A Teoria da Bondade Natural e a Regulação da Questão Indígena no Brasil

AutorJulianne Holder da Câmara Silva Feijó
CargoProfessora da Universidade Federal Rural do Semi-árido (UFERSA), Rio Grande do Norte
Páginas105-137
A Teoria da Bondade Natural e a Regulação da Questão Indígena no Brasil (p. 105-138)
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FEIJÓ, J. H. da C. S.
A Teoria da Bondade Natural e a Regulação da Questão Indígena no Brasil
.
Revista de
Direito Setorial e Regulatório
, Brasília, v. 2, n. 2, p. 105-138, outubro 2016.
A Teoria da Bondade Natural e a Regulação da
Questão Indígena no Brasil
The Theory of Natural Goodness in the Regulation of
Indigenous Issues in Brazil
Submetido(
submitted
): 15/03/2016
Julianne Holder da Câmara Silva Feijó*
Parecer(
revised
): 13/04/2016
Aceito(
accepted
): 15/05/2016
Resumo
Propósito
Realizar um r esgate histórico da legislação brasileira dedicada à questão
indígena aliado à análise da atuação do Estado quanto à efetivação dos seus direitos com
o intuito de identificar a influência que a teoria da bondade natural teria exercido, e ainda
exerce, sobre a regulação do tema, mesmo após as transformações regulatórias
introduzidas pela atual Constituição Federal
Metodologia/abordagem/design
Partindo da obra de Afonso Arinos intitulada “O
índio brasileiro e a Revolução Francesa: as origens brasileiras da Teoria da bondade
natural”, o artigo busca identificar a influência da teoria na regulação brasileira da
questão indígena, por intermédio do levantamento da legislação histórica e atuação estatal
hodierna.
Resultados
Constata-se que o paradigma regulatório de aculturação dos indígenas
fortemente influenciado pela teria da bondade natural se reproduz na política hodierna do
Estado Brasileiro, representando verdadeira negação de direitos e dignidade aos
silvícolas.
Implicações práticas
O artigo apresenta uma severa crítica à inação da comunidade
política em dar concretude às modificações regulatórias introduzidas pela Ordem
Constitucional vigente, enfraquecendo, assim, a força normativa da Constituição e a
legitimidade do estado Democrático de Direito.
Palavras-chave: teoria da bondade natural, povos indígenas, regulação, força normativa
da constituição.
Abstract
Purpose
To perfor m an analysis of the Brazilian law concerning indigenous issues
combined with the analysis of the States role as the realization of their rights, in order to
identify the influence that the theory of natural goodness would have exercised and still
exercises on regulatory approaches, even after the changes introduced by the Federal
Constitution of 1988.
Methodology/approach/design
Based on the work of Afonso Arinos entitled “The
Brazilian Indian and the French Revolution: Brazilian origins of the theory of natural
*
Professora da Universidade Federal Rural do Semi-árido (UFERSA), Rio Grande do
Norte. Vice-coordenadora do curso de Direito da UFERSA. Mestre em Direito
Constitucional pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). G raduada
pela UFRN. Email: Julianne.holder@ufersa.edu.br.
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FEIJÓ, J. H. da C. S.
A Teoria da Bondade Natural e a Regulação da Questão Indígena no Brasil
.
Revista de
Direito Setorial e Regulatório
, Brasília, v. 2, n. 2, p. 105-138, outubro 2016.
goodness, this paper identifies influences of that theory in the Brazilian regulation of
indigenous issues through a survey of historic legislation and nowadays policies.
Findings
The regulatory paradigm of acculturation of indigenous has been strongly
influenced by the theory of natural goodness and has been reproduced in nowadays
policies in Brazil, fostering the denial of rights and dignity of those communities.
Practical impl ications
This article poses a strong criticism of the inaction of Brazil’s
political arena to the efficacy of regulatory changes introduced by the current
constitutional order, weakening thus the normative force of the Constitution and the
legitimacy of the rule of law.
Keywords: theor y of natural goodness, indigenous peoples, regulation, normative force
of the constitution.
1. Introdução
Em sua obra intitulada “O índio brasileiro e a Revolução Francesa: As
origens brasileiras da Teoria da bondade natural”, Afonso Arinos de Melo
Franco identifica diversas obras de relevo que, entre os séculos XVI e XVIII,
buscaram na figura do indígena
1
brasileiro, ou melhor, na imagem que o europeu
edificou sobre os ameríndios, os alicerces para a construção da teoria da
bondade natural do homem, consolidada por Jean-Jacques Rousseau e que
influenciaria decisivamente os ideários da Revolução Francesa de liberdade,
igualdade e fraternidade.
A teoria da bondade natural, inspirada em nossos indígenas, amadureceu
na Europa, retornando para este Continente onde iria influenciar a regulação que
o Estado brasileiro dedicaria à questão indígena no País, sendo responsável pela
construção de uma imagem idílica, bucólica e inocente dos autóctones, o que se
refletiria não só na estrutura jurídica da legislação aplicada aos índios, nas
políticas públicas, e imaginário social, como também pelo processo de negação
da cidadania indígena, reproduzido no ordenamento jurídico ao longo de
séculos.
Arrimada na ideia do selvagem inocente e ingênuo, vivendo em um estilo
de vida bucólico e primitivo, a regulação brasileira acerca da questão indígena
ligava-se ao chamado ‘paradigma da integração cultural’ (também chamado de
‘paradigma da assimilação’), que intentava integrar o indígena ao modo de vida
da comunidade envolvente, em um progressivo abandono de sua identidade
cultural. Ou o indivíduo era um aut êntico cidadão brasileiro, perfeitamente
1
Sem negligenciar as diferenças conceituais existentes entre os termos índios, silvícolas,
ameríndios, aborígenes, autóctones, íncolas dentre outras expressões, utilizaremos todas
elas como sinônimas a fim de designar o indígena, apenas para fins didáticos.
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integrado e pleno de seus direitos civis e políticos, ou era um indígena,
selvagem, sem capacidade civil ou participação política. Cidadania e ser
indígena consistiam em situações antagônicas e auto-excludentes.
O processo de redemocratização brasileira ocorrido na década de 80 veio
tentar modificar esse padrão regulatório. Entretanto, problemas institucionais de
base mantêm a dificuldade em solucionar satisfatoriamente os conflitos sociais
acerca da questão indígena no País. Muito embora a Constituição tenha rompido
com o padrão da integração indígena, reconhecendo a diversidade cultural
brasileira e a necessidade de proteger a reprodução étnica e cultural das
minorias, tais como os povos indígenas e comunidades quilombolas, o fato é que
falta vontade e ação da comunidade política em executar de fato as
transformações pretendidas pelo novo modelo regulatório constitucional,
esvaziando a força normativa da nossa Constituição.
Com efeito, para que houvesse uma real satisfação dos conflitos
envolvendo a questão indígena no País, seria necessária a vontade legislativa
aliada à ação do Poder Executivo através do órgão regulador, a FUNAI
(Fundação Nacional do Índio), que nem de longe cumpre o papel institucional
que deveria. Quase três décadas após a promulgação da atual Constituição e
todas as inovações regulatórias que trouxe ao universo do direito indigenista, a
legislação de regência se mantém totalmente atrelada ao paradigma anterior,
integracionista. Do Estatuto do Índio (EI) à lei instituidora da FUNAI, toda a
legislação indigenista brasileira precede à Ordem Constitucional de 1988.
O Poder Legislativo queda-se inerte em fornecer nova legislação mais
adequada aos contornos constitucionais de proteção ao ser indígena. Indaga-se,
então, como poderia a longa manus do Estado, a FUNAI, exercer
adequadamente a ação de promoção dos direitos constitucionais indígenas se a
vontade da comunidade política, que deveria proporcionar tal fim, se mantém
inerte? Aliás, como poderia o órgão regulador cumprir satisfatoriamente a
função constitucional se sua própria estrutura e criação ligam-se ao paradigma
anterior, ultrapassado e dominador?
Percebe-se, pois, que um dos grandes problemas da questão indígena no
Brasil hoje é institucional e regulatório, tendo a Constituição federal tentado
lograr uma transformação que restou paralisada em virtude da inércia legislativa
e que escamoteia a manutenção do regime jurídico anterior de marginalização,
exclusão e negação de direitos emancipatórios, ainda reproduzindo a teoria do
bom selvagem.
Assim, o presente trabalho procura demonstrar a influência da teoria da
bondade natural, consolidada por Rousseau, a partir da citada obra de Afonso
Arinos, sobre o direito indigenista pátrio, revelando um modelo regulatório
culturalmente opressor que se mantém presente, sobretudo na estrutura do órgão

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