Teoria Geral do Controle da Constitucionalidade
Autor | Ari Ferreira de Queiroz |
Ocupação do Autor | Doutor em Direito Constitucional |
Páginas | 241-255 |
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Entende-se por controle da constitucionalidade o conjunto de medidas, especialmente jurisdicionais, que podem ser tomadas para adequar os atos dos poderes públicos à constituição quanto aos seus requisitos formais subjetivos e objetivos e quanto ao seu conteúdo. É, como diz expressiva doutrina390, verdadeiro processo de fiscalização da constituição. No controle da constitucionalidade são analisadas questões como a competência dos participantes da elaboração do ato atacado, as regras do processo legislativo e o respeito aos limites do poder de legislar, entre outros aspectos relevantes para garantir a supremacia da constituição. Verifica alguma antinomia, impõe-se a anulação das normas colidentes, ou pelo menos de seus efeitos. Sob outro prisma, o controle da constitucionalidade abrange também a fiscalização contra a inércia do poder competente que deixa de editar as normas necessárias para dar a máxima efetividade à constituição.
Talvez, o primeiro traço histórico do controle da constitucionalidade poderia ser visto no famoso Bonham’s case, julgado pela Corte Inglesa em 1610. Basicamente, versava sobre suposto exercício ilegal da medicina pelo médico Thomas Bonham, segundo a lei criadora do órgão regulador – espécie de Conselho Nacional de Medicina – que, além de exigir exame de qualificação dos formados em uma cidade para trabalhar em outra, previa prisão e multa para os infratores, destinando metade do valor para o próprio Conselho.
Preso e multado, Thomas Bonham arguiu a nulidade da decisão do Conselho perante a Corte, alegando incompetência do Conselho Londrino para fiscalizar e punir médicos formados em Cambridge. Sem enfrentar, propriamente, o mérito, o juiz Edward Loke declarou a nulidade da lei afirmando: “Assim sendo, se qualquer ato do Parlamento der a alguém o direito de julgar de quaisquer questões que lhe forem apresentadas dentro dos seus domínios, não poderá julgar ação alguma em que seja parte, porque, conforme ficou dito acima, iniquum est aliquem suae rei esse judicem”391.
Por outras palavras, o juiz Loke considerava nula lei que possibilitava a alguém ser, ao mesmo tempo, juiz e parte, por contrariar o espírito do que hoje chamaríamos de constituição. Mesmo vencido, seu voto já apontava, um século antes do caso Marbury versus Madison392,
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de 1803, nos Estados Unidos, a prevalência de certas normas em relação a outras, de hierarquia inferior, mesmo ainda não tendo sido desenvolvido o conceito de constituição como lei fundamental.
Mas, o que tem sido aceito como precedente histórico do controle da constitucionalidade vem a ser esse famoso caso Marbury versus Madison, em que a Suprema Corte dos Estados Unidos examinou um writ of mandamus e declarou a sua incompetência para julgá-lo por não ser recurso, mas sim ação originária. A decisão foi tomada nos termos do voto do juiz John Marshall, cuja síntese é de que o Poder Judiciário tem o dever de se manifestar sobre a conformação da lei com a constituição e dar prevalência a esta em caso de colisão entre ambas.
A questão fundamental não versava propriamente sobre constitucionalidade. Na verdade, foi uma ação proposta perante a Suprema Corte por pessoas que se sentiram prejudicadas pelo presidente Thomas Jefferson que, ao suceder o adversário Adams, tornara sem efeito suas nomeações para cargos relevantes no serviço público antes que tomassem posse. Conta-se que nos últimos dias de seu mandato Adams nomeou dezenas de correligionários políticos para cargos públicos vitalícios, como juízes, caracterizando autêntico trem da alegria393, e encarregou John Marshall, que além de juiz da Suprema Corte era seu secretário de Estado, de dar posse aos apaniguados.
Marschall não teve tempo de cumprir a ordem. Seu sucessor foi James Madison, que recebeu do presidente Jefferson contraordem para não dar posse aos beneficiados, entre eles um certo Marbury, nomeado juiz de paz. Diante da recusa, Marbury teria sido orientado a impetrar mandado de segurança – nome atual do writ of mandamus – perante a Suprema Corte para compelir Madison a empossá-lo, e o fez em litisconsórcio com Denis Ramsay, Robert Townsend Hope e Willian Harper394. Na Suprema Corte, a ação foi distribuída justamente para o juiz Marschall, que, certamente, em termos atuais estaria impedido de atuar; Marschall tinha plena consciência do problema em suas mãos, sabendo que Jefferson não cumpriria a ordem que lhe fosse dada; por outro lado, se julgasse improcedente o pedido estaria reconhecendo a nulidade de atos do governo ao qual serviu e assim ajudou a praticar.
Em manobra espetacular na técnica jurídica, Marschall proferiu célebre voto reconhecendo, primeiramente, o direito dos impetrantes, para, na sequência, deixar de lhes conceder o mandamus por considerar incompetente a Suprema Corte, pois sua competência havia sido alterada por lei de 1789 para julgar a causa originariamente. Marschall entendeu que a constituição só outorgava competência para a Suprema Corte atuar em nível recursal e não podia ser ampliada por lei, que, assim, seria inconstitucional. Assim agindo, Marschall reconheceu a validade do ato do governo ao qual servira sem correr o risco de ver sua decisão descumprida, o que poderia gerar conflito entre os Poderes. Extrai-se de seu voto, conforme tradução de Ruy Barbosa em seus Comentários à Constituição Brasileira coligidos por Homero Pires395:
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Se o ato legislativo, inconciliável com a constituição, é nulo, ligará ele, não obstante a sua invalidade, os tribunais, obrigando-os a executarem-no? Ou, por outras palavras, dado que não seja lei, substituirá como preceito operativo, tal qual se o fosse? Seria subverter de fato o que em teoria se estabeleceu; e o absurdo é tal, logo à primeira vista, que poderíamos abster-nos de insistir.
Examinemo-lo, todavia, mais a fito. Consiste especificamente a alçada e a missão do Poder Judiciário em declarar a lei. Mas os que lhe adaptam as prescrições aos casos particulares, hão de, forçosamente, explaná-la e interpretá-la. Se duas leis se contrariam, aos tribunais incumbe definir-lhes o alcance respectivo. Estando uma lei em antagonismo com a constituição e aplicando-se à espécie a constituição e a lei, de modo que o tribunal tenha de resolver a lide em conformidade com a lei, desatendendo à constituição, ou de acordo com a constituição, rejeitando a lei, inevitável será eleger, entre os dois preceitos opostos, o que dominará o assunto. Isto é da essência do dever judicial.
Se, pois, os tribunais não devem perder de vista a constituição, e se a constituição é superior a qualquer ato ordinário do Poder Legislativo, a constituição e não a lei ordinária há de reger o caso, a que ambas dizem respeito. Destarte, os que impugnaram o princípio de que a constituição se deve considerar, em juízo, como lei predominante, hão de ser reduzidos à necessidade de sustentar que os tribunais devem cerrar os olhos à constituição, e enxergar a lei só. Tal doutrina aluiria os fundamentos de todas as constituições escritas. E equivaleria a estabelecer que um ato, de todo em todo inválido segundo os princípios e a teoria do nosso governo, é, contudo, inteiramente obrigatório na realidade. Equivaleria a estabelecer que, se a legislatura praticar o ato que lhe está explicitamente vedado, o ato, não obstante a proibição expressa, será praticamente eficaz.
Isto é o que se denomina de controle da constitucionalidade das leis e atos normativos, cujos contornos, no Brasil, são objeto deste capítulo.
Em geral, existem três técnicas de controle da constitucionalidade, sendo um por meio de órgão do Poder Judiciário, outro, órgão político396, e outro, combinando parte por meio de órgão judicial e parte por órgão político, por isso se diz sistema misto397. Há sistemas que permitem controle preventivo, durante a tramitação do processo legislativo, inclusive para dificultá-lo e evitar a aprovação da lei, enquanto outros só permitem a arguição de inconstitucionalidade de lei aprovada. Por fim, há sistemas que centralizam o controle em apenas um órgão, enquanto outros distribuem a competência entre órgãos dispersos. O controle da constitucionalidade deve ser classificado de acordo com o momento, com o órgão e com o sistema propriamente dito ou com o modo pelo qual se desenvolve, e abrange o processo e procedimentos a serem utilizados, bem como os efeitos da declaração de inconstitucionalidade.
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Quanto ao momento, o controle da constitucionalidade pode ser preventivo ou repressivo. Diz-se preventivo o controle que se faz durante o desenvolvimento do processo legislativo, por isso também denominado de controle concomitante; repressivo, é o controle de leis em vigor. Pelo sistema preventivo, os interessados no controle da constitucionalidade podem acompanhar e se manifestar em cada fase do processo legislativo, propondo as medidas necessárias, inclusive medidas judiciais, para evitar que seja aprovada lei com vício de inconstitucionalidade.
É, geralmente, o que faz a Comissão de Constituição e Justiça do Poder Legislativo, que emite parecer sobre a constitucionalidade ou...
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