A Teoria Geral do Processo do Trabalho ? os Princípios do Processo do Trabalho

AutorCarolina Tupinambá
Ocupação do AutorMestre e Doutora em Direito Processual. Professora Adjunta de Processo do Trabalho e Prática Processual Trabalhista na UERJ
Páginas51-67

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3.1. O papel dos princípios como norma jurídica

A adequação do instrumental apto a dar eficiência ao direito material cujo conteúdo detenha peculiaridades, conforme apresentado no item anterior, pode ser facilitada a partir de estrutura própria de princípios que determinarão os caminhos de adequação às garantias processuais asseguradas pelo Direito supranacional e pela Constituição.

Em verdade, ao longo de todo este trabalho, por diversas vezes usaremos os termos garantias e princípios como quase sinônimos, no que disser respeito ao direito processual, uma vez que ambos os termos, garantias processuais e princípios processuais buscam exprimir a mesma ideia, qual seja, a de proteção, de salvaguarda91. Em outras palavras, utilizar-se-ão como sinônimas as expressões “princípios”, “garantias” e, por vezes, inclusive, “direitos”, sempre visando designar o conjunto de instrumentos de proteção positivados, indiferentemente de terem sido reconhecidos como fundamentais (positivados pelo direito interno estatal) ou humanos (positivados em tratados internacionais).

Antes de delinear os princípios fundamentais processuais que se sugere possam reger o processo do trabalho, convém brevemente apresentar o papel desempenhado pela principiologia na compreensão dos mais variados ramos do direito92.

É possível elencar, tendo como ponto de partida as lições de Canotilho93, as principais funções dos princípios, máxime os constitucionais, que abrigarão o que tomaremos por “princípios fundamentais do processo94, quais sejam: normogenética, sistêmica, orientação, vinculante, interpretativa e supletiva.

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A função normogenética significa que os princípios constitucionais são predeterminantes do regramento jurídico, ou seja, constituem a própria ratio ou os fundamentos da ordem jurídica: são os vetores que devem direcionar a elaboração, o alcance e a aplicação das normas jurídicas. Assim, todas as normas, mesmo as constitucionais, devem obrigatoriamente manter identidade e coerência de conteúdo com os princípios constitucionais, pelo que as eventualmente inconciliáveis serão ilegítimas.

A função sistêmica enuncia que o exame dos princípios constitucionais permite a visão universal e unitária do texto constitucional, o que importa na unidade do sistema jurídico fundamental, na integração do Direito, na harmonia em sua aplicação e na superação de aparentes antinomias existentes no ordenamento jurídico entre os próprios princípios, entre os princípios e as normas jurídicas e entre estas.

A função orientadora quer dizer que os princípios constitucionais, e os princípios fundamentais do processo em particular, devem ser tidos por mandamentos direcionadores da concretização da vontade constituinte, servindo de norte à criação legislativa e à aplicação de todas as normas jurídicas, tanto nas relações privadas como no exercício das funções públicas administrativa e jurisdicional.

A função vinculante expressa que todas as regras do sistema jurídico estão presas aos princípios que as inspiraram, devendo refletir o significado e o conteúdo desses. Consequentemente, a validade das normas jurídicas e de sua aplicação pelos Poderes Públicos estará vinculada a sua conformidade aos princípios constitucionais.

Por sua vez, a função interpretativa dos princípios constitucionais tem dupla acepção. A primeira no sentido de que devem orientar a interpretação atualizada dos próprios princípios constitucionais, considerando que os valores éticos, sociais e políticos são cambiantes, assim devendo os princípios, sempre que possível, estar aderentes à sociedade contemporânea, no momento de sua aplicação. Em segundo lugar, significa que se deve proceder à interpretação das demais normas jurídicas à luz dos princípios constitucionais, ou seja, o ajuizamento do sentido, da dimensão e do conteúdo das regras jurídicas deve ser feito em harmonia com aqueles.

Por fim, a função supletiva dos princípios constitucionais exprime que constituem verdadeiros preceitos normativos de interação do ordenamento jurídico, suplementando a aplicação do Direito a situações fáticas que ainda não foram objeto de regulamento próprio. Assim, os princípios constitucionais, além de nortearem a aplicação do regramento jurídico, são aplicados diretamente aos casos concretos nas hipóteses de insuficiência ou falta de norma jurídica peculiar.

