Título judicial ilíquido

AutorHumberto theodoro júnior
Ocupação do Autordesembargador aposentado do tribunal de justiça de minas gerais. professor titular aposentado da faculdade de direito da ufmg. doutor em direito
Páginas1005-1027

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648. Sentença ilíquida

O processo de conhecimento está preparado para atingir um provimento jurisdicional que ponha fim à controvérsia instalada entre as partes. É a sentença que cumpre essa função, realizando o acertamento da situação litigiosa. Com sua publicação o juiz apresenta o provimento devido aos sujeitos da lide e não pode mais revogá-la ou modificá-la (NCPC, art. 494).1Considera-se solucionado o mérito da causa (art. 487).2Eliminado o litígio com o acertamento da relação jurídica entre as partes, o direito reconhecido ao vencedor pode ser satisfeito voluntariamente pelo vencido, e não haverá mais ensejo para a atuação da Justiça. Mas, sem embargo do pronunciamento judicial, a pretensão do credor pode continuar insatisfeita. Surge, então, a necessidade de voltar perante os órgãos judiciários em busca de novas providências para que o direito proclamado na sentença seja tornado efetivo. Esta tarefa é a finalidade, o objeto da execução forçada, que outrora se promovia numa nova relação processual, independente e autônoma diante do processo de conhecimento, mas que, após a reforma do processo civil brasileiro, passou à categoria de simples incidente complementar da condenação.

As sentenças condenatórias, contudo, embora sejam as que tipicamente se destinam a ensejar a execução, nem sempre o fazem imediatamente. Se sempre declaram a certeza do crédito do vencedor, nem sempre são precisas quanto ao valor da dívida ou à individuação do objeto da prestação. Às vezes ficam apenas no campo da generalidade, sem descer à espécie do bem da vida a ser prestado.

Existem, nessa ordem de ideias, sentenças líquidas e sentenças ilíquidas.

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649. Execução da sentença ilíquida

Ilíquida é a sentença que não fixa o valor da condenação ou não lhe individua o objeto. Essa condição é incompatível com a índole do processo executivo que pressupõe, sempre, a lastreá-lo um título representativo de obrigação certa, líquida e exigível (NCPC, art. 783).3Como é sabido, a atividade própria da execução forçada não é de índole contraditória. Não se presta a acertamento ou definição do direito substancial do exequente, mas apenas e tão somente de realização prática de uma situação jurídica, cuja certeza e legitimidade já se encontram demonstradas no título executivo. A cognição do juiz fica, destarte, limitada à comprovação de existência e perfeição do título in limine litis.

Como o juiz executivo não vai julgar, mas apenas realizar o conteúdo do título, é imprescindível que o conteúdo desse documento seja líquido, isto é, determinado especificamente quanto à quantidade, à coisa, ou ao fato devidos.

Daí a necessidade de recorrer o credor à prévia liquidação sempre que a sentença condene ao pagamento de quantia ilíquida (NCPC, art. 509).4É que, sem a identificação exata do bem devido pelo condenado, a sentença ainda não produziu a exigibilidade da prestação para o vencedor e, portanto, o título executivo, embora dotado de certeza, ainda se acha incompleto, por carecer de liquidez, requisito que lhe será agregado por nova decisão no procedimento liquidatório, que ainda tem a natureza de atividade de conhecimento.

Essa providência é típica do título executivo judicial. Quanto aos documentos extrajudiciais, faltando-lhes a determinação exata da soma devida, perdem a própria natureza executiva e só podem ser cobrados pelo processo de cognição5. Não há, portanto, liquidação de título executivo extrajudicial.6Embora o normal seja a liquidação acontecer logo após a sentença, a medida pode também se dar incidentalmente no curso da execução, em casos como o da conversão em perdas e danos de obrigação de fazer ou de entrega de coisa (arts. 809, § 2º e 816, parágrafo único).7650. Liquidação de sentença declaratória e de outros títulos judiciais

O título executivo judicial básico não é mais identificado com a sentença condenatória, mas sim com a decisão que reconheça "a exigibilidade de obrigação de pagar

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quantia, de fazer, de não fazer ou de entregar coisa" (NCPC, art. 515, inc. I).8Tanto faz, portanto, que a sentença seja condenatória, constitutiva ou declaratória. Se do seu conteúdo se extrair o reconhecimento judicial de uma obrigação a ser cumprida por uma das partes em relação à outra, configurado estará o título executivo judicial.

Como toda execução pressupõe certeza, liquidez e exigibilidade da obrigação (art. 783), a sentença declaratória, como qualquer das outras previstas no art. 515, somente terá força executiva quando contiver todos os elementos da relação jurídica obrigacional, ou seja, quando identificar partes, natureza e objeto da obrigação, tempo e demais condições para o seu cumprimento. Portanto, sentença que simplesmente declara a inexistência de uma relação jurídica ou a existência genérica de um dever jurídico, não pode ser qualificada como título executivo.

Quid juris se a sentença declaratória (ou a homologatória de um acordo) contiver todos os elementos da obrigação, mas não lhe fixar o valor devido? Admitir-se-á, sem dúvida, sua submissão ao procedimento de liquidação regulado nos arts. 509 a 512.9

É importante registrar que, coerentemente com a nova sistematização legal dos títulos executivos judiciais (art. 515), a disciplina da liquidação não se restringe às sentenças condenatórias genéricas. De fato o art. 509 dispõe que "quando a sentença condenar ao pagamento de quantia ilíquida, proceder-se-á a sua liquidação, a requerimento do credor ou devedor". Mas como o art. 515, inc. I, conceitua o título executivo judicial sem levar em conta a natureza da sentença, também o procedimento liquidatório é traçado para ser aplicado a qualquer sentença - e não apenas à condenatória - que acerte a existência de uma obrigação sem determinar o respectivo valor.10651. Casos de iliquidez da sentença

A iliquidez da condenação pode dizer respeito à quantidade, à coisa, ou ao fato devidos. Nas dívidas de dinheiro, dá-se a iliquidez da sentença, em relação ao quantum debeatur quando:

a) condena ao pagamento de perdas e danos, sem fixar o respectivo valor;

b) condena em juros, genericamente;

c) condena à restituição de frutos, naturais ou civis;

d) condena o devedor a restituir o equivalente da coisa devida;

e) em lugar do fato devido, e a que foi condenado o devedor, o credor prefere executar o valor correspondente, ainda não determinado11.

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Em relação à coisa devida, a sentença é ilíquida quando condena: a) à restituição de uma universalidade de fato, como por exemplo na petição de herança; b) em obrigação alternativa12.

Considera-se, finalmente, ilíquida a sentença, com relação ao fato devido, quando condena o vencido a obras e serviços não individualizados, tais como reparação de tapumes, medidas para evitar ruína, poluição ou perigo de dano a bens de outrem etc.

Como a lei reconhece força executiva não apenas às típicas sentenças condenatórias, cabível é, em determinados casos, a liquidação das sentenças declaratórias, constitutivas e homologatórias (NCPC, art. 515).13Aliás, ao prever o cabimento da liquidação, o art. 509 não faz menção à sentença condenatória, mas genericamente à sentença que "condenar ao pagamento de quantia ilíquida", deixando claro que qualquer título executivo judicial pode submeter-se ao procedimento liquidatório.

Embora vários sejam os casos de iliquidez de sentença, o procedimento liquidatório especial regulado pelos arts. 509 a 512, do NCPC cuida apenas das sentenças genéricas proferidas sobre obrigações de prestação em dinheiro, ou substituídas por prestação dessa espécie.

A iliquidez pode ocorrer no julgamento de qualquer modalidade de ação ou procedimento. Todavia, no procedimento sumário ratione materiae, previsto no art. 275, II, do CPC de 1973, e mantido temporariamente pelo art. 1.046, § 1º, do NCPC, a condenação pecuniária não pode ser ilíquida. Compete ao juiz proferir sempre condenação de valor determinado, valor que será definido segundo a prova disponível, ou o mesmo sendo imprecisa dita prova, caberá ao sentenciante fixá-lo "a seu prudente critério" (art. 475-A, § 3º, do CPC/73).

652. Natureza jurídica da liquidação da sentença

Na história do processo civil brasileiro, a liquidação de sentença já foi classificada como incidente da ação executiva, ou seja, como fase vestibular do próprio processo de execução (Código de 1939). No texto primitivo do Código de 1973 passou à categoria de "processo preparatório", anterior à instauração da execução forçada, desenvolvendo-se, ainda no plano do processo de conhecimento, mas em outra relação processual inaugurada após o encerramento do processo principal que culminara com uma sentença genérica14. Somente após uma nova sentença é que, nos termos do antigo art. 611, do CPC/73, o credor poderia propor a ação de execução da sentença. O julgado do procedimento liquidatório, configurava, portanto, uma sentença de natureza declaratória, necessária para completar o título executivo, já que antes dela, o credor

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ainda não contava com título de obrigação certa, líquida e exigível, para atender as exigências do art. 586, do CPC/73.15Tinha-se, na espécie, um título executivo múltiplo, porquanto integrado por mais de um documento e mais de uma declaração de vontade: assim é que a primeira sentença dava certeza ao direito do credor, e a segunda lhe adicionava a liquidez e...

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