Tolerância e Ordem Pública: Contribuições da Convenção sobre os Direitos da Criança ao Sistema Nacional de Proteção da Infância

AutorGustavo Ferraz de Campos Monaco
Páginas34-42

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1. Introdução: a Convenção sobre os Direitos da Criança e a construção de uma ordem pública própria ou como caminhar com o outro?

A Convenção sobre os Direitos da Criança, aprovada em Assembleia Geral das Nações Unidas em 1989, procura positivar os direitos reconhecidos em 1959, quando da edição da Declaração Universal dos Direitos da Criança. Foram dez anos de trabalhos e discussões até que o consenso pudesse prevalecer e o texto final pudesse ser submetido à assinatura dos Estados, alcançando, após poucos meses, um número incrível de ratificações1.

Trata-se, como é sabido, de uma Convenção de Direitos Humanos que, como tal, estabelece para os Estados que se comprometeram a cumprir seus desígnios uma série de deveres de omissão — na garantia das liberdades ali estabelecidas ou reafirmadas — ou de ação — para a plena efetivação dos direitos de natureza econômica, social e cultural.

Enquanto instrumento forjado na seara internacional, é um texto decorrente de um caminhar com o outro. Todos os Estados caminhando no intuito de garantir direitos fundamentais às crianças quer nas relações entre elas e estes mesmos Estados, quer — ainda e principalmente — nas relações que as crianças travam com os membros de suas próprias famílias, da comunidade em que estas famílias se inserem e da sociedade em geral.

Ao garantir direitos exercíveis na esfera privada, a Convenção abre as portas para o direito internacional privado, que se ocupa da determinação da lei aplicável às situações chamadas de plurilocalizadas, porquanto apresentem, em sua estrutura, elementos que se relacionam com mais de uma ordem jurídica interna. Não por acaso, diversas das Convenções firmadas no âmbito da Conferência da Haia de Direito Internacional Privado que se ocupam de temas de interesse da infância fazem expressa referência, em seus considerandos, à Convenção

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sobre os Direitos da Criança, como é o caso das Convenções sobre adoção, sequestro, guarda e alimentos, por exemplo.

Junte-se a este cenário a pluralidade de arranjos jurídico-sistemáticos possíveis para reger o relacionamento entre as normas de origem internacional e as normas de origem interna para que se atinja, em muitas temáticas, conflitos normativos em que o princípio da ordem pública deverá ser chamado a atuar, quer para reafirmar a aplicabilidade da lei estrangeira, quer para a afastar.

Entender os limites e a sistemática de atuação em geral do princípio da ordem pública2 é o propósito principal do presente artigo. Seu objeto de reflexão será as questões e hipóteses em que o atuar próprio do direito internacional privado puder submeter questões de interesse de crianças a uma lei estrangeira que poderá ser materialmente muito diversa da lei brasileira.

2. Princípio da ordem pública e seu papel

O princípio da ordem pública tem sua precisão dificultada3 quer pela dessemelhança enfrentada por seu conteúdo ao longo do tempo, quer pela disparidade de valores que são postos em jogo nos diversos Estados. Luiz Olavo Baptista a caracteriza por sua “dinâmica histórico geográfica”4.

Os valores mencionados decorrem de certa filosofia político-jurídica imanente às diversas legislações nacionais5. Essa filosofia corporifica as necessidades de cada Estado em determinada época, e é tida como um patamar abaixo do qual não pode haver concessão à legislação estrangeira6. Essa lei estrangeira, “que choca, que é incompatível, que escandaliza, esta lei é distante, foge completamente da ideia básica de proximidade, e por isto não pode ser aplicada”7. Ferrer Correia adverte, no entanto, que, algumas vezes,

[...] a ordem pública internacional é invocada como meio de defesa de uma política legislativa que não visa a tutela daqueles valores mas que é adoptada por motivos de oportunidade. A recusa de aplicação da lei estrangeira justifica-se aqui pelo receio de que a aplicação da norma contrária àquela política possa ter um efeito subversivo8Tal qual sucede com as normas de aplicação imediata, também a ordem pública internacional9corre o risco de ser invocada, assim, indevidamente

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e utilizada de forma arbitrária. Daí porque as mais recentes convenções de direito internacional privado, mormente aquelas decorrentes da Conferência da Haia de Direito Internacional Privado, tenham deixado assente que a não aplicação de um direito estrangeiro mandado aplicar pelas normas de conflito locais só poderá decorrer de uma incompatibilidade manifesta entre a norma estrangeira e os valores ou a política legislativa do foro10.