Com relação à teoria geral dos princípios, impende reverenciarmos o trabalho de Humberto Ávila. Primeiramente, acerca da diferenciação entre regras, princípios e postulados, o autor afirma que as regras consubstanciam dimensão imediatamente comportamental; enquanto os princípios atuariam em âmbito normativo e os postulados estruturariam a interpretação e aplicação de princípios e regras mediante a exigência, mais ou menos específica, de relações entre elementos com base em critérios. Coloca, ainda, que as regras são normas imediatamente descritivas, primariamente retrospectivas e com pretensão de decidibilidade e abrangência, para cuja aplicação se exige a avaliação da correspondência, sempre centrada na finalidade que lhes dá suporte. Os princípios, axiologicamente sobrejacentes, atuam entre a construção conceitual da descrição normativa e a construção conceitual dos fatos95.

A conformação dos princípios como espécies do gênero norma jurídica é relativamente recente, pois, como assevera Luís Roberto Barroso, os princípios tiveram que “conquistar o status de norma jurídica, superando a crença de que teriam uma dimensão puramente axiológica, ética, sem eficácia jurídica ou aplicabilidade direta e imediata”96. Neste contexto, é correto afirmar que restou ultrapassado o entendimento minimalista que se limitava a atribuir aos princípios um caráter meramente supletivo das regras, limitando sua incidência às hipóteses de lacuna97.

Para Dworkin, entre regras e princípios há, em primeiro lugar, uma distinção lógica, pois regras são normas que se aplicam de forma absoluta, em uma modalidade nomeada pelo autor de “tudo ou nada” (all-or-nothing), isto é, se os pressupostos fáticos de incidência da norma se fizerem presentes, a regra, desde que válida, deve ser obrigatoriamente aplicada98.

Os princípios, por seu turno, atuam de forma diversa, eis que “não apresentam consequências jurídicas que se seguem

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automaticamente quando as condições são dadas”99. Para o autor, as regras são de aplicação imperativa, comportando exceções que, contudo, devem ser arroladas no seu próprio enunciado para dar maior completude e precisão ao seu sentido. Desta forma, nas palavras de Dworkin, “dados os fatos que uma regra estipula, então ou a regra é válida, e neste caso a resposta que ela fornece deve ser aceita, ou não é válida, e neste caso em nada contribui para a decisão”100. Os princípios, ao revés, não possuem aplicação absoluta e irrestrita, podendo conviver uns com outros nos mesmos casos concretos.

Para Ávila, as regras podem ser diferenciadas dos princípios, principalmente quanto ao modo como prescrevem o comportamento. As regras são imediatamente descritivas, na medida em que estabelecem obrigações, permissões e proibições mediante a descrição da conduta a ser cumprida. Já os princípios são normas imediatamente finalistas, uma vez estabelecerem um estado de coisas cuja promoção gradual depende dos efeitos decorrentes da adoção de comportamentos a ela necessários. Os princípios são normas cuja qualidade frontal é, justamente, a determinação da realização de um fim juridicamente relevante, ao passo que a característica dianteira das regras seria mesmo a previsão do comportamento101.

Dworkin apresenta, ainda, outra distinção marcante entre as duas modalidades de norma jurídica, qual seja, a dimensão de atuação. Assim, os princípios podem ser aplicados de forma parcial justamente por possuírem dimensão em que permitida a avaliação de suas respectivas relevâncias. As regras não teriam esta dimensão. Se duas regras entram em real conflito, uma delas não seria válida. Em suma, os princípios possuiriam maior capacidade expansiva do que as regras, incidindo em hipóteses muito mais abrangentes.

Robert Alexy, partindo dos elementos trazidos por Dworkin, destrinchou com mais percuciência a doutrina sobre o tema. Segundo o jurista alemão, regras e princípios se distin-guiriam qualitativamente. De acordo com Alexy, os princípios seriam normas que ordenam que algo seja realizado na maior medida possível dentro das possibilidades jurídicas e fáticas existentes. Nestes termos, Alexy define os princípios como mandados de otimização: normas que determinam que algo seja realizado na maior medida do possível frente às limitações impostas por outras normas ou pela situação fática apresentada102. Uma das peculiaridades dos princípios, assevera Alexy, revela-se justamente no fato de que sua aplicação pode se dar de modo gradual, de acordo com os percalços existentes.

Sobre o tema, dentre múltiplos critérios distintivos possíveis entre regras e princípios, Luis Roberto Barroso e Ana Paula de Barcellos destacam três, quais sejam: (i) o conteúdo; (ii) a estrutura normativa; e (iii) as particularidades da aplicação103.

Quanto ao conteúdo, os princípios identificam valores a serem preservados ou fins a serem alcançados, trazendo em si, via de regra, um conteúdo axiológico ou uma decisão política. A questão relativa a...

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