Totalizacao e Contradicao: Aportes Epistemologicos para uma Investigacao Interdisciplinar em Direitos Humanos/Totalization and contradiction: Epistemological contributions to an interdisciplinary investigation on Human Rights.

AutorCosta, Alexandre Bernardino
  1. Introducao

    O presente trabalho pretende apresentar pistas iniciais para pensar epistemologicamente as implicacoes de uma pesquisa interdisciplinar em direitos humanos que, a partir de uma perspectiva assentada na dialetica social do direito elaborada por Roberto Lyra Filho e no pensamento critico (1) oriundo da tradicao considerada heterodoxa do marxismo (2), enfoque os argumentos adotados pelos principais movimentos sociais que discutiram sobre a aprovacao da Emenda Constitucional 95 (antiga PEC 55/16 e 241/16), proposta pelo governo brasileiro a partir do golpe juridico-parlamentar de 2016, a partir da problematica dos usos do direito pelos movimentos populares e pelos movimentos de grupos espoliadores.

    Assim, intenta-se apresentar questoes metodologicas iniciais para investigar tal cenario, sem, por certo, esquecer que as consideracoes formais nao devem ser absolutizadas, visto que devem se adequar as peculiaridades do objeto estudado, cujo desenvolvimento pode, por vezes, forcar o pesquisador a tomar caminhos antes inimaginaveis. Cumpre asseverar: "o metodo nao e um conjunto de regras formais que se 'aplicam' a um objeto que foi recortado para uma investigacao determinada" (NETTO, 2011, p. 52), nem "a logificacao da pletora fenomenica pela adjudicacao a ela de um nexo exterior a ela adredemente construido" (VAISMAN, 2006, p. 18).

    Para tanto, partimos da coleta de uma bibliografia sobre metodologia especifica. Notadamente, partimos das referencias bibliograficas indicadas no programa da disciplina Metodos e tecnicas de pesquisa (3), ministrada no segundo semestre de 2017, no Programa Interdisciplinar de Direitos Humanos e Cidadania da Universidade de Brasilia (PPGDH/UnB) (4). Destarte, podemos assinalar que o presente trabalho pretende-se um estudo exploratorio que tenta elaborar dialogos entre o corpus inicial, o nosso horizonte cognitivo adotado (Lyra Filho e o marxismo heterodoxo) e o problema de pesquisa de fundo que nao podera ser aprofundado no presente esboco (os usos do direito e as concepcoes de direitos humanos no processo de aprovacao da Emenda Constitucional 95/16). No caso, propositalmente adotamos uma exposicao ensaistica (5) dos textos iniciais, integrados dentro de nossa redacao aos outros elementos indicados acima. Ou seja, decidimos redigir o texto de modo a ressaltar as continuidades e contribuicoes entre os diversos autores para fomentar as bases epistemologicas iniciais de nossa pesquisa. Tematicamente, encontramos interpenetracoes nas discussoes sobre: 1) A natureza do conhecimento cientifico; 2) a necessidade de totalizar, conectar, interligar as diferentes partes da realidade; e 3) a relevancia de pensar a totalidade social a partir de suas contradicoes dinamicas e em constante desenvolvimento. Essa ordenacao da exposicao, cabe dizer, nao e acidental: segue a dialetica da denuncia-anuncio freireana e pretende realizar postulados classicos da teoria critica (visibilizar o invisibilizado e expor as contradicoes que permeiam a realidade). Assim, surgiram indicios instigantes para pensar em elementos que podem compor uma epistemologia critica em direitos humanos.

    Dito isso, deve-se apontar o itinerario que buscara encontrar essas pistas. Cabe indicar que tratamos especificamente de elementos e discussoes que podem ser identificados tanto nos textos do corpus inicial quanto nas expressoes de nossos marcos teoricos. Portanto, em primeiro lugar, perguntar-se-a acerca do significado do conhecimento cientifico, comparando o que ele concreta e historicamente tem sido, por um lado, e o que ele deveria ser, por outro. Dai, surgirao algumas nocoes elementares para pensar a construcao do pensamento.

    Depois, com fundamento nas bases teoricas acima delineadas, destacamos dois momentos, profundamente interconectados, de apreensao/dialogo com o objeto de estudo: o de totalizacao e o da contradicao, a fim de entender sempre o que e estudado de forma dinamica e relacional, de modo a desnaturalizar toda sorte de dogmas e reducionismos.

    Enfim, abordaremos concisamente nas conclusoes alguns caminhos e pontos de partida metodologicos (malgrado o foco do trabalho seja eminentemente epistemologico, portanto menos orientado a delimitacao pratica de como efetuar uma pesquisa cientifica) para a fundamentacao de pesquisas interdisciplinares em direitos humanos. Obviamente, trata-se de um processo nao exaustivo e especulativo de possibilidades de pesquisa, alheio a qualquer dogmatizacao e voltado meramente a indicacao de exemplos possiveis.

    Como ultimo elemento introdutorio, gostariamos de destacar uma questao concernente ao estilo da presente redacao: optamos por adotar um numero extenso de notas de rodape e indicacoes bibliograficas. Fizemo-lo