Teoria geral dos direitos fundamentais

AutorEduardo dos Santos
Páginas209-265
CAPÍTULO IX
TEORIA GERAL DOS DIREITOS
FUNDAMENTAIS
1. INTRODUÇÃO
Este capítulo busca sistematizar uma teoria geral dos direitos fundamentais, notadamente
uma teoria geral dos direitos fundamentais conforme a ordem jurídica brasileira. Assim, tem-se
por objetivo sistematizar, em primeiro lugar, uma teoria geral que seja adequada ao constitu-
cionalismo brasileiro, em que pese muitas vezes tenhamos sido inspirados e inf‌luenciados por
autores, doutrinas e jurisprudências estrangeiras, especialmente, em face de sua signif‌icante
recepção e adoção pelo direito pátrio e pelos intensos e constantes diálogos constitucionais
(transconstitucionalismo).1 Ademais, a teoria geral aqui apresentada tem por escopo siste-
matizar os aspectos centrais da dogmática constitucional dos direitos fundamentais, isto é,
do (sub)sistema constitucional dos direitos e garantias fundamentais, de modo que o estudo
da parte específ‌ica dos direitos fundamentais (direitos individuais e coletivos, direitos sociais,
direitos de nacionalidade e direitos políticos), resguardadas as especif‌icidades que apontaremos
quando os estudarmos de modo específ‌ico, deve ser feito à luz dessa teoria geral, sob pena
de graves incoerências sistêmicas. Além do mais, por se tratar de um manual, muitas vezes
trabalhamos os temas a partir de perspectivas doutrinárias com as quais discordamos (espe-
cialmente as de Robert Alexy),2 em razão de serem majoritárias ou adotas pela jurisprudência
superior, contudo, na medida do possível, f‌izemos as críticas necessárias a essas perspectivas.
2. DELIMITAÇÃO CONCEITUAL
É preciso deixar claro, desde o início, que não há um consenso universal em relação ao
uso do termo “direitos fundamentais”. A doutrina e a jurisprudência muitas vezes utilizam-se
de diversas expressões (liberdades públicas, direitos individuais, direitos subjetivos, direitos
públicos subjetivos, direitos humanos, direitos do homem, direitos da pessoa humana etc.)
para referirem-se àquilo que identif‌icamos como direitos fundamentais.3
Ocorre que a própria Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 utiliza-
-se desses nomen juris para referir-se aos direitos fundamentais, haja vista que o legislador
muitas vezes é atécnico, devendo a doutrina e a jurisprudência sistematizar e interpretar
esses termos de modo a garantir a coerência do sistema jurídico.
Nessa perspectiva, a doutrina mais especializada vem formando certo consenso
conceitual no sentido de que direitos fundamentais são os direitos constitucionais da
pessoa humana que buscam protege-la e/ou promove-la de modo a assegurar sua digni-
1. NEVES, Marcelo. Transconstitucionalismo. São Paulo: Martins Fontes, 2009.
2. ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. São Paulo: Malheiros, 2008.
3. Neste sentido, a crítica de Paulo Bonavides: “A primeira questão que se levanta com respeito à teoria dos direitos fundamentais
é a seguinte: podem as expressões direitos humanos, direitos do homem e direitos fundamentais ser usadas indiferentemen-
te? Temos visto neste tocante o uso promíscuo de tais denominações na literatura jurídica, ocorrendo porém o emprego
mais frequente de direitos humanos e direitos do homem entre autores anglo-americanos e latinos, em coerência aliás com
a tradição e a história, enquanto a expressão direitos fundamentais parece f‌icar circunscrita à preferência dos publicistas
alemães”. BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 28 ed. São Paulo: Malheiros, 2013, p. 578.
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dade.4 Esta é a corrente à qual nos f‌iliamos e que, ao que nos parece, entre os constitu-
cionalistas é majoritária.
Ora, os direitos da pessoa humana comportam diversos âmbitos normativos de proteção,
sendo que quando constitucionais e pautados na dignidade da pessoa humana, chamam-se
direitos fundamentais. Assim, pode-se dizer que, tecnicamente, os direitos da pessoa humana
possuem nomen juris distintos conforme a posição normativa que ocupam.
Num sentido geral, os direitos da pessoa humana, enquanto gênero, ainda recebem o
nome de direitos humanos lato sensu, ou direitos do homem lato sensu e comportam espécies
identif‌icáveis conforme a posição normativa. Dentre essas espécies, destacam-se os direitos
naturais, os direitos humanos e os direitos fundamentais, muitas vezes confundidos pela
doutrina e pela jurisprudência.
Os direitos naturais, também chamados de direitos do homem stricto sensu, são aqueles
identif‌icados pela f‌ilosof‌ia jusnaturalista e que consagram os direitos essenciais da pessoa
humana em face de uma ordem natural, (jusnaturalismo clássico), de uma ordem divina
(jusnaturalismo medieval) ou da natureza racional do ser humano (jusnaturalismo moder-
no), direitos esses que independem de qualquer espécie de positivação.5
Os direitos humanos ou direitos humanos stricto sensu são os direitos da pessoa hu-
mana que buscam assegurar-lhe uma vida digna e que estão positivados na ordem jurídica
internacional, isto é, nas declarações, tratados e convenções internacionais de direitos hu-
manos. Ref‌letem a preocupação da comunidade internacional com a proteção e promoção
da dignidade da pessoa humana, independentemente de nacionalidade ou qualquer outra
vinculação política, cultural ou ideológica.6
Os direitos fundamentais são os direitos da pessoa humana que buscam protegê-la
e promovê-la de modo a assegurar-lhe a dignidade e que se encontram resguardados pela
ordem constitucional. Trata-se de termo recente na teoria do direito, mais precisamente
cunhado na França, em 1770, pelo movimento político que culminou, juridicamente, com
a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789.7
4. SARLET, Ingo Wolfgang. A ef‌icácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva
constitucional. 10. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2010.
5. DOS SANTOS, Eduardo R. O Pós-positivismo jurídico e a normatividade dos princípios jurídicos. Belo Horizonte: D’Plácido,
2014.
6. MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Curso de Direitos Humanos. São Paulo: Método, 2014.
7. “El término “derechos fundamentales”, droits fondamentaux, aparece en Francia hacia el año 1770 en el marco del
movimiento político y cultural que condujo a la Declaración de los Derechos del Hombre y del Ciudadano, de 1789. La
expresión ha alcanzado luego especial relieve en Alemania, donde bajo la denominación de los Grundrechte se ha articu-
lado, de modo especial tras la Constitución de Weimar de 1919, el sistema de relaciones entre el individuo y el Estado,
en cuanto fundamento de todo el orden jurídico-político. Este es su sentido en la actual Grundgesetz de Bonn, la Ley
Fundamental de la República Federal de Alemania promulgada en el año 1949 […] la expresión “derechos fundamen-
tales” y su formulación jurídico-positiva como derechos constitucionales son un fenómeno relativamente reciente…”.
PÉREZ LUÑO, Antonio-Enrique. Los Derechos Fundamentales. 10 ed. Madrid: Tecnos, 2011, p. 27-28.
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CAPíTulo IX • TEorIA GErAl DoS DIrEIToS FuNDAmENTAIS
Feitos esses esclarecimentos iniciais, ainda é importante def‌inirmos alguns outros
termos correntes que muitas vezes são usados equivocadamente, de modo atécnico, para
referir-se aos direitos fundamentais. Vejamos os principais:
Liberdades públicas: essa expressão surgiu no f‌inal do séc. XVIII na França sendo utili-
zada expressamente já na Constituição de 1793, em seu artigo 9º, e em outras Constituições
da França.8 O termo é utilizado para designar os direitos de defesa, isto é, o conjunto de
direitos individuais que a pessoa tem para se defender da ingerência do Estado, sendo direitos
negativos, que exigem abstenções estatais. Assim, as liberdades públicas resguardam ambi-
ências de liberdades do indivíduo nas quais o Estado não pode ingerir/intervir. No entanto,
tal expressão é muito limitada para designar os direitos fundamentais, compreendendo
apenas uma parcela deles, vez que evidentemente não abarca os direitos sociais, culturais e
econômicos, por exemplo.9
Direitos individuais: expressão que designa a individualidade do direito, indica que o
direito tem como titular o indivíduo considerado de maneira isolada. Esses direitos marcaram,
especialmente, as primeiras declarações de direitos, notadamente aquelas do f‌inal do séc.
XVIII, nos Estados Unidos da América do Norte e na França. Sempre estiveram presentes
em nossa ordem constitucional, expressando muitos dos direitos fundamentais referentes
à liberdade, à vida, à propriedade etc.10 Entretanto, o termo não é suf‌iciente para designar
os direitos fundamentais, sobretudo, em nossa ordem constitucional atual, vez que não
engloba os direitos transindividuais (difusos e coletivos), por exemplo.
Direitos subjetivos: tecnicamente, indicam as prerrogativas conferidas ao indivíduo
de acordo com as normas do ordenamento jurídico, podendo seus titulares deles dispor
livremente, renunciá-los, transferi-los etc. Bem, em primeiro lugar, há de se esclarecer que
os direitos fundamentais possuem uma dimensão subjetiva (de direito subjetivo), contu-
do estão sujeitos a uma regulamentação jurídica especial, não podendo ser renunciados,
transferidos etc. Ademais, esse termo não é tecnicamente adequado para designar os direitos
fundamentais, vez que a expressão “direitos subjetivos” é muito mais ampla e engloba muitas
outras categorias de direitos, inclusive direitos infraconstitucionais, o que conduziria a uma
banalização da abordagem dos direitos fundamentais. Por outro lado, trata-se de termo que
pode (feitas as devidas observações) caracterizar os direitos fundamentais.
Direitos públicos subjetivos: consistem nas prerrogativas subjetivas conferidas ao indi-
víduo em face do Estado. São direitos originados no âmbito da dogmática do direito público
alemão do f‌inal do séc. XIX e que têm o condão de limitar o Poder do Estado em razão (em
benefício) de certa esfera de interesse privado, situando os direitos da pessoa humana numa
perspectiva juspositiva de relação entre Estado e pessoa. A compreensão dos direitos público
subjetivos, também, não se compatibiliza tecnicamente com os direitos fundamentais no
sistema jurídico contemporâneo, pois quedam-se “superados pela própria dinâmica eco-
nômico-social dos tempos hodiernos, em que o desfrute de qualquer direito fundamental
reclama uma atuação positiva do poder público”,11 ou ao menos o desfrute pleno e amplo
da maior parte dos direitos fundamentais.
8. PÉREZ LUÑO, Antonio-Enrique. Derechos Humanos, Estado de Derecho y Constitución. 7 ed. Madrid: Tecnos, 2001,
p. 35 e ss.
9. CUNHA JR. Dirley da. Curso de Direito Constitucional. 9 ed. Salvador: Juspodivm, 2015, p. 449.
10. Ibidem, idem.
11. Ibidem, p. 450.
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