Tomada de decisão apoiada: perspectivas de utilidade
Autor | César Fiuza/Roberto Henrique Pôrto Nogueira |
Páginas | 49-69 |
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Salto relevante promovido pelo Estatuto da Pessoa com Deficiência4manifesta-se na desconexão entre a deficiência e a ausência de discernimento, ou melhor, deficiência e incapacidade.
Isso fica evidente quando a incapacidade relativa é impingida, para além das tradicionais hipóteses (os maiores de dezesseis e menores de dezoito anos; os ébrios habituais e os viciados em tóxico; e os pródigos), àqueles que, por causa transitória ou permanente, não possam exprimir sua vontade. A teoria das inca-pacidades passa a desconsiderar o panorama de fundo desse fenômeno, seja ele a deficiência (impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial) ou qualquer outra razão. Afinal, há pessoas não portadoras de deficiências que, por motivos de curto e médio prazos, ficam impossibilitadas ou inseguras para manifestarem sua vontade.
E ainda que o art. 748 do Código de Processo Civil,5ao tratar da legitimidade residual do Ministério Público para mover a interdição, tenha se escorado na
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circunstância de doença mental grave, tal figura deve ser interpretada como doença que comprometa o discernimento em grau suficiente a justificar a inca-pacidade e a medida excepcional da curatela.
Assim, nem toda característica física ou psíquica da pessoa que destoe do que é considerado socialmente convencional é tida como doença. Nem toda doença gera deficiência, do mesmo modo que há deficiência que não corresponde, necessariamente, a uma entidade nosológica.
A doença, a deficiência ou qualquer outra qualidade da qual se revista a pessoa pode ou não gerar dificuldade de expressão da vontade. “(...) A doença não é causa necessária de deficiência e nem aquela e nem essa, por si só, são causa de incapacidade.”6Logo, caso essa dificuldade se verifique, cabe aferir se ela é, no caso específico, suficiente para que se constitua a incapacidade relativa e para que se justifique a atribuição de uma medida de cuidado, sua espécie, extensão e duração.
Por conseguinte a deficiência, em qualquer das suas formas, não é mais – por si só – causa para a decretação da incapacidade relativa. Apenas a impossibilidade de exprimir a própria vontade, por causa transitória ou permanente, autoriza a incapacitação relativa.7
Mais do que a detecção de deficiência, importa aferir, por meio de equipe multidisciplinar, se a deficiência afeta o potencial para a expressão da vontade, conforme preleciona Iara Antunes de Souza:8“Se cabe à equipe multidisciplinar verificar a deficiência, também cabe a ela avaliar se, excepcionalmente, a deficiência afeta a autodeterminação da pessoa, ou seja, afeta seu discernimento para exercer atos da vida civil”.
O Estatuto da Pessoa com Deficiência é, portanto, destinado a assegurar e a promover, em condições de igualdade, o exercício dos direitos e das liberdades fundamentais por pessoa com deficiência, visando à sua inclusão social e cidadania. Para tanto, interfere no regime jurídico das incapacidades, para que seja
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preservada a autonomia privada dos sujeitos nesse estado, na maior medida possível. A normativa serve de parâmetro para a interpretação teleológica do sistema das incapacidades.
Busca-se, em todo caso, que pessoas com deficiência tenham direito à igualdade de oportunidades com as demais, sem discriminação.
Por outro lado, à pessoa com deficiência, caso tenha algum comprometimento no discernimento, ainda insignificante para ocasionar incapacidade, pode ser-lhe reconhecido o estado de vulnerabilidade, apto a explicar a aplicação do regime protetivo do Estatuto da Pessoa com Deficiência.
Afinal, a regra é que a deficiência não afeta a plena capacidade civil da pessoa, inclusive para casar-se e constituir união estável; exercer direitos sexuais e reprodutivos; exercer o direito de decidir sobre o número de filhos e de ter acesso a informações adequadas sobre reprodução e planejamento familiar; conservar sua fertilidade, sendo vedada a esterilização compulsória; exercer o direito à família e à convivência familiar e comunitária; e exercer o direito à guarda, à tutela, à curatela e à adoção, como adotante ou adotando, em igualdade de oportunidades com as demais pessoas.
A rigor, o art. 84 do Estatuto da Pessoa com Deficiência preconiza que a pessoa com deficiência deva ter assegurado o direito ao exercício de sua capacidade legal em igualdade de condições com as demais.
Cabe reconhecer vulnerabilidade mesmo para pessoas capazes, com alguma redução de discernimento.
