The modern police: democratic degeneration and civil war/A policia moderna: degenerescencia democratica e guerra civil.

Autordo Amaral, Augusto Jobim
  1. introducao

    Foucault, e sabido, foi um pensador que produziu em larga escala. Alem de inumeros livros, seus cursos no College de France (instituicao onde proferiu conferencias de 1970 ate sua morte em 1984) ja foram transcritos por ex-alunos e especialistas, perdendo-se a quantidade de traducoes realizadas (1). Devido a amplitude de suas analises, sao diversas as areas do conhecimento que aproveitam suas obras: da psiquiatria a filosofia, do direito a educacao. Nesse sentido, apenas de maneira didatica, a producao de Foucault pode ser dividia em tres grandes fases: arqueologia do saber, genealogia do poder e etica. E na dita segunda fase que o presente investe sua enfase, instante a partir da decada de setenta em que Foucault, para a realizacao de suas reflexoes, buscou base especial tambem em Friederich Nietzsche (1844-1900), ambicionando desvelar as relacoes de poder que correspondem as producoes de saber.

    Sendo assim, por agora, importa demonstrar algumas analises realizadas pelo autor sobre a policia, desde logo adiantando que ela, em sua versao moderna, esta inscrita numa nova governamentalidade. No seculo XVIII, passa a nao mais visar a uma mera regulamentacao dos individuos, mas a repressao das possiveis desordens da chamada populacao. Um mecanismo que funciona desde o desenvolvimento de um biopoder ou de uma biopolitica, em que a vida das pessoas passa a fazer parte dos calculos estatais. Para potencializar a analise, busca-se, por um lado, trazer as apreciacoes realizadas pelo pensador italiano Giorgio Agamben, o qual, de forma bastante peculiar, deu prosseguimento aos rastros deixados por Michel Foucault e sua nocao de biopolitica, aliando-a as teorias de Hannah Arendt, Walter Benjamin, entre outros autores (2); portanto, por outro vies, desde Jacques Derrida, pretende-se compreender, numa visao radical, a atuacao da policia como extensao do poder soberano dentro do modelo politico democratico. Ao final, lanca-se o espectro policial em uma nova visao do jogo politico contemporaneo exposta por Foucault e, muitos anos depois, aprofundada por Agamben, os quais evitarao deixar de fora das relacoes de poder a nocao de guerra civil, percebendo que essa, ao contrario de ameacar o poder, serve a ele. Genealogia exposta desde a Grecia Antiga, onde esse elemento essencial do poder era conhecido como stasis.

    Diante disso, o trabalho e dividido em tres momentos: num primeiro momento, tenta-se trazer a abordagem de Michel Foucault sobre policia constante em seu curso Seguranca, Territorio e Populacao, no qual nao so aponta o surgimento da instituicao policial nos seculos XVII e XVIII, mas avanca para demonstrar sua operacionalidade na arte de governar com os mecanismos de seguranca. Apos, problematiza-se a questao da policia contemporanea desde os rastros deixados por Walter Benjamin, Jacques Derrida e Giorgio Agamben no ambito da democracia. No instante final, as reflexoes de Foucault e Agamben retornam qualificadas atraves da analise sobre a guerra civil, onde emerge um novo olhar sobre a atuacao da policia, em especial, no tocante a necessidade de profana-la para que seus efeitos de despolitizacao sejam permanentemente desestabilizados.

  2. O nascimento da policia: o golpe de estado permanente

    Foi com o surgimento da populacao, como categoria politica a partir do seculo XVIII, que o poder soberano (que se pautava, preponderantemente, por mecanismos juridicolegais e disciplinadores sobre seus suditos) vai, aos poucos, cedendo lugar a uma diferente arte de governar. Com a abertura das cidades (antes muradas) e a necessidade de circulacao (de mercadorias e pessoas), mecanismos de seguranca comecam a ter preponderancia. Foucault demonstra que se antes as medidas tomadas pelo poder soberano visavam a multiplicidade de individuos--assim tomados e vistos como suditos --, a partir do seculo XVIII, e no nivel da populacao que as acoes economico-politicas do governo passarao a se dar, vez que a populacao se torna o foco central. Os exemplos da escassez alimentar e das epidemias trazidos por Foucault sao bastante ilustrativos para demonstrar o giro de um poder engessado em medidas repressivas (leis, decretos, ordens etc.) para um poder em que a dinamica da sociedade (e principalmente da populacao) passar a ser a base de todas as acoes governamentais, pautadas em mecanismos de seguranca.

    A escassez alimentar era vista como um flagelo para a populacao, como crise do governo ou tambem como ma fortuna--numa visao filosofica da desgraca politica que se da na falta de alimentos (3). Para tanto, o soberano dispunha de todo um aparato juridico e disciplinar para preveni-la: limitacao de precos e do direito de estocagem, limitacao de exportacao etc. Trata-se de um sistema de antiescassez da epoca mercantilista, de modo que todas essas proibicoes e impedimentos fariam com que os cereais fossem colocados no mercado o mais depressa possivel, evitando a fome generalizada. Nota-se que o soberano buscava, a partir de um acontecimento eventual (escassez alimentar) impor disciplina e meios repressivos para prevenir ou ate mesmo extirpar esse acontecimento, o qual causava, de um lado, altos precos (devido a farta demanda) e, ao cabo, o que mais trazia temor ao reino: revolta da populacao (4).

