A Era da Globalização e a Conciliação Ética no Novo Paradigma Profissional do Magistrado do Trabalho

AutorGiovanni Olsson
Ocupação do AutorDoutor em Direito (UFSC). Juiz-Assessor da Direção da Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados do Trabalho - ENAMAT/TST (Brasília/DF).
Páginas186-196

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Introdução

O exercício da Magistratura como uma prática profissional é um tema relativamente novo no país. Embora a educação para o trabalho seja uma área do conhecimento estabelecida de longa data, seu foco raramente se desloca para os espaços públicos, como na arena da atuação dos agentes de Poder. Por isso, é essencial trazer ao debate um tema tão desafiador como as competências profissionais de um operador cujos saberes, em termos de complexidade, multiplicidade e interdependência, ainda não estão suficientemente explorados no cenário nacional.

Na tradição jurídica brasileira, subsistia no meio profissional o mito da autossuficiência teórica e prática do Magistrado recrutado pelo concurso público: depois do rigor do certame, nada mais se podia (ou devia) exigir em termos da plenitude atestada de suas competências. Contudo, isso mudou com a Emenda Constitucional n. 45/2004, que introduziu a formação profissional institucionalizada de Magistrados a cargo de duas Escolas Nacionais: ENAMAT e ENFAM. A mesma alteração constitucional trouxe ainda outras inovações importantes, como princípios que conformam um modelo de eficiência na prestação jurisdicional, até então pouco prestigiado.

Entretanto, a concretude dos desafios da reali-dade fala mais alto, e a própria sociedade, divisada com as multifacetadas "crises" do Judiciário, vem demandando uma alteração de modelo no serviço monopolizado pelo Estado nacional. A escalada de conflitos na sociedade, assolada pelo fenômeno da globalização, com sua difusão em larga escala e impactos profundos multidimensionais e grandes contradições, reconfigura os referenciais até então hegemônicos no mundo da vida. A sociedade contemporânea é muito mais complexa e dinâmica do que as estruturas da modernidade conseguem decompor, e seus conflitos exigem do Judiciário um modelo diferenciado para solucioná-los. Nesse contexto, parece uma tendência inexorável a "redescoberta" do cidadão, com suas expectativas sociais qualificadas, como o destinatário central do sistema Judiciário, que aponta para a construção de um novo paradigma profissional, conformando nova gnoseologia na prestação do serviço público de Justiça.

A conciliação, por sua vez, e dentre todos os saberes do profissional Juiz, constitui um eixo central dessa mudança paradigmática. No âmbito da Justiça do Trabalho, em particular, a conciliação judicial a cargo do Magistrado sempre esteve presente e viva como regra expressa, princípio basilar e prática consagrada no meio ambiente profissional. Contudo, e no atual momento histórico, a conciliação ética renova-se como um saber cada vez mais central da formação profissional do Juiz do século XXI, que é essencialmente um ator de pacificação e estabilização

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social. O desenvolvimento desse saber, assim, é uma das tarefas de maior relevância das Escolas Judiciais, com o novo paradigma de formação institucional e profissional introduzido na base constitucional.

Os desafios da globalização sobre o mundo do direito

O reconhecimento de que a sociedade contemporânea passa por profundas transformações não constitui uma novidade. As alterações nas relações sociais, políticas, jurídicas e econômicas nas últimas décadas são visíveis e disseminadas, tornando o presente momento histórico extremamente singular no percurso civilizatório.

A angústia pelo descumprimento das "promessas da modernidade"1 mistura-se com a fragmentação do tecido social, as crises de governança do Estado de modelo nacional, a perda de eficiência regulatória dos instrumentos jurídicos e a reconfiguração dos modelos de trabalho e produção na sociedade. Tudo isso, desnecessário dizer, potencializa conflitos e aciona crescentemente os mecanismos estatais de pacificação. O Poder Judiciário, intérprete da Constituição e garantidor da justiça social, passa a ser desafiado na sua missão, com a desconfiança crescente de que talvez não esteja mais conseguindo ser o depositário fiel dessas enormes expectativas sociais.

As raízes dessas transformações são antigas e muito complexas, e ultrapassam o escopo limitado deste trabalho. Contudo, pode-se afirmar, de pronto, que elas derivam do esgotamento do projeto filosófico da modernidade, que, seja como modernidade tardia, seja como pós-modernidade2, colocou o processo civilizatório em crise pela incompatibilidade crescente dos seus limites e possibilidades de emancipação. A novidade em todo esse debate, porém, é o reconhecimento de que essas transformações são impulsionadas pelo fenômeno da globalização, que, com sua multidimensionalidade e profundo impacto em todos os espaços, ampliou a interdependência sistêmica e estrutural do já complexo mundo da vida. Mais do que isso, um dos grandes ganhos recentes foi o aprofundamento do estudo dessa categoria como um objeto da ciência.

