Como a teoria geral do direito pode explicar a função do compliance no direito do consumidor? a natureza das regras de compliance à luz da teoria da norma jurídica e a relação jurídica trilateral de consumo

AutorMarcel Edvar Simões
Páginas53-71
COMO A TEORIA GERAL DO DIREITO PODE
EXPLICAR A FUNÇÃO DO COMPLIANCE NO
DIREITO DO CONSUMIDOR? A NATUREZA DAS
REGRAS DE COMPLIANCE À LUZ DA TEORIA
DA NORMA JURÍDICA E A RELAÇÃO JURÍDICA
TRILATERAL DE CONSUMO1
Marcel Edvar Simões
Doutor e Mestre em Direito Civil pela Faculdade de Direito da Universidade de São
Paulo – Largo de São Francisco. Professor de Direito Civil e Direito Digital na Univer-
sidade Paulista. Coordenador-Adjunto do Grupo de Estudos Avançados em Direito
Agrário – GEAGRO junto à Fundação Arcadas, de apoio à Faculdade de Direito da
Universidade de São Paulo. Professor e Coordenador do Curso de Pós-Graduação
em Direito Registral e Notarial no Instituto de Direito Público de São Paulo – IDP/SP.
Membro do Instituto dos Advogados de São Paulo (IASP) e do Instituto Brasileiro de
Estudos de Responsabilidade Civil (IBERC). Procurador Federal junto à Advocacia-Geral
da União. Procurador-Regional Substituto do INCRA em São Paulo. Ex-Procurador
Chefe do IBAMA em São Paulo. Ex-Diretor de Desaos Sociais no Âmbito Familiar do
Ministério dos Direitos Humanos.
Sumário: 1. Teoria geral do direito, compliance e direito do consumidor – 2. A natureza jurídica
das chamadas regras de compliance à luz da teoria da norma jurídica – 3. Compliance e relação
jurídica de consumo. A relação jurídica de consumo na dicotomia entre direito privado e direito
público – 4. Conclusão – 5. Referências.
1. TEORIA GERAL DO DIREITO, COMPLIANCE E DIREITO DO
CONSUMIDOR
A Teoria Geral do Direito se ocupa, classicamente, de um conjunto de proble-
mas cuja delimitação se f‌irmou, na tradição jurídica ocidental, no século XIX. No
cerne desse conjunto, como é cediço, está a dicotomia entre Direito objetivo e direito
subjetivo2, a partir da qual as diversas questões e conceitos da Teoria do Direito são
1. O autor elabora o presente trabalho com o coração enternecido, ao se recordar – exatos vinte anos depois
– de sua primeira atividade prof‌issional, como estagiário junto à Promotoria de Justiça do Consumidor da
Capital – São Paulo/SP.
2. Aqui, há um paradoxo: trata-se de dicotomia apresentada ao estudante logo no início do curso de Gradu-
ação em Direito (em disciplinas de Introdução ao Estudo do Direito ou Teoria Geral do Direito), mas cuja
abstração inerente e problemas derivados demandariam uma retomada também em momento posterior,
para uma compreensão mais profunda e crítica. Veja-se, no decorrer deste artigo, o que se af‌irma sobre as
dif‌iculdades em distinguir as normas jurídicas (Direito objetivo) do regulamento de interesses trazido no
bojo das relações jurídicas (direito subjetivo) derivadas, por exemplo, de atos-regra (como os denomina
Fábio Konder Comparato. Cf. A natureza da sociedade anônima e a questão da derrogabilidade das regras
legais de quorum nas assembléias gerais e reuniões do conselho de admnistração. Novos ensaios e pareceres
EBOOK COMPLICE RELACAO DE CONSUMO.indb 53EBOOK COMPLICE RELACAO DE CONSUMO.indb 53 14/12/2021 15:08:3914/12/2021 15:08:39
MARCEL EDVAR SIMÕES
54
encadeados: norma, sistema jurídico, validade, fato jurídico, relação jurídica, poderes
e deveres jurídicos, fontes do Direito, interpretação, dentre outros. Embora as grandes
linhas desse arcabouço conceitual tenham sido traçadas, conforme já mencionado,
no século XIX, elas continuam a ser utilizadas de modo mais ou menos ef‌iciente,
isto é, ainda com bom grau de operacionalidade, tanto pelos teóricos – para descre-
ver o fenômeno jurídico –, como pelos sujeitos que atuam prof‌issionalmente com
o Direito (por vezes chamados, de modo criticável, de operadores do Direito) – para
interpretar e aplicar as normas jurídicas, almejando a resolução dos casos concretos.