    No entanto, a partir do seculo XVIII, uma nova teoria economica, derivada da doutrina fisiocratica passa a colocar como principio fundamental do governo economico o principio da liberdade de comercio e de circulacao dos cereais (5). Para Foucault, e instalado um novo dispositivo de seguranca, o qual iria na mao contraria do olhar para o mercado interno, passando a ampliar a visao sobre as suas possibilidades de estabilizacao nas epocas de escassez alimentar: a economia politica (6). Se antes apenas vislumbrava-se a relacao escassez alimentar-carestia, agora se vislumbrara toda a cadeia de producao dos cereais (e as condicoes climaticas, qualidade do terreno, abundancia, escassez, colocacao no mercado, etc.) ate o momento em que passa pelos seus protagonistas (internos e externos) e chega aos consumidores, buscando entender como agem em determinada cada situacao. (7)

    E isso tudo, isto e, esse elemento de comportamento plenamente concreto do homo oeconomicus, que deve ser levado igualmente em consideracao. Em outras palavras, uma economia, ou uma analise economico-politica, que integre o momento da producao, que integre o mercado mundial e que integre enfim os comportamentos economicos da populacao, produtores e consumidores (8). Ainda, nessa oposicao disciplina/seguranca, e interessante analisar como se da a normalizacao sobre a populacao em um e outro, voltando-se para aquela realizada por Foucault acerca das epidemias. Segundo ele, a disciplina decompoe os elementos que sao suficientes para, de um lado, serem percebidos e, de outro, modificados. Ela otimiza as sequencias e coordenacoes; o modo como os gestos devem se encadear; como os soldados devem ser divididos por manobras; como distribuir as criancas escolarizadas por hierarquias e dentro de classificacoes. Em suma, demarca o normal do anormal, a partir de um modelo otimo que e construido em funcao de um certo resultado, consistindo a normalizacao da disciplina em tornar as pessoas, os gestos, os atos, conforme esse modelo, sendo normal aqueles que sao capazes de se conformar com a norma e anormal os que nao sao (9).

    Destaca-se que foi em Vigiar e Punir que Michel Foucault aprofundou--pois em obras anteriores ja havia tocado no tema--o estudo do poder disciplinar, a partir de uma "historia das praticas punitivas", percorrendo desde o suplicio ate os meios modernos de aprisionamento e caminhos da disciplina, os quais, segundo ele, atraves da pena, agirao sobre o individuo para maximizar sua utilidade economica (10).

    Diante disso, Foucault demonstra que, se antes se tentava impedir as doencas impondo restricoes--como aprisionamento em instituicoes medicas ou quarentenas--, a partir do seculo XVIII, uma doenca endemico-epidemica ira demonstrar que esses procedimentos ja nao sao mais aplicaveis: a variola sera inoculada no paciente a fim de provocar-lhe seus efeitos no mundo real para que, junto de outras circunstancias, eles pudessem ser anulados. Nao e dificil notar que a morfologia do mecanismo de seguranca aplicado a variola e a mesma da escassez alimentar, vez que ja nao se tenta mais impedir sua ocorrencia atraves de dispositivos juridico-legais ou disciplinares (atraves de decretos e leis emanadas de um soberano), mas deixa que ocorram como dados a serem prevenidos e, no limite, controlados. Deixa-se de se ver a doenca como algo reinante na sociedade--elemento de uma epoca, de uma cidade, de um grupo--e passa-se a ve-la como fruto de um caso, algo individualizado e distribuida na populacao circunscrita no tempo ou no espaco (11).

    Esses exemplos servem para demonstrar a principal diferenca entre os efeitos capilarizados da disciplina e as redes com que os mecanismos de seguranca trabalham. Nao obstante, sao capazes tambem de demonstrar a funcao da policia nesses dois modelos. Ela vai diferenciando-se na medida em que a arte de governar--com dispositivos de seguranca--uma populacao vai ganhando preponderancia. Se num primeiro momento, seculos XV e XVI, a palavra policia conotava tres sentidos--as comunidades que eram regidas por autoridades publicas, os atos emanados por autoridades publicas e os regimentos associados a maneira de governar--a partir do seculo XVII o sentido muda. A policia passa a ser o esplendor do Estado, tendo como funcao principal fazer crescer suas forcas ao mesmo tempo que mantem a ordem interna.

    A partir do seculo XVII, vai-se comecar a chamar de "policia" o conjunto dos meios pelos quais e possivel fazer as forcas do Estado crescerem, mantendo ao mesmo tempo a boa ordem desse Estado. Em outras palavras, a policia vai ser o calculo e a tecnica que possibilitarao estabelecer uma relacao movel, mas apesar de tudo estavel e controlavel, entre a ordem interna...

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