A globalização vinha sendo tratada, por vezes, como simples fragmento de um discurso ideológico ou uma ferramenta de propaganda de empresas e de veículos de comunicação de massa, pululando nas manchetes e ocupando o imaginário popular. Contudo, e recentemente, a globalização começou a receber a atenção dos cientistas que, com estudos inicialmente segmentados por áreas de impacto, que privilegiavam a dimensão cultural ou econômica, por exemplo3, trouxeram o fenômeno ao crivo científico para delinear dois aspectos essenciais: sua definição e suas características.

O conceito da globalização ocupa o centro de um debate em curso. Em larga medida, o conceito do fenômeno está diretamente relacionado com a extensão e a profundidade de sua própria percepção. Intuitivamente, a primeira ideia em torno do fenômeno associa-se com a conhecida "compressão do espaço e tempo"4. A sensação de que o mundo encolheu e de que o tempo passa mais rápido ocupa o imaginário contemporâneo. Falar em globalização, como ponto de partida, pressupõe admitir que, de uma forma ou outra, as tecnologias de telemática (telecomunicações e informática) aproximaram lugares, pessoas e eventos, tanto no tempo quanto no espaço. O elevado grau recente de desenvolvimento desses instrumentos provocou alterações surpreendentes e até então visionárias no mundo das comunicações, transportes e gerenciamento de informações. A miniaturização dos transistores, a queda vertiginosa do custo das ferramentas tecnológicas, a aceleração do ciclo de vida dos produtos e a velocidade da transmissão de dados, por exemplo, mudaram em definitivo o panorama mundial. Interações remotas em redes sociais no mundo real e em paralelos mundos virtuais, exercício de democracia participativa online por novos atores políticos globais, pluralismo e policentricidade jurídicas, e, por evidente, práticas comerciais e financeiras instantâneas, são apenas alguns dos muitos exemplos de um mundo novo, admirável ou não. É desnecessário insistir no volume das mudanças causadas nas relações sociais, políticas, jurídicas e econômicas. O grande globo terrestre parece, literalmente, uma pequena aldeia.

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É relevante notar, porém, que a globalização, como fenômeno objeto de investigação científica é mais do que senso comum ou intuição. De um lado, o conceito do fenômeno precisa considerar mais do que apenas uma fase financeirizada do modo de produção capitalista. De outro lado, o fenômeno vai além de um novo padrão cultural, com homogeneização de práticas sociais e socialização fluida. A globalização é tudo isso, sim, mas também algo mais, que consiste exatamente no processo dinâmico de interação dessas dimensões veiculado por um discurso hegemônico. Neste texto, e sem prejuízo de outras concepções e recortes, e com escopo puramente instrumental, pode-se definir globalização como o processo que "incorpora uma transformação na organização espacial das relações e transações sociais - posta em termos de sua extensão, intensidade, velocidade e impacto - gerando fluxos transcontinentais ou inter--regionais e redes de atividade, interação e exercício de poder"5.

A questão das características da globalização é outro ponto que merece muita atenção, porque, diante da sua dinâmica e fluidez, é fácil perder-se no emaranhado de interrelações e efeitos conexos do fenômeno.

A sua origem tem raízes profundas na caminhada civilizatória, com fases próprias e temporalmente delimitadas, mas existem alguns aspectos bastante diferenciais de seu padrão no atual momento histórico. Embora os autores adotem elencos relativamente distintos de caracterização da globalização, a análise desses trabalhos aponta alguns pontos de convergência comuns que podem servir para sumarizar seus principais aspectos6.

Um deles é a reflexividade plural, que retrata a concorrência simultânea de visões de mundo e projetos de vida para a nova sociedade globalizada, em que convivem e mesmo conflitam em busca de hegemonia. Outra é a alta contestabilidade, porque a globalização produz diversos impactos e reações nas mais variadas dimensões da vida, despertando a crítica a seu formato e também a tentativa de sua governança ou gestão política, concorrendo agendas e atores diversos na sua reconfiguração. A terceira é a nova territorialidade, significando que a regra de soberania não é mais a única norma constitutiva da sociedade hoje globalizada, e, assim, os recortes nacionais em termos geoespaciais são contestados no seu significado e no seu papel, invadidos por fluxos reais ou virtuais de ideias, valores, culturas e, claro, de poderes econômicos e políticos. Uma outra é a pluritopologia, porque as relações mundiais estatocêntricas são desafiadas por atores privados relativamente muito mais poderosos, como as empresas transnacionais e seus impactos no mundo do trabalho...

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