Contudo, é preciso reconhecer que, em pleno século XXI, se essas f‌iguras próprias da
Teoria Geral do Direito permanecem em boa medida relevantes, não estão imunes a
críticas, revisões, atualizações e aprofundamentos evolutivos. O presente trabalho
se propõe a explorar esse cenário, a partir de um exemplo particular: a compreensão
das denominadas regras de compliance, especif‌icamente do papel que desempenham
no âmbito setorial do Direito do Consumidor.
De início, duas observações precisam ser feitas. Como primeira observação,
cumpre assinalar que as regras de compliance internas a uma organização empresarial
se inserem, precisamente, no bojo de um grupo de f‌iguras que desaf‌iam os termos
mais tradicionais da teoria das fontes do Direito (em especial, sua divisão em fontes
estatais e fontes privadas como duas classes de separação relativamente simples3),
de direito empresarial. Rio de Janeiro: Forense, 1981, p. 121). Naturalmente, há críticas de diversos matizes
acerca da dicotomia em apreço, desde as críticas kelsenianas ao conceito de direito subjetivo e sua utilidade
(vendo-o apenas como um ref‌lexo ilusório do Direito objetivo – cf. Reine Rechtslehre. Trad. port. de João
Baptista Machado. Teoria pura do direito. 6. ed. Arménio Amado: Coimbra, 1984, p. 264-265) até a perspec-
tiva baseada no método de Michel Foucault, no sentido de que o próprio Direito objetivo não existe, a não
ser como um nome que designa não uma substância ou essência, mas sim certas práticas sociais jurídicas
que, ocorrendo concretamente em determinado espaço e em certa época, seriam sempre particulares (cf.
interessante exposição sobre a perspectiva de Foucault feita por Marcelo Gomes Sodré – com suporte em
lição de François Ewald – constante de A construção do direito do consumidor – Um estudo sobre as origens
das leis principiológicas de defesa do consumidor. São Paulo: Atlas, 2009, p. 60-64. Com relação especif‌i-
camente à utilidade instrumental da noção de direito subjetivo, acompanhamos a observação de Georges
Abboud, Henrique Carnio e Rafael Tomaz de Oliveira no sentido de que a manutenção desse conceito no
discurso jurídico cumpre a importante função de evitar o deslocamento do Estado para o centro de todo
o modelo (em substituição às pessoas), procurando prevenir, com isso, o risco de se tornar um sistema
autoritário e auxiliando na manutenção do regime democrático (cf. Introdução ao direito – Teoria, f‌ilosof‌ia
e sociologia do direito. 5. ed. São Paulo: Ed. RT, 2020, p. 436). Acompanhamos essa observação, mas lem-
brando também da af‌irmação de E. B. Pashukanis, no sentido de ser evidente para a perspectiva marxista
que “o sujeito jurídico das teorias do direito se encontra numa relação muito íntima com o proprietário
das mercadorias” (cf.     .     .
Trad. port. de Paulo Bessa. A teoria geral do direito e o marxismo. Rio de Janeiro: Renovar, 1989, p. 3). Essa
af‌irmação – que E. B. Pashukanis faz como uma descrição necessária da forma jurídica – trazemos à baila
como uma advertência, no sentido que a atribuição de direitos a sujeitos não pode se fazer em condições
de apenas suposta igualdade, mas na realidade mascarando uma real concentração de poderes, benefícios e
prerrogativa nas mãos de poucos membros da sociedade.
3. Segundo uma visão doutrinária tradicional, são reconhecidas como fontes formais do Direito (rectius, de
revelação de normas jurídicas) a lei, o costume a jurisprudência e a doutrina (esta última, de modo controvertido
e, embora tida como fonte pela visão de Savigny, atualmente predomina o entendimento que não tem esse
caráter – embora tenha tido em outros momentos da história da humanidade, como foi o caso, por exemplo,
da communis opinio doctorum em Roma, com a força obrigatória conferida sob o Imperador Adriano). Cf.,
expondo (criticamente) essa visão doutrinária tradicional quadripartite sobre a teoria das fontes: Georges
EBOOK COMPLICE RELACAO DE CONSUMO.indb 54EBOOK COMPLICE RELACAO DE CONSUMO.indb 54 14/12/2021 15:08:3914/12/2021 15:08:39

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT