Tentativa

AutorFernando de Almeida Pedroso
Ocupação do AutorMembro do Ministério Público do Estado de São Paulo. Professor de Direito Penal. Membro da Academia Taubateana de Letras
Páginas251-298

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9.1. Considerações preliminares consumação e tentativa. o problema da adequação típica

A marca da falibilidade, do insucesso e da imperfeição constitui contingência de toda obra humana. O ser humano, muitas vezes, por mais que faça, por maiores que sejam sua dedicação, empenho e esforço, depara-se com seu objetivo frustrado por percalços, empecilhos e obstáculos que não consegue superar.

Se assim ocorre com a atividade humana em geral, crível é que de modo idêntico sucede no tocante ao crime, que resulta - como é óbvio - também do comportamento humano, dirigido, porém, para a realização do ilícito.

Digamos, por exemplo, que Tício quisesse matar seu inimigo Caio. Desfecha-lhe, para cumprir esse propósito, tiros de revólver. Mas, a despeito de fazer segura pontaria e de esgotar a carga da arma, Tício não atinge Caio, que escapa ileso, ou, se o atinge e prostra no solo em estado de inconsciência, qual morto, Caio, não obstante, consegue sobreviver pelo socorro que lhe prestam circunstantes e por intervenção cirúrgica bem sucedida.

Outrossim, imaginemos que ladrão se dispusesse a cometer um furto residencial. Para tanto, ingressa na moradia mediante arrombamento da porta do imóvel. Ato contínuo, uma vez no interior da casa alheia, apanha os objetos de valor que resolve levar consigo e os coloca numa mochila para o transporte. Contudo, quando o gatuno pretende afastar-se para abandonar o local, surge o proprietário e, de arma em punho, o detém e prende em flagrante.

Verifica-se pelos exemplos supramencionados que a consecução da empreitada criminosa pretendida por Tício (homicídio) e pelo ladrão (furto) colocou-se, por motivo estranho ao querer do agente, fora do seu alcance. Embora ambos agissem para a concreção plena do crime, o delito não se completou por circunstâncias independentes de suas vontades.

Coloca-se, dessa maneira, o problema da realização incompleta do crime, embora o sujeito ativo pusesse em ação suas possibilidades e recursos para obtê-lo na sua inteireza. Há um delito que entrou em execução, mas no seu caminho para a consumação foi interrompido por mera casualidade.

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Na tentativa nota-se, destarte, que o ato do sujeito ativo desenvolve-se no caminho da tipicidade, mas que falta, consoante Beling, a fração última e típica da ação. Na tentativa a tipicidade não se conclui, mas o fato se encaminha francamente no sentido da realização do tipo500. É o crime in itinere, que representa uma etapa no caminho do delito.

Ora, ao Direito Penal essa realidade não passou despercebida. Nem poderia o direito repressivo colocar-se indiferente ao acontecimento. Considerando que toda a atividade do sujeito ativo - no plano concreto - se dirige, desenvolve e encaminha para a realização do tipo, somente não consumado por fator estranho ao querer do agente, o Direito Penal teria de submeter à malha punitiva esse procedimento endereçado ao delito, pois denota, na observação de Antolisei, um fato exterior que não pode ser tolerado pelo Estado, em virtude de seu caráter antissocial501. Criou-se, assim, para ensejar a punição dessa atividade, a figura da tentativa ou conatus, que retrata a realização incompleta do crime.

Entretanto, como entidade criminosa, também a tentativa deve reunir os atributos de fato típico, antijurídico e culpável.

Desta sorte, surge como questão de vital importância, em termos penais, considerar a tentativa como fato típico, primeiro elemento conceitual de admissibilidade jurídica para a sua punição.

Por conseguinte, resta perscrutar como se realiza a tipicidade do conatus.

Em primeiro lugar, convém acentuar que a tentativa não constitui crime autônomo. Representa simples realização incompleta de uma figura penal, id est, prática inacabada de determinado fato previsto na lei penal como delito. Ela é punível como tipo subordinado, na expressão de Beling, e não como tipo autônomo. É como uma sombra do tipo - assinala Anibal Bruno - que a tentativa se projeta na vida penal502, pois representa apenas um segmento da figura típica503.

Se crime tentado é o tipo truncado, se constitui um fragmento do delito, desponta indene de dúvidas que, sendo o crime consumado a realização do tipo penal por inteiro, a tentativa, que é um pedaço do crime, não pode situar-se fora do tipo504.

Não por outra razão, a tipicidade da tentativa deve efetivar-se junto ao tipo penal cuja violação o agente pretendia.