O expediente tem a conveniência de, pelo menos, exigir uma bem fundamentada exposição dos motivos que levaram à incidência do princípio no caso concreto11, por exemplo. Além disso, deve imperar a atualidade do princípio, ou seja, “a disposição da lei estrangeira sobre a qual a questão se coloca deve ser confrontada com o estado atual da ordem pública internacional do foro”12.

Em que, então, diferem das normas de aplicação imediata13? A resposta, além de procedimental, deve perscrutar também traços substanciais, a fim de bem se sustentar.

Do ponto de vista do procedimento de atuação, a doutrina é unânime ao apontar a incidência aposteriorística do princípio da ordem pública, muito embora se saiba que, no passado, autores como Mancini tenham procurado sustentar uma concepção apriorística14 ao defenderem a existência de leis de ordem pública.

Tal modo de ver o princípio, no entanto, não vingou. Como salienta Jacob Dolinger,

[...] não sendo as leis propriamente ditas de ordem pública, não há como falar de leis de ordem pública interna e leis de ordem pública externa. Existe o princípio da ordem pública, algo abstrato que é aplicado às leis quando o juiz entender que determinada regra jurídica deve contar com a proteção, com o reforço desse princípio.15Fosse aplicada a priori, a ordem pública reconstituir-se-ia em categoria autônoma de conexão, como ressaltado por Luis de Lima Pinheiro16, e nisso se aproximaria das normas de aplicação imediata. Incidindo a posteriori, ou seja, após a constatação de que a solução material indicada para a hipótese sub judice se mostra intolerável face aos princípios e às normas da ordem jurídica do foro, afasta-se de forma veemente daquela categoria e assume o seu papel de fase do método conflitual clássico. Aliás, Francescakis deixa claro que a ordem pública inter-nacional é completamente indissociável do método conflitual17.

O fato de a ordem pública atuar a posteriori da verificação da lei aplicável permite que a defesa dos valores caros ao foro ocorra de modo mais equilibrado do que ocorre com as leis de aplicação imediata, as quais obstam a verificação do conteúdo

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da lei material estrangeira aplicável desde logo. Isso porque, no âmbito da ordem pública, é possível conferir se a ofensa aos valores do foro se efetiva ou não. Contrariamente, as normas de aplicação imediata nem sequer permitem essa investigação, tomando como fato consumado a ofensa mencionada (que, em verdade, poderia mesmo não ocorrer).

Substancialmente, o princípio de ordem pública guarda estreita preocupação com a justiça material18, com o resultado que se produzirá no foro pela aplicação da lei estrangeira e os riscos de que essa aplicação venha a abalar “os próprios fundamentos da ordem jurídica interna (pondo em causa interesses da maior transcendência e dignidade)”19.

3. Princípio da tolerância e seu papel

Nesse passo, gostaria de me valer de dois textos que me chegaram às mãos em momentos diversos. Um, intitulado “Tolerância, intolerância, intolerável”, de Paul Ricœur20, o outro, intitulado

“As razões da tolerância”, de Norberto Bobbio21, cumprem, no meu entender, importante papel para a compreensão do princípio da ordem pública, sua construção, seus limites e suas funções.

Tendo como tema central a tolerância religiosa, o texto de Ricœur traz importantes reflexões sobre as instituições e as tradições culturais, e constrói uma concepção da tolerância enquanto abstenção, que é o seu sinal negativo, de percepção de que, diante de algo que poderia afrontar o interlocutor, gerando nele o desejo de interditar a conduta que afronta, é, ao contrário, tolerada, abstendo-se de uma reação mais veemente que, todavia, se ocorresse, não poderia ser alvo de censura. Nesse contexto, a intolerância apresenta-se, por sua vez, como uma “disposição hostil à tolerância eclesiástica ou civil”22.

Ricœur explica que esse conteúdo, essa definição da (in)tolerância, é institucional. No âmbito individual, por sua vez, a tolerância se manifesta por meio não da abstenção, mas da admissão. Admite-se no outro uma maneira de agir, de pensar, de conduzir a situação que é substancialmente diversa daquela que seria sua própria forma de atuação diante das mesmas circunstâncias. E a intolerância, para o indivíduo, mostra-se pela condenação da opinião ou da conduta do outro, já que ele não as suporta23.

Bobbio, por sua vez, expressa que, no plano individual, a tolerância apresenta uma razão moral consubstanciada no respeito à pessoa alheia: “creio firmemente em minha verdade, mas penso que devo obedecer a um princípio moral absoluto: o respeito à pessoa alheia”24.

Institucionalmente, o Estado se manifesta de forma tolerante e justifica positivamente a liberdade que concede aos jurisdicionados por meio da ideia de justiça, que assume, assim, “o reconhecimento do direito de existência das diferenças e do direito às condições materiais de exercício de sua livre expressão”25. Todavia, como “as esferas de liberdade são competitivas e a expansão de...

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