidas ele se mobiliza para criar, alterar ou afastar o direito de acordo
com suas próprias necessidades, alegando, por outro lado, incapacidade de
cumprimento de suas obrigações legais e constitucionais. Assim, o estado
não só não realiza o que deve (liberdades fundamentais; proteção con-
tra os abusos do poder público; direitos sociais para melhor qualidade de
vida), como usa a alegada incapacidade como motivo para aumentar seus
próprios direitos de uso da violência. Nessa linha, a relação entre estado e
indivíduos ou população não é de direitos e obrigações, mas é via de mão
única, em que o direito é concessão do estado. Na medida dos seus interes-
ses ou necessidades ele amplia ou restringe essas “benesses”.
Esse movimento de retomada da evidência da soberania do estado f‌ica
cada vez mais claro desde os atentados terrori stas de setembro de 2001 nos
Estados Unidos2. E o terrorismo tem sido o grande mote para a limitação
ou suspensão de direitos fundamentais3. Contudo, o uso do medo e da
possibilidade de descontrole como fundamentos para essas suspensões da
normalidade do estado de direito tem se expandido para o próprio cam-
po das manifestações políticas e sociais em geral, principalmente quando
em oposição ao poder do estado ou de quem se encontra no controle do
governo4.
2 O ataque ao World Trade Center em setembro de 2001 tem sido usa como marco dessa virada para a
prevalência da soberania do estado sob o argumento da proteção contra o inimigo (o terrorista). Tanto Zizek
(2003) quanto Agamben (2004) seguem essa linha.
3 Os atentados de Nice, ocorridos em julho de 2016, mostram esse movimento. Declarado o estado de ur-
gência na França (f‌igura próxima ao nosso estado de defesa), uma semana depois o parlamento francês apro-
vou, por lei, seu prolongamento até janeiro de 2017 (http://www.lemonde.fr/politique/article/2016/07/20/
la-prolongation-de-l-etat-d-urgence-debattue-au-senat_4972466_823448.html. Acesso: 14/10/2016).
4 As referências a seguir são apenas algumas amostras aleatórias do recurso disseminado ao estado de
emergência. Os deputados da direita francesa chegaram a demandar a aplicação do estado de urgência
às manifestações contra a lei de reforma trabalhista que, à época, ainda estava em discussão (http://www.
huff‌ingtonpost.fr/2016/05/19/meme-avec-la-prolongation-de-letat-durgence-interdire-les-man/. Acesso:
14/10/2016). Nos Estados Unidos, em razão do confronto de grupos ou comunidades negras contra a
polícia por causa da violência policial, houve declaração de estado de emergência para controlar o
público que reagiu contra o abuso do poder de coerção, como no caso de Charlotte (http://www.aljazeera.
com/news/2016/09/state-emergency-declared-charlotte-protests-160922051221516.html,Acesso:
14/10/2016). Na Turquia, após sofrer tentativa de golpe fracassada (tentativa essa que tem gerado muitas
dúvidas sobre suas circunstâncias), também foi declarado e prorrogado o estado de emergência (http://
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Essa percepção de que a normalidade do direito e, portanto, das pro-
teções contra a coerção institucionalizada só podem funcionar enquanto
não colocar em risco ou questão o poder soberano transforma o estado
em legibus solutus. A normalidade do direito só funciona na normalidade
do estado, sendo que ele é quem decide quando a normalidade é quebra-
da. Aquilo que deveria ser relação de direitos e obrigações transforma-se
em concessão de direitos, que podem ser suprimidos em situações que
interessam ao poder. Neste estudo essa situação será denominada “visão
processualizante do direito”, porque entende que só há direito quando há a
possibilidade de reivindicá-lo ao próprio aparelho público de aplicação (o
poder judiciário), possibilidade que só pode ser dada pelo próprio estado,
deixando os sujeitos à mercê do poder e seus abusos, porque os direitos
concedidos, mesmo que por via constitucional, podem ser suspensos, rela-
tivizados ou mesmo extintos quando conveniente.
O ponto de partida da presente análise é a retomada da relação entre
direito, indivíduos submetidos ao poder e ao direito e o modelo teórico
do que se compreendeu como estado de direito, na sua relação com o
exercício do poder instituído. Pretende-se demonstrar como o liberalismo
político permite pensar o direito como sistema que demanda completude,
o que se alcança com a ideia de constituição (portanto, permite entender
o papel estrutural da constituição). Isso é feito justamente para garantir
proteção contra o poder.
Em seguida, faz-se a crítica da redução da estrutura jurídica liberal ao
“processualismo”, a ser entendido como a redução do pensamento jurídico
ao modelo de aplicação do direito processual. O objetivo, nesse ponto, é
demostrar como tal forma de compreender o direito inibiu as funções e
potencialidades do positivismo e tem impedido pensar o direito de forma
alternativa, de modo a impedir a ampliação do potencial de racionalidade,
de mediação social e política da própria constituição. O objetivo é esclare-
cer que esse “processualismo” permite colocar o estado fora da constituição
nos momentos em que pretende agir e os direitos tornam-se barreiras, o
www.lefigaro.fr/flash-actu/2016/10/11/97001-20161011FILWWW00312-turquie-l-etat-d-urgence-a-
nouveau-prolonge.php. Acesso: 14/10/2016). No Peru, o recurso ao estado de emergência foi utilizado para
o combate à violência do tráf‌ico de drogas (http://www.actulatino.com/2016/09/12/perou-l-etat-d-urgence-
a-ete-decrete-pour-combattre-la-criminalite-dans-des-zones-du-vraem/. Acesso: 14/10/2016). Um último
exemplo, para abarcar todos os continentes, na Etiópia o governo também declarou estado de urgência para
lidar com manifestações que o contestam (http://www.lemonde.fr/afrique/article/2016/10/09/ethiopie-le-
gouvernement-declare-l-etat-d-urgence_5010680_3212.html).
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