The state of exception in Brazilian Republic/O estado de excecao no Brasil republicano.

AutorGomes, Ana Suelen Tossige
  1. Introducao (1)

    O estado de excecao, segundo as doutrinas tradicionais do Direito Publico, e conceituado como medida excepcional a legalidade, sendo autorizado pelo ordenamento diante de situacoes emergenciais. Nas constituicoes modernas, todavia, sua utilizacao pelo poder constituido tem demonstrado funcionar mais como regra do que como excecao.

    A operacionalizacao do estado de excecao nao como instituto de salvaguarda da Constituicao, mas como paradigma de governo (AGAMBEN, 2007, cap. I.), manifestada, por exemplo, pelos atos administrativos e pela acao policial, retira a juridicidade da tutela da urgencia e, assim, esta perde o seu fundamento juridico e resta apenas uma imposicao do poder posto. Tal constatacao atinge a propria Teoria do Direito, pois a nocao moderna de Republica pressupoe o Estado de Direito em contraposicao ao Estado Absolutista, (2) e no estado de excecao como tecnica de governo perde-se a distincao clara entre ambos, criando-se uma zona de indiscernibilidade (AGAMBEN, 2007, p. 13).

    Assim, com o intuito de verificar as ideias e a praxis do estado de excecao, esta pesquisa pretende, a partir de fatos historicos (3), analisar como se deu o estado de excecao no Brasil desde a Primeira Republica ate os dias atuais. Alem de se apresentar um estudo de caso sobre o tema, ja muito debatido em ambito teorico, o presente trabalho possibilitara conhecer como o estado de sitio ocorre na pratica e levantar algumas hipoteses sobre os motivos reais de sua decretacao, bem como conhecer os estados de excecao praticados no Brasil sem qualquer instituto juridico que lhes fundamente. Desse modo, parte-se de uma pesquisa acerca dos institutos juridicos excepcionais atinentes a cada periodo historico, e da pratica excepcional em sua generalidade, desde a proclamacao da Republica ate o periodo atual (pos Constituicao de 1988).

  2. O estado de sitio brasileiro durante a Republica Velha

    Depois de proclamada a republica pelo marechal Deodoro da Fonseca, no ano de 1889, o Brasil vivia os auspicios da instauracao de um novo regime politico, que deixaria de ser autocratico para se tornar democratico. Todavia, tal regime era imposto por uma elite economica rural. Com o apoio de grande parte da oficialidade do exercito e sem a participacao do povo nas primeiras decisoes republicanas, instituiu-se um governo provisorio com os objetivos de consolidar o novo regime, institucionaliza-lo com a aprovacao de uma Constituicao e criar as formas administrativas do Estado que se faziam necessarias.

    A primeira Constituicao republicana brasileira foi, entao, promulgada em 1891, trazendo em seu texto os modernos direitos fundamentais no titulo IV e, logo em seguida, no titulo V, os institutos juridicos de excecao. (4) Observase que, seguindo a tendencia do estado de sitio ja introduzido nos ordenamentos espanhol e frances, a Constituicao brasileira de 1891 confere a competencia do Congresso Nacional a sua declaracao, salvo na hipotese das camaras nao estarem reunidas e na iminencia de perigo a patria (hipotese em que seria exercido pelo poder executivo federal). No mesmo sentido, preve que tal instituto deva ser aplicado somente em casos de agressao estrangeira ou ameaca interna (insurreicao), por tempo determinado.

    Todavia, ainda que as medidas de excecao consentidas pela Constituicao de 1891 impusessem restricoes as liberdades e garantias individuais, como na tradicao europeia, (5) tais restricoes impunham-se aqui mais a liberdade do individuo. O estado de sitio nao previa, dessa forma, restricao a liberdade de imprensa ou a inviolabilidade de domicilio, como na Franca, mas sim unicamente a aplicacao pelo poder executivo de medidas repressivas de detencao e desterro aos individuos.

    Rui Barbosa ressalta que tais medidas excepcionais de restricao a liberdade, devidas a natureza do estado de sitio, nao poderiam se confundir com penas, pois "a sua legitimidade cessava com a restauracao das garantias" (BARBOSA, 1892, p. 173). Entretanto, como regra, os governos da Primeira Republica enfrentaram as contestacoes sociais do seu tempo por meio do estado de sitio, o que consistiu num abuso na utilizacao do instituto, que desde ja se tornou paradigma de governo.

    De acordo com pesquisa realizada pelo Senado Federal, no periodo da Republica Velha (1889-1930) governou-se por 2.365 dias em estado de sitio. No governo Floriano Peixoto o estado de sitio vigorou por 295 dias, no Prudente de Morais por 104 dias, no Rodrigues Alves por 121 dias (NAUD, 1965a, pp. 139-162), no Hermes da Fonseca por 268 dias (NAUD, 1965b, p.61), no Wenceslau Braz por 71 dias, no Epitacio Pessoa por 132 dias (NAUD, 1965b, pp. 81-85), no Washington Luis por 87 dias (NAUD, 1965c, p. 140) e no governo de Arthur Bernardes por 1.287 dias (NAUD, 1965c, p. 121), governando este em estado de normalidade por menos de dois meses num governo de quatro anos. (6)

    Rui Barbosa publica em 1892 a obra Estado de sitio: sua natureza, seus efeitos, seus limites. Trata-se da compilacao do habeas corpus que ele impetrara no Supremo Tribunal Federal em defesa de presos e desterrados (em sua maioria politicos e militares), do acordao da corte que denegou o remedio e da critica do jurista sobre as inconstitucionalidades na aplicacao das restricoes de detencao e desterro pelo governo Floriano Peixoto. Segundo Rui Barbosa, na pratica o governo aplicava as medidas excepcionais de desterro e detencao como penas, desconsiderando a sua natureza transitoria.