(...) o reconhecimento da diferença e da vulnerabilidade pessoal e social desses indivíduos, em distintos graus de comprometimento das possibilidades de interação e desenvolvimento pessoal, merece ser visto com atenção.9O reconhecimento da vulnerabilidade das pessoas com deficiência ou portadoras de necessidades especiais impacta sobre o direito tanto no tocante ao direito público, quanto ao direito privado. Os limites de autodeterminação e liberdade pessoal são ponderados em vista à proteção da dignidade e integridade do deficiente. Ainda no direito privado, percebe-se uma tendência clara de reforço dos deveres de respeito à dignidade das pessoas e na proteção de seus interesses, especialmente pelo controle mais efetivo dos mecanismos judiciais de avaliação e indicação das
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situações em que se autoriza a restrição da eficácia da declaração de vontade individual (mediante o uso da curatela, especialmente), Da mesma forma, em relação às situações de deficiência física, legitima-se com mais deveres dos proprietários de imóveis para adoção de providências visando assegurar os direitos de acessibilidade já consagrados.10O advento do Estatuto da Pessoa com Deficiência revela, efetivamente, a identificação de situação de vulnerabilidade da pessoa que se apresenta com limitação na exteriorização ou na formação de suas convicções, com a consequente promoção de tutela jurídica que busque assegurar a autonomia privada, exercida em um contexto intersubjetivo que conta, na maior medida possível, com a sua participação. Afinal, “autonomia é um conceito que pressupõe sempre intersubjetivi-dade, determinando-se por máximas aprovadas pelo teste da universalização”.11Logo, o que se sobreleva são a proteção, o cuidado e a promoção dos vulneráveis com dificuldade de expressão da vontade, mais do que a causa desse cenário, seja ela a deficiência ou não. Havendo necessidade de medida de cuidado, ela pode ser extraordinária – a curatela ? ou a tomada de decisão apoiada, estruturada para que seja recurso à disposição da pessoa que se vê necessitada de apoio na prática de atos da vida civil.
Diante desse panorama, é útil elucidar as principais mudanças promovidas pelo Estatuto da Pessoa com Deficiência ao regime jurídico das incapacidades para, então, buscar alguma aplicabilidade prática mais provável à tomada de decisão apoiada.
Reconhecer a vulnerabilidade da pessoa com deficiência é uma questão de princípio. A regra, tendo por lastro os fundamentos constitucionais do pretendido
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Estado Democrático de Direito e os direitos e garantias fundamentais, passa a ser o suporte à capacidade, com a proteção contra toda forma de exclusão, negligência, discriminação, exploração, violência, tortura, crueldade, opressão e tratamento desumano ou degradante.
Logo, se necessário, mesmo sem incapacidade, há de existir apoio.
E se isso procede, as vulnerabilidades põem em causa a urgência da tutela das capacidades, inclusive.
Em preferência de alusão a um novel desenho de um regime jurídico das capacidades, é mister adentrar o campo da capacidade de fato, geral ou plena.
Incapacidade absoluta fica reservada apenas para aqueles que, em razão da idade, a lei presume alguma imaturidade intelectiva suficiente a comprometer a definição e expressão da vontade.
No mais, a incapacidade é sempre relativa, e isso há de significar algo para o direito.
Se antes a ausência do necessário discernimento para a prática de atos da vida civil estava atrelada à causa da enfermidade ou deficiência mental, atualmente apenas se preocupa com a impossibilidade, considerada em graus, da expressão da vontade.
Vale reforçar, além dos indígenas, pródigos, ébrios habituais e os viciados em tóxico, podem ser declarados relativamente incapazes aqueles que, por causa transitória ou permanente, não possam exprimir sua vontade. Esse é o crivo.
O principal significado dessa mudança é o mandamento da proporcionalidade da medida de cuidado, seja ela qual for.
A proporcionalidade deve ser considerada no tempo, na extensão (campo de atuação) das atribuições e na função do cuidador em (eventualmente) suplementar ou chancelar a vontade. Essa proporcionalidade é direcionada ao mínimo de intervenção necessária para a preservação da capacidade, de maneira que dela se sobressai o irrefutável comprometimento do cuidador com medidas de proteção do vulnerável e de reversão/mitigação do estado de dependência. Portanto, a pessoa vulnerável, no tocante à expressão da vontade, passa a poder experimentar uma medida de cuidado, que pode ou não derivar de um estado de incapacidade, que, por sua vez, não mais se coaduna com a situação excessivamente redutiva e quase sempre irremediável.
Esse mandamento é...
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