Terceirização trabalhista
Autor | Mauricio Godinho Delgado |
Páginas | 534-585 |
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A expressão terceirização resulta de neologismo oriundo da palavra terceiro, compreendido como intermediário, interveniente. Não se trata, seguramente, de terceiro, no sentido jurídico, como aquele que é estranho a certa relação jurídica entre duas ou mais partes. O neologismo foi construído pela área de administração de empresas, fora da cultura do Direito, visando enfatizar a descentralização empresarial de atividades para outrem, um terceiro à empresa.
Outro neologismo criado para designar o fenômeno (também externo ao Direito) foi terciarização, referindo-se ao setor terciário da economia, composto pelos serviços em geral, onde se situam as empresas terceirizantes. Contudo, este epíteto não chegou a se solidificar na identificação do fenômeno social, econômico e justrabalhista aqui examinado.
Para o Direito do Trabalho terceirização é o fenômeno pelo qual se dissocia a relação econômica de trabalho da relação justrabalhista que lhe seria correspondente. Por tal fenômeno insere-se o trabalhador no processo produtivo do tomador de serviços sem que se estendam a este os laços justrabalhistas, que se preservam fixados com uma entidade interveniente. A terceirização provoca uma relação trilateral em face da contratação de força de trabalho no mercado capitalista: o obreiro, prestador de serviços, que realiza suas atividades materiais e intelectuais junto à empresa tomadora de serviços; a empresa terceirizante, que contrata este obreiro, firmando com ele os vínculos jurídicos trabalhistas pertinentes; a empresa tomadora de serviços, que recebe a prestação de labor, mas não assume a posição clássica de empregadora desse trabalhador envolvido.
O modelo trilateral de relação socioeconômica e jurídica que surge com o processo terceirizante é francamente distinto do clássico modelo empregatício, que se funda em relação de caráter essencialmente bilateral. Essa dissociação entre relação econômica de trabalho (firmada com a empresa tomadora) e relação jurídica empregatícia (firmada com a empresa terceirizante) traz graves desajustes em contraponto aos clássicos objetivos tutelares e redistributivos que sempre caracterizaram o Direito do Trabalho ao longo de sua história.
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Por se chocar com a estrutura teórica e normativa original do Direito do Trabalho esse novo modelo sofre restrições da doutrina e jurisprudência justrabalhistas, que nele tendem a enxergar uma modalidade excetiva de contratação de força de trabalho. O modelo também — especialmente se exacerbado — afronta a matriz humanística e social da Constituição de 1988, em particular os seus princípios constitucionais do trabalho e os objetivos fundamentais que elencou para a República Federativa do Brasil, sem contar sua concepção de sociedade civil democrática e inclusiva.1
Evolução Histórica no Brasil — A terceirização é fenômeno relativamente novo no Direito do Trabalho do País, assumindo clareza estrutural e amplitude de dimensão apenas nas últimas três décadas do século XX no Brasil.
A CLT fez menção a apenas duas figuras delimitadas de subcontratação de mão de obra: a empreitada e subempreitada (art. 455), englobando também a figura da pequena empreitada (art. 652, “a”, III, CLT). À época de elaboração da CLT, como se sabe (década de 1940), a terceirização não constituía fenômeno com a abrangência assumida nos últimos trinta anos do século XX, nem sequer merecia qualquer epíteto designativo especial.
Afora essas ligeiras menções celetistas (que, hoje, podem ser inter-pretadas como referências incipientes a algo próximo ao futuro fenômeno terceirizante), não despontaram outras alusões de destaque à terceirização em textos legais ou jurisprudenciais das primeiras décadas de evolução do ramo justrabalhista brasileiro2. Isso se explica pela circunstância de o fato social da terceirização não ter tido, efetivamente, grande significação socioeconô-mica nos impulsos de industrialização experimentados pelo País nas distintas décadas que se seguiram à acentuação industrializante iniciada nos anos de 1930/40. Mesmo no redirecionamento internacionalizante despontado na economia nos anos 1950, o modelo básico de organização das relações de produção manteve-se fundado no vínculo bilateral empregado-empregador, sem notícia de surgimento significativo no mercado privado da tendência à formação do modelo trilateral terceirizante.
Em fins da década de 1960 e início dos anos 70 é que a ordem jurídica instituiu referência normativa mais destacada ao fenômeno da terceirização
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(ainda não designado por tal epíteto nessa época, esclareça-se). Mesmo assim tal referência dizia respeito apenas ao segmento público (melhor definindo: segmento estatal) do mercado de trabalho — administração direta e indireta da União, Estados e Municípios. É o que se passou com o Decreto-Lei n. 200/67 (art. 10) e Lei n. 5.645/70.
A partir da década de 1970 a legislação heterônoma incorporou um diploma normativo que tratava especificamente da terceirização, estendendo-a ao campo privado da economia: a Lei do Trabalho Temporário (Lei n. 6.019/74). Tempos depois, pela Lei n. 7.102/83, autorizava-se também a terceirização do trabalho de vigilância bancária, a ser efetuada em caráter permanente (ao contrário da terceirização autorizada pela Lei n. 6.019/74, que era temporária).
Tão importante quanto essa evolução legislativa para o estudo e compreensão do fenômeno seria o fato de que o segmento privado da economia, ao longo dos últimos 30 anos do século XX, passou a incorporar, crescentemente, práticas de terceirização da força de trabalho, independentemente da existência de texto legal autorizativo da exceção ao modelo empregatício clássico. É o que se percebia, por exemplo, com o trabalho de conservação e limpeza, submetido a práticas terceirizantes cada vez mais genéricas no desenrolar das últimas décadas.
A jurisprudência trabalhista, nos anos de 1980 e 90, se debruçou sobre o tema, que se generalizava com frequência cada vez mais significativa no âmbito do mercado laborativo do País. Nesse contexto, ao lado da multiplici-dade de interpretações jurisprudenciais lançadas nas decisões ocorridas nas últimas décadas, o TST editou duas súmulas de jurisprudência uniforme, a de n. 256, de 1986, e a de n. 331, de dezembro de 1993 (esta última produzindo revisão da anterior Súmula 256).
Como é comum ao conhecimento acerca de fenômenos novos, certo paradoxo também surge quanto ao estudo do presente caso. É que se tem, hoje, clara percepção de que o processo de terceirização tem produzido transformações inquestionáveis no mercado de trabalho e na ordem jurídica trabalhista do País. Falta, contudo, ao mesmo tempo, a mesma clareza quanto à compreensão da exata dimensão e extensão dessas transformações. Faltam, principalmente, ao ramo justrabalhista e seus operadores os instrumentos analíticos necessários para suplantar a perplexidade e submeter o processo sociojurídico da terceirização às direções essenciais do Direito do Trabalho, de modo a não propiciar que ele se transforme na antítese dos princípios, institutos e regras que sempre foram a marca civilizatória e distintiva desse ramo jurídico no contexto da cultura ocidental3.
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O avanço do processo de terceirização no mercado de trabalho brasileiro das últimas décadas tem desafiado a hegemonia da fórmula clássica de relação empregatícia bilateral, expressa nos arts. 2º, caput, e 3º, caput, da CLT.
Uma singularidade desse desafio crescente reside no fato de que o fenômeno terceirizante tem se desenvolvido e alargado sem merecer, ao longo dos anos, cuidadoso esforço de normatização pelo legislador pátrio. Isso significa que o fenômeno tem evoluído, em boa medida, à margem da normatividade heterônoma estatal, como um processo algo informal, situado fora dos traços gerais fixados pelo Direito do Trabalho do País. Tratase de exemplo marcante de divórcio da ordem jurídica perante os novos fatos sociais, sem que desponte obra legiferante consistente para sanar tal defasagem jurídica. Apenas em 2017 é que surgiu diploma que enfrentou mais abertamente o fenômeno da terceirização (Lei n. 13.467/2017), no contexto da denominada reforma trabalhista; porém, lamentavelmente, dentro do espírito da reforma feita, o diploma jurídico escolheu o caminho da desregulação do fenômeno socioeconômico e jurídico, ao invés de se postar no sentido de sua efetiva regulação e controle.
De todo modo, as primeiras referências legais, no País, sobre a sistemática terceirizante (ainda que sem o batismo de tal denominação) ocorreram com respeito ao segmento estatal das relações de trabalho.
No quadro da reforma administrativa intentada em meados da década de 1960, no âmbito das entidades estatais da União (Decreto-Lei n. 200/1967, de 1967), foram expedidos dois diplomas que estimulavam a prática de descentralização administrativa, por meio da contratação de serviços meramente executivos ou operacionais perante empresas componentes...
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