    Tal fato se verificava principalmente no caso dos desterrados, pois nao havia julgamento destes conforme a garantia do juiz natural (7) (BARBOSA, 1892, pp. 174-175). Ademais, a aplicacao das medidas excepcionais dava-se em periodos em que o estado de sitio nao estava em vigencia, desrespeitando completamente uma das bases do direito de excecao que e o carater temporario, provisorio e determinado da declaracao do instituto excepcional. Rui Barbosa assim se exprime sobre a abusividade das medidas:

    Ides, com efeito, senhores juizes, decidir, conforme o lado para onde penderdes, si entramos realmente, pelo pacto de 24 de fevereiro de 1891, no dominio de uma constituicao republicana, ou si essa exterioridade apenas mascara a omnipotencia da mais dura tyrannia militar. Porque, realmente, si contra o arbitrio mais grosseiro na declaracao do estado de sitio fora das condicoes estabelecidas pela carta federal nao ha, em favor dos cidadaos flagelados, o correctivo da vossa justica [...] e si os effeitos das medidas de excepcao adoptadas durante a suspensao das garantias constitucionaes se estendem alem do termo della, entao o paiz esta virtualmente convertido numa praca de guerra [...] (BARBOSA, 1892, p. 6).

    Significativo tambem e o discurso proferido pelo mesmo jurista no Senado, dezenove anos mais tarde, no qual ele exigia a responsabilizacao do Presidente Hermes da Fonseca acerca dos envolvidos na Revolta dos Marinheiros de 1910. Barbosa destaca que o governo aproveitara-se do estado de sitio para expurgar os indesejaveis a ordem publica e promover uma "higienizacao social", afirmando que durante o estado de sitio concedido pelo Congresso, que deveria durar trinta dias, centenas de brasileiros foram presos e enviados do Rio de Janeiro ao Acre numa viagem que durou quarenta e dois dias (BARBOSA, 1977, p. 22). Dessa passagem ja se constata como o instituto excepcional era utilizado sem qualquer criterio e respeito aos preceitos juridicos que lhe deveriam orientar, seguindo a necessidade declarada pelo proprio chefe do executivo.

    Vieira apresenta leitura interessante acerca da utilizacao do estado de sitio na Primeira Republica. (8) Segundo ele, os governos da Primeira Republica ampararam-se no instituto excepcional a fim de propulsionar o desenvolvimento capitalista no Brasil, que nao teve uma revolucao burguesa como os paises europeus. De acordo com o autor:

    O estado de sitio, algo que Marx havia apontado na teoria em 1851, cumpre na sociedade burguesa um papel pratico de contra-revolucao permanente e por vezes preventiva. O estado de sitio e um dos instrumentos de um despotismo que a burguesia disse ter expurgado em 1789 em Franca, para logo depois em 1791 descobrir este prodigioso achado institucional utilizado quando as pomposas declaracoes de direitos atravancam o desejo de manutencao e reproducao de uma determinada ordem historica. O direito, e o direito constitucional, como pensa a teoria da constituicao liberal, nao e a oposicao deste processo, mas mantem com esta vinculos subterraneos e que as declaracoes de sitio e de excecao sao responsaveis por trazer a tona em determinados momentos tais contradicoes e paradoxos. No Brasil esse processo e caracteristico de todo o conservadorismo da burguesia brasileira, que abandona quaisquer ideais democraticos e revolucionarios que eventualmente pudesse ter, fazendo da revolucao burguesa no Brasil um processo de contra-revolucao permanente que requer "objetiva" e idealmente, um Estado de emergencia neo-absolutista, de espirito aristocratico ou elitista e de essencia oligarquica, que possa unir "a vontade revolucionaria autolegitimadora" da burguesia com um legalismo republicano pragmatico e um despotismo de classe de cunho militar e tecnocratico. Esse e o preco da pseudo-"conciliacao". (VIEIRA, 2011, pp. 327-349).

    A partir dessa perspectiva economica fica mais claro o entendimento acerca de um dos grandes motivos que impulsionaram os governos da Primeira Republica, marcadamente dirigida pela aristocracia rural, a utilizarem o estado de sitio de modo tao desajustado: a necessidade de consolidacao do capitalismo num contexto economico nao industrializado. Como destaca Corval (2009, p. 88), "[...] a formacao do Estado brasileiro, sem duvida, perpassa a problematica tensao entre coercao, capital e influencia externa [...]", e essa influencia estrangeira claramente nao deixou de operar na politica brasileira depois da proclamacao da Republica. A consolidacao do capitalismo no Brasil na Primeira...

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