A Teoria do Direito e o Pos-Colonial: o subalterno como sujeito de direito espectral/Legal Theory and the Specter of the Post-Colonial: the subaltern as the spectral legal subject.

Autorde Almeida, Leonardo Monteiro Crespo

Introdução (*)

Já faz alguns anos que os pesquisadores da teoria do direito e da teoria política têm recepcionado e participado ativamente dos debates envolvendo pós-colonialismo e descolonialismo, seja para colocar em questão o desenvolvimento da própria dogmática jurídica nacional, seja para investigar as diferentes possibilidades de experimentação jurídica presentes no panorama histórico singular da América Latina. É também em meio a essa circunstância, ou especialmente a partir dela, que indagações até pouco tempo inéditas acerca das novas formas de subjetividade jurídica começaram a captar a imaginação e a capacidade analítica dos teóricos do direito, sobretudo no que concerne ao lugar do subalterno. Trata-se de investigar as possibilidades políticas que aqui se desenvolvem com o propósito de mobilizar novos imaginários sociais.

Os estudos pós-coloniais, a partir de uma absorção sofisticada de uma série de gestos teóricos do pós-estruturalismo francês, levaram adiante um descentramento das principais narrativas que estabelecem o Ocidente, ou apenas parte dele: a subjetividade racional, o progresso científico-tecnológico, a sobreposição do cristianismo frente a outras crenças, a relação instrumental com o meio ambiente, dentre outros. Como aqueles autores que deram início à investigação do colonialismo, percebe-se que a própria ideia de Oriente fora uma construção do Ocidente em meio aos seus anseios, projeções, temores e necessidades.

Um dos principais eixos de investigação dos estudos pós-coloniais fora a maneira a maneira ambivalente pela qual se deu a constituição das identidades políticas em meio aos diferentes processos políticos de independência e descolonização. A herança colonial e os arranjos institucionais herdados desse período geraram formas de subjetividade cujo senso de pertencimento e afinidade cultural se encontram em contínuo deslocamento, quando não acabaram destituídas das condições necessárias para a validação de suas falas e posicionamentos. A pergunta que integra o título daquele é dedicada a exposição de algumas questões importantes do artigo de Gayatri Chakravorty Spivak, Can the Subaltern Speak?, especialmente no que se refere a uma problematização do sujeito subalterno e as suas condições discursivas.

Muito embora o artigo não tenha pretensão de deslocar essa temática para o âmbito da teoria do direito ou de uma filosofia política acerca do jurídico, certas considerações de Spivak parecem ser bastante frutíferas para serem abordadas em meio aos problemas e questionamentos suscitados nesses campos. Não tem este artigo a pretensão de ser uma exposição profunda da complexa teoria desenvolvida por Spivak, nem de seu engajamento crítico tanto com autores pós-estruturalistas ou com os subaltern studies.

Será essa a principal pretensão deste artigo, cujo desenvolvimento atende ao seguinte recorte e estrutura. Primeiro, será apontado em linhas gerais algumas das principais questões referentes ao subalterno desenvolvidas por Spivak no artigo mencionado. Na seção subsequente, recorrendo às considerações de Peter Fitzpatrick, Costas Douzinas e outros, em torno da subjetividade jurídica, principalmente na maneira como a sua constituição ocorre em função--e a partir - de uma subjugação do poder político estabelecido. Nesta seção pretende-se analisar a maneira pela qual o subalterno é uma categoria espectral, em contínuo deslocamento e juridicamente destituída, habitando um espaço entre a liberdade protegida pelo ordenamento jurídico positivo e a completa ausência de liberdade dos que foram juridicamente destituídos de subjetividade, como os escravos e certos prisioneiros de campos de concentração.

O artigo foi realizado a partir de uma revisão de literatura que teve como principal eixo o mencionado artigo de Spivak. No que se refere à teoria do direito e à filosofia política, os trabalhos de Peter Fitzpatrick e Costas Douzinas foram significativos para operar uma transposição das questões suscitadas por Spivak para o horizonte dos problemas situados na interseção entre o jurídico e o político. No que se refere ao segundo grupo de autores, o ponto de partida fora a relação entre constituição da subjetividade jurídica e a sua subordinação à ordem jurídico-política.

Subalternidade, subjetividades e ideologia: reavaliando criticamente o pós-estruturalismo

O início do artigo Can the subaltern speak? estabelece de maneira pontual as restrições de Spivak a uma certa teorização do poder e da constituição da subjetividade, compreendida de maneira plural, oscilante e elusiva, mas que, em sua radicalidade, promove à conservação daquilo que se pretendeu erradicar: a conservação do próprio sujeito soberano moderno. Conforme a autora, esse sujeito conservado é o sujeito ocidental ou, em termos muito equivalentes, o próprio Ocidente como sujeito (SPIVAK, 1988, p. 271 e ss; SPIVAK, 1999, p. 248 e ss). Essa dimensão geopolítica do sujeito moderno manteve-se tão persistente quanto encoberta: sua universalização implicara também na sobreposição do Ocidente/Europa sob as diferentes denominações do seu exterior, a exemplo dos bárbaros, pagãos ou, mais adiante, orientais (CHAKRABARTY, 2000, p. 29 e ss; SPIVAK, 1999, p. 215 e ss).

