The (indigenous) question of the Manifesto Antropofago/ A questao (indigena) do Manifesto Antropofago.

AutorNodari, Alexandre
  1. (1) "Tupy, or not tupy that is the question" (2). Noventa anos depois da publicacao do Manifesto Antropofago, a recorrencia de reproducoes e apropriacoes do mais celebre de seus aforismos converteu aquilo que se apresentava como dilema em um lema identitario, segundo o qual a alternativa a ser Tupi consistiria, simplesmente, em nao ser. Nessa leitura, que parece uma metonimia do destino postumo do proprio movimento capitaneado por Oswald de Andrade (mas, afinal, como ele mesmo dizia, "[q]uem conta com a posteridade e como quem conta com a policia" (Andrade, 2011a:61)), ignorou-se que that is the question, que esta e a questao que o Manifesto, relendo o passado, lancava ao presente de modo a pensar o futuro. E precisamente isso que propomos questionar aqui, mapeando o quadro de referencias no qual ela se insere, os debates nos quais ela intervem, e, especialmente, como ela se conecta as fontes etnograficas do Manifesto, de modo a tentar restituir o seu estatuto de questionamento radical dos termos e da logica da "questao indigena", em que se trata de passar da alternativa a abertura, do dois ao multiplo, tanto no conteudo, quanto na forma, pois, como aponta Beatriz Azevedo (2016: 199), tambem "com sua linguagem aforismatica, Oswald vai do 'duplo sentido' ao sentido multiplo", da encruzilhada dual aos "Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros".

  2. "To be or not to be--that is the question" (3). E desnecessario dizer que a questao de Oswald retoma e transforma (i.e., apropria) a hamletiana. Por outro lado, pode ser relevante sublinhar que, dado o contexto da peca em que esta e proferida, fica em questao se deve ser levada a serio, ou se, ao contrario, consiste em um dos estratagemas mobilizados por Hamlet no seu artificio de fazer-se de louco para melhor poder desmascarar o seu tio e a sua mae e, assim, vingar seu pai, fazendo parte da "estranha e singular (...) conduta", das "atitudes absurdas", "frases suspeitas" ou "ambiguidades" que mobiliza, conforme enuncia a Horacio e Marcelo. Nesse sentido, a paradoxal "loucura esperta, com a qual escapa, toda vez que o pressionamos, a revelar seu verdadeiro estado" parece condensar o clima de incerteza que perpassa a peca como um todo. Mais importante para nossos propositos, porem, sao os proprios termos da questao, os quais, apesar da aparencia, nao podem ser binariamente isolados um do outro. Na peroracao hamletiana, o que parece ser, a primeira vista, uma alternativa simples, resumida a viver ou nao, se torna uma autentica questao e a decisao se torna indecidivel na medida em que nao e certo que a vida (o ser) nao persiste, de algum modo, na morte (o nao ser), que nao haja sonhos no sono eterno, que os mortos, como o fantasma do seu pai parece comprovar, nao continuem de algum modo presos a vida:

    Ser ou nao ser--eis a questao. Sera mais nobre sofrer na alma Pedradas e flechadas do destino feroz Ou pegar em armas contra o mar de angustias--E, combatendo-o, dar-lhe fim? Morrer; dormir; So isso. E com o sono--dizem--extinguir Dores do coracao e as mil mazelas naturais A que a carne e sujeita; eis uma consumacao Ardentemente desejavel. Morrer-dormir--Dormir! Talvez sonhar. Ai esta o obstaculo! Os sonhos que hao de vir no sono da morte Quando tivermos escapado ao tumulto vital Nos obrigam a hesitar: e e essa reflexao Que da a desventura uma vida tao longa. Pois quem suportaria o acoite e os insultos do mundo, A afronta do opressor, o desdem do orgulhoso, As pontadas do amor humilhado, as delongas da lei, A prepotencia do mando, e o achincalhe Que o merito paciente recebe dos inuteis, Podendo, ele proprio, encontrar seu repouso Com um simples punhal? Quem aguentaria fardos, Gemendo e suando numa vida servil, Senao porque o terror de alguma coisa apos a morte--O pais nao descoberto, de cujos confins Jamais voltou nenhum viajante--nos confunde a vontade, Nos faz preferir e suportar os males que ja temos, A fugirmos para outros que desconhecemos? Esse movimento que, confundindo os termos, impossibilita a oposicao plena, e, portanto, a decisao, ja estava prenunciado na escolha do suicidio como mote da reflexao: ou seja, passar a nao ser, morrer, mas isso por meio do ato maximo de vontade do ser. Assim, na questao que se coloca, se um dos termos, a morte, e uma incognita, nao podendo ser definida e nem totalmente discernida de seu oposto (nao constituindo propriamente um termo, nem seguramente o termo da vida--em toda a ambiguidade possivel dessa formulacao), o seu suposto oposto, o ser, tambem carece de nitidez, pois a duvida diante do gesto supremo, o de dispor plenamente de si e dar-se a morte, passar ao nao-ser, convertese em paradigma da hesitacao diante das consequencias de todo ato, de toda decisao, impregnando a vida, o ser, de indecisao, de hesitacao, de nao agir, de nao ser:

    E assim a reflexao faz todos nos covardes. E assim o matiz natural da decisao Se transforma no doentio palido do pensamento. E empreitadas de vigor e coragem, Refletidas demais, saem de seu caminho, Perdem o nome de acao. Desse modo, se tomamos a questao como uma meditacao de Hamlet sobre levar ou nao a cabo a vinganca do pai, torna-se quase impossivel saber em que polo situar esta: por um lado, vingar e agir, ser, mas tambem, dado a inevitabilidade das consequencias de matar o novo rei, ela equivale ao ato extremo do suicidio, acarretando o nao ser; por outro lado, nao vingar, nao agir, importa continuar vivendo, ser, embora constitua, no fundo, um sinonimo de nao ser. E, de novo, a questao se redobra: nada garante a Hamlet que o gesto de vinganca, mesmo tendo como corolario o termo de sua vida, seja, de fato, o fim, podendo motivar, por sua vez, outras vingancas, e mesmo fazer do principe morto um fantasma a mover outros para vinga-lo. Portanto, a divisao e hesitacao hamletianas nao decorrem da dificuldade de escolher entre dois termos nitidamente definidos, mas, antes, da impossibilidade de distingui-los. Ou melhor dizendo, elas derivam da inadequacao dos termos a questao, da tentativa de reduzi-la a logica binaria do ser (regida pelo principio da identidade e da nao-contradicao), de modo que aquilo que Hamlet busca (em vao) com sua decisao e aplacar a indecidibilidade, por meio de um termo (seja para sua vida, seja para a errancia espectral de seu pai) que estabilize o devir (e a relacao entre passado, presente e futuro).

  3. "O homem europeu falou demais. Mas a sua ultima palavra foi dita pelo principe Hamlet, que Kierkegaard repetiu em Elsenor. Nos dizemos aqui ou Villegaignon print terre: Tupy or not tupy that is the question. Um passo alem de Sartre e de Camus. A antropofagia" (Andrade, 2011b: 447). Ao retomar, em 1946, a questao na "Mensagem ao antropofago desconhecido", texto que marca o seu retorno a Antropofagia apos um interregno de adesao ao comunismo, Oswald a situa como um deslocamento em relacao tanto aos termos quanto a logica binaria que parecem guiar nao so Hamlet, mas, de um modo geral, a metafisica ocidental moderna (pense-se, a partir da referencia a Sartre, em O ser e o nada)--como diz o Manifesto, "nunca admitimos o nascimento da logica entre nos", uma recusa ativa e nao a mera afirmacao de um estado pre-logico, sem logica. A contestacao dos termos ja aparecera no "De antropofagia" do quarto numero da segunda denticao da Revista, no qual se afirma que "os antropofagos (...) nao admitem (...) a reza e a fradaria com chaves do 'tudo' e do 'nada'". Alem disso, a prevalencia do ser foi seguidamente posta em questao pelos constantes ataques dos antropofagos a metafisica: "O indio", lemos na Revista, "nao tinha o verbo ser. Dai ter escapado ao perigo metafisico que todos os dias faz do homem paleolitico um cristao de chupeta, um maometano, um budista, enfim um animal moralizado. Um sabiozinho carregado de doencas". Do mesmo modo, em uma entrevista, Oswald afirmava que "o indio (..) nao era, (...) nao podia ser (...) criatura metafisica (a metafisica (...) estragava todas as almas)", por nao saber gramatica: "A gramatica e que ensina a conjugar o verbo ser e a metafisica nasce dai, de uma profunda conjugacao desse verbinho. Nao se sabendo gramatica..." (Andrade, 2009: 287). Mas e na retomada filosofica da Antropofagia nos anos 1940 e 1950 que transparece mais claramente a critica ao "ser como tal", considerado "o grande impostor da velha Metafisica" e que estaria sendo recolocado em seu "trono absolutista (...) atraves do Existencialismo, da axiologia, da fenomenologia e mesmo do marxismo-leninismo". A "exaltacao do conceito de Ser" recairia em um erro grave: "O que e apenas coordenada [o Ser], momento estavel de uma simples relacao de movimento, passa a ser transfigurado em motor imovel" (Andrade, 2011b: 197). Aqui se mostra a raiz (equivocada) da prevalencia metafisica que Oswald identifica no conceito de ser: a busca de subsumir a relacao de movimento (i.e., na terminologia oswaldiana, a devoracao) a um de seus momentos estaveis (um dos termos, sempre moveis, da relacao), que lhe seria ontologicamente posterior e dependente, ou seja, a tentativa de "arrancar o ser do fluir" (Andrade, 2011b: 172). Mas o que significa substituir o ser pelo tupi? Como a mudanca dos termos altera a propria questao?

  4. "Em nossa era de devoracao universal a problematica nao e ontologica, e odontologica" (Andrade apud Candido, 2004: 46). A questao do Manifesto nao e apenas o seu aforismo mais conhecido. E tambem o exemplo mais acabado do procedimento canibal de apropriacao, levado a cabo por Oswald desde, pelo menos, Pau Brasil. Trata-se de introduzir, em uma maxima (uma frase feita, um cliche, um texto cujo sentido se cristalizou e imobilizou), uma diferenca minima, um erro ou desvio que desloca completamente seu sentido: "da fala mor, o mor lapso: o maior e o menor", dira Raul Antelo (2006: 27). Na questao, a formula original de Shakespeare permanece inalterada (e mesmo na lingua original: or, not, that is the question), o que mudam sao "apenas" os seus...

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