Terceirização: O Trabalho como uma Questão de Cidadania

AutorNoemia Porto
Páginas171-187

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1. Introdução

A Constituição de 1988 representa etapa histórica na consolidação dos direitos trabalhistas como direitos sociais fundamentais. O art. 7º, inserido explicitamente no Título pertinente aos Direitos e às Garantias Fundamentais, contempla, ao relacionar direitos básicos, importante cláusula de abertura quanto à melhoria da condição social dos trabalhadores. Em termos constitucionais, o trabalho é uma importante expressão da cidadania.

Todavia, quando se pretende falar sobre o trabalho, é essencial abordar a vivência cotidiana dos cidadãos. Essa não é uma tarefa fácil. O olhar sobre o ordinário, por vezes, exige a lente do extraordinário. A arte, nesse sentido, pode ter contribuições muito decisivas para as reflexões críticas acerca do cotidiano, e certamente o faz, às vezes, de modo mais convincente e desnudado do que os discursos oficiais e formais sobre o direito.

“El Empleo” é um curta argentino de Patrício Plaza, com direção de Santiago Grasso, finalizado em 2008, que demandou dois anos para ser produzido, embora tenha pouco mais do que seis minutos de duração e seja, tecnicamente, um desenho. O trabalho recebeu em torno de 100 prêmios. É possível especular sobre algumas das razões desse sucesso.

O curta traz uma dose de realismo fantástico. Mostra o irreal e o estranho como algo cotidiano, mas no seu exagero denuncia um modo de vida em que o trabalho não é liberdade, ainda que com aparência de dignidade. A aparência de dignidade se tributa ao fato de que o personagem principal parece ter uma vida convencional, ou seja, desperta pela manhã, arruma-se para o trabalho, tem um emprego direto, sendo trabalhador efetivo, posiciona-se no andar mais acima no prédio, o que normalmente designa posição hierárquica melhor favorecida, usa camisa social e gravata, tem um armário no local de trabalho e conduz sua vida em torno daquela lógica do tempo do trabalho e do tempo para trabalhar.

O impacto provavelmente advém da construção paulatina da imagem da relação entre as pessoas como peças de um jogo de tabuleiro, servindo a uma estrutura hierarquizada, nem sempre visível ou totalmente compreensível. Mesmo um empregado efetivo, supostamente mais graduado, serve de capacho a uma hierarquia superior. Impressionam a coisificação do ser humano (as pessoas são objetos e os objetos são as pessoas); o fato de que tudo gira em torno do trabalho, que não potencializa a construção e a reconstrução da dimensão humana; a percepção de que o trabalho é fator de solidão e que no mundo corporativo não bastam pessoas, sendo relevantes perfis, estabelecidos de forma aparentemente neutra pelo mercado, tanto que os personagens são parecidos, com poucas diferenças visuais. Em suma, a imagem é a de uma sociedade doente, consumida pela ideia de trabalho. Assim, a vida, o tempo, a organização cotidiana e a (única) energia vital estão direcionados para o trabalho. Contribui para essas constatações o fato de o curta ser propositada e constrangedoramente silencioso.

É possível especular que o personagem principal do filme seja o tempo, afinal, o tempo é tudo (e nada) e a ele estão submetidos homens e mulheres, de forma implacável, independentemente da classe social. O vídeo começa, a propósito, com um relógio mecânico e, de fato, não seria possível imaginar uma pessoa desempenhando o “papel” de relógio. Nota-se que, perto dos 3 minutos, quando o personagem principal está no “táxi”, olha para o relógio de pulso (também mecânico). Aparentemente o vídeo é sobre trabalho, mas exatamente por isso o oculto do aparente sugere que a grande questão retratada é a precariedade da vida, limitada que é pelo tempo, que iguala a todos na mortalidade.

São alguns minutos para pensar, pessoas silenciosas como objetos, condicionadas a um esquema definido de vida em razão do trabalho e de uma sociedade que exige posições utilitárias. Mas o curta não finaliza dessa forma a abordagem sobre o emprego, o trabalho

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e o tempo, isso porque já no último ato, como cena derradeira, após os créditos serem listados, surge o personagem, meio fora do tempo, que parece se insurgir, chutando para longe o objeto que se confundia com ele mesmo.

Refletindo sobre esses aspectos, o que emprego, trabalho e tempo podem ajudar na reflexão sobre o fenômeno da terceirização?

Segundo o discurso de preponderância do aspecto econômico, a demanda por maior produtividade, que tem sido traduzida como centrada nos objetivos de maior lucratividade, com menor dispêndio de capital, tem exigido do mercado de trabalho maior flexibilidade, o que, na seara trabalhista, traduz-se pela reformulação dos parâmetros tradicionais de conformação da relação de emprego.

Os frutos mais recentes dessa reformulação, ao menos no campo formal do direito, são a publicação da Lei n. 13.329/2017; a aprovação, com muita polêmica, da chamada “Reforma Trabalhista” (Lei n. 13.467/2017); a tramitação no Senado do PLC n. 30/2015, resultado da aprovação pela Câmara do PL n. 4.330; as reformulações, ao longo do tempo, da Súmula n. 331 do TST; e os julgamentos no STF com repercussão geral (ARE 713211 e RE 760931). Todos esses eventos contemplam o tema da terceirização. Existiria entre eles alguma relação sincrônica? Como têm agido e reagido os poderes constituídos (Executivo, Legislativo e Judiciário) quando a questão da terceirização é debatida? Quais significados concretos têm sido atribuídos ao fenômeno? A questão tem envolvido considerar a sério a tensão constitutiva existente entre livre iniciativa e valor social do trabalho? Existe alguma relação entre o que a terceirização, já em curso, tem produzido concretamente no campo do trabalho e o trato legislativo e jurisprudencial que pretende regular o fenômeno?

O presente artigo, sem qualquer pretensão de esgotamento da análise dogmática de todos esses eventos, objetiva possibilitar algumas reflexões críticas, lançadas sob a premissa de que o trabalho é uma importante condição de possibilidade para a cidadania. O fenômeno da terceirização precisa ser analisado à luz das normas e princípios vinculantes protetivos que decorrem do sistema constitucional democrático de direito.

Para isso, serão abordados, primeiro, o cenário em que se insere a propagação das novas formas flexíveis de trabalho; em seguida, pretende-se trazer à luz alguns dados sobre os efeitos da terceirização, especialmente na vida dos trabalhadores; logo após serão referidas decisões que têm sido construídas pelos tribunais; por fim, serão lançadas considerações sobre a pretensão do marco regulatório legislativo.

Para a construção desse percurso, emprego, trabalho e tempo, enquanto dimensões da cidadania, figurarão como elementos essenciais.

2. Desvendando cenários: metamorfose, flexibilidade e terceirização

Eugène Enriquez (2006) realiza abordagem sobre o homem do século XXI, questionando se seria um sujeito autônomo ou um indivíduo descartável. Mapeando alguns dos problemas do nosso tempo, refere que, ao contrário do que se possa imaginar, o que triunfou a partir do século XIX não foi a racionalidade, mas somente a racionalidade instrumental, ou seja, aquela cujo interesse é tem sido apenas pelos meios a serem utilizados e que responde só à questão: como? Jamais à questão: por quê? Essa predominância se traduz pelo surgimento apenas da racionalidade econômica, aquela que permite o cálculo dos melhores meios e dos melhores métodos, cálculo de custos e de vantagens, e que submete todo mundo ao reino do dinheiro.

O mundo do trabalho se encontra em constante transformação. Das metamorfoses ocorridas, a possibilidade de as empresas utilizarem a força de trabalho de forma habitual, mas contratada por outra empresa, havendo, por isso, terceirização dos serviços, desponta como prática em verdadeira expansão. Essa é uma das formas de externalização da empresa contemporânea, que ocorre com a contratação, de maneira intermediada, de serviços/pessoas cuja necessidade é permanente para a tomadora final. Conforme diagnóstico de José Eduardo Faria (2008, p. 59), quando aborda oito tendências do direito contemporâneo, “com a crescente informatização das linhas de produção, o avanço da terceirização e o advento de novos modos de inserção no mundo do trabalho, a mão de obra progressiva se desloca para o setor de serviços e a ideia de ‘emprego industrial’ subjacente à legislação trabalhista entra em crise”.

A terceirização/subcontratação pode ser considerada fenômeno velho e novo. Sua origem mais visível no Brasil se deu em razão do trabalho rural, diante da conhecida figura do “gato” (THÉBAUD-MONY; DRUCK, 2007, p. 27). Todavia, os novos modos de acumulação capitalista forneceram outros contornos à prática, e a difundiram enormemente para abranger diversas atividades laborais. A terceirização não constituiu aspecto importante no processo de indus-trialização brasileira iniciado a partir das décadas de 1930 e 1940. Sua consolidação é posterior. Embora a

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terceirização possa ser vista como um fenômeno velho, a novidade está no seu crescimento e generalização (DRUCK, 2011). Na realidade, as transformações que vêm ocorrendo desde a década de 1970, com uma forma de organização capitalista caracterizada pela especialização flexível, pelo aumento da mobilidade do capital e pela redução da proteção aos assalariados, de modo a designar novas morfologias do trabalho, conforme expressão de Antunes (2004; 2007; 2008), foram intensificadas no decorrer da década de 1990.

A terceirização basicamente promove a desvinculação entre as figuras do trabalhador e do empregador e, por isso mesmo, representa a...

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