Spivak reformula e mobiliza essas considerações na problematização de certas reflexões de Michel Foucault e Gilles Deleuze apresentadas no curto diálogo, "Os Intelectuais e o Poder" (SPIVAK, 1988, p. 280; FOUCAULT; DELEUZE, 1979, p. 69 e ss). A autora pondera se, por trás da radicalidade da crítica dos dois autores ao sujeito soberano moderno, não haveria a possibilidade de estar se retornando mais uma vez a essa concepção de sujeito (SPIVAK, 1988, pp. 271-272). Um dos pontos persistentes no diálogo entre Foucault e Deleuze--e que de certa forma também alcança outros autores associados ao pós-estruturalismo, como Félix Guattari e Ernesto Laclau--é o de que as diferentes redes de associação de desejo, poder e interesse são tão diversas, multifacetadas e contingentes que resistem a serem incorporadas em uma única narrativa coerente, a exemplo da emancipação universal da classe operária (SPIVAK, 1988, p. 272; FOUCAULT; DELEUZE, 1979, p. 74-75).

Em parte, esse fora um dos impactos decisivos das manifestações de Maio de 69, como também das diferentes lutas coloniais que envolveram o contexto histórico no qual foram escritas obras como "Anti-Édipo" e "Vigiar e Punir". Se as grandes narrativas já estavam sendo confrontadas por meio da multiplicação de embates, objetos de disputas e das diferentes estratégias de mobilização política, o que será intensificado nas décadas subsequentes. Mais de uma década após o diálogo entre Deleuze e Foucault, na obra publicada em 1985 Hegemony and Socialist Strategy, Ernesto Laclau e Chantal Mouffe adotaram como ponto de partida uma crítica ao essencialismo economicista que eles entendiam envolver não somente a distinção entre infraestrutura/superestrutura nos escritos de Marx, como considerável parte da teoria marxista desenvolvida em meados do século vinte (LACLAU; MOUFFE, 1985, p. 1 e ss; HALL, 2019, p. 176 e ss). É explícita a preocupação de Laclau e Mouffe com relação à fragmentação--e mesmo dispersão--dos embates políticos, e uma dupla crise teórico-estratégica da esquerda.

Esta pequena digressão serve para elencar alguns fatores históricos e políticos que contribuíram ainda mais para a postulação das diferentes formas de articulação e conexão dos desejos e interesses, e de que maneira tendem a promover uma fragmentação dos embates políticos e formas de dominação (SPIVAK, 1988, p. 274 e ss). Spivak, porém, observara que, em paralelo a uma desconfiança à universalização da luta proletária como principal referencial teórico, político ou mesmo estratégico no que concerne aos embates emancipatórios, há também uma certa desconsideração do conceito de ideologia, quando não a sua desconsideração como um conceito que já não mais se encontra adequado ao diagnóstico da época (SPIVAK, 1988, p. 273 e ss; SPIVAK, 1999, p. 279 e ss).

Para autora, porém, afastar o conceito de ideologia ao vinculá-lo a uma compreensão específica de sujeito produz consequências problemáticas tanto no que diz espeito à teorização política com pretensões emancipatórias quanto na prática política: a luta de classes permanece sendo para ela uma bandeira de ampla relevância na contemporaneidade (SPIVAK, 1990c, p. 27 e ss). Uma consideração ampla e geral da luta dos trabalhadores como uma narrativa homogênea, cujo desenvolvimento segue uma dinâmica de contraposição constante ao poder estabelecido, normalmente contra as forças burguesas que se apropriam da estrutura estatal, corre sério risco de considerar também as sucessivas "realidades" e contextos que se desdobram em meio ao capitalismo globalizado. Spivak comenta o enunciado que daquela maneira situa a luta dos trabalhadores:

A aparente banalidade assinala uma negação. O enunciado ignora a divisão internacional do trabalho, um gesto que frequentemente caracteriza a teoria política pós-estruturalista. A menção à luta dos trabalhadores é sinistra em sua própria inocência; ela é incapaz de lidar com o capitalismo globalizado: a produção da subjetividade trabalhadora e do desemprego em meio às ideologias do Estado-nação no seu Centro; a progressiva subtração da classe trabalhadora, na Periferia, da apropriação de sua mais-valia e, desta forma, do seu treino "humanístico" no consumismo; e a presença em larga-escala do trabalho paracapitalista assim como do status estrutural heterogêneo da agricultura na Periferia. Ignorar a divisão internacional do trabalho; tornar a "Ásia" (ou neste momento também a "África") transparente (a menos que o sujeito seja explicitamente o "Terceiro Mundo"); reestabelecer o sujeito de direito do capital socializado - esses são problemas tanto do pós-estruturalismo quanto do estruturalismo (SPIVAK, 1988, p. 272) (1). A passagem acima reitera uma série de pontos que, segundo a autora, precisam ser...

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