No entanto, se o fato concreto e inacabado é cotejado com o tipo que o descreve, para a verificação característica da identificação típica (v. n. 1.9), facilmente se percebe que, sozinho, não consegue corresponder - exata e fielmente - à moldura legal. Diante dela está incompleto, uma vez que não reúne todos os elementos descritivos da

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sua consagração na lei. De tal arte, não está apto a retratar corretamente a sua definição legal, assim como a cópia deveria reproduzir o modelo original ou o espelho refletir a imagem (v. n. 1.9). Resulta impossível, para efeito da adequação típica da tentativa, o confronto direto do fato diante do tipo que o descreve.

O art. 121 do CP, exemplificativamente, define como crime matar alguém e, no caso suprafigurado, Tício não matou Caio, embora agisse para cumprir esse propósito. Igualmente, configura o delito de furto subtrair coisa alheia móvel (art. 155, CP). Porém, o ladrão não obteve sucesso nessa empreitada, posto que não conseguiu ter para si os valores dos quais se apoderava na residência alheia.

Sendo inviável a correspondência do fato ao tipo, quando postos diretamente em contato, era imperioso, na hipótese do conatus, a lei penal erigir um recurso para possibilitar a adequação típica, ou seja, criar um mecanismo técnico-jurídico para desempenhar o papel de instrumento de ligação entre o fato e o tipo. Surgiu, assim, a chamada norma de extensão, incrustada no art. 14, n. II, do CP. Ela serve de catalisador ou elemento intermediário (um subtipo) entre o episódio delituoso inacabado e sua descrição típica e confere ensanchas à tipicidade indireta, pela subordinação mediata ou ampliada do fato ao tipo. Nessa situação, o fato não se subordina diretamente à figura típica. Sua subordinação é ampliada, de forma mediata e indireta. Isso porque o episódio, incompleto na sua realização, inicialmente se projeta para a norma de extensão. Esta, então, como instrumento intermediário ou elo de ligação, captura e absorve o episódio. Ato contínuo, o transfere ao tipo cuja violação era pretendida. Por meio desse caminho, por via oblíqua e indireta, o encarte típico encontra campo fértil. Explicando de outra forma. A norma de extensão percebe que o fato, exatamente porque está incompleto, não possui força, sozinho, para chegar até o tipo. Assim, com uma das mãos, a norma de extensão puxa o episódio para si e, com a outra mão, conduz o fato até o tipo almejado, prestando-lhe o socorro necessário à tipificação.

Em gráfico:

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Tício não matou (art. 121, CP) e o ladrão não subtraiu (art. 155, CP). Ambos, porém, deram início à execução de um crime (homicídio ou furto) que não se consumou por circunstâncias alheias às suas vontades (art. 14, n. II, CP). Consequentemente, mediante a conjugação do tipo legal cuja violação era pretendida com a norma de extensão, pode-se dizer que ambos tentaram o cometimento do delito e devem, portanto, ser punidos pela tentativa (art. 121 c.c. art. 14, n. II, ou art. 155, § 4º, n. I, c.c. art. 14, n. II, CP).

Nessa conjuntura, a tentativa adquire roupagem típica pela incidência de dois preceitos legais. Primeiramente, aflora o tipo legal delitivo, o preceito incriminador que o sujeito ativo desejava realizar com sua conduta. Para completá-lo em seu desdobramento inacabado, desponta, em seguida, a norma de extensão, que possibilita a adequação indireta.

Na tentativa não se pode falar em ausência de tipicidade, mas em tipicidade não concluída. O agente não conduziu sua ação até a fase final e decisiva. Mas o tipo ficou perfeitamente definido na fração que se efetivou, e só não se cumpriu inteiramente pelo obstáculo inesperado que interrompeu o curso da ação505.

Desse modo, crime consumado é aquele que, em concreto, reuniu todos os elementos de sua definição legal (art. 14, n. I, CP). Quando o episódio agrupar todos os elementos descritivos de seu modelo típico, estará realizado em sua inteireza e plenitude. Vale dizer: estará consumado, pois se identificará, plenamente, com o tipo que o descreveu. Consumação e tipicidade, portanto, são expressões que encerram sinonímia (v. n. 5.3).

De outro lado, crime tentado é aquele cujo fato concreto não reuniu todos os elementos de sua definição legal, restando inacabado, após o início da execução, por circunstância alheia à vontade do agente (art. 14, n. II, CP).

A tentativa, portanto, não constitui crime sui generis, com pena autônoma. Ela é a violação incompleta da mesma norma de que o crime consumado representa violação plena, e a sanção dessa norma, embora minorada, lhe é extensiva506. Como a tentativa é tipo tributário do tipo reitor, não existe crime de tentativa, mas tentativa de crime.

É no plano físico ou material que a tentativa se distingue do crime consumado. Nela, o sujeito ativo fica aquém do elemento volitivo, pois não o realiza no mundo exterior507. Num (crime consumado), o agente atinge a meta optata e alcança o seu escopo ilícito, havendo correspondência perfeita do plano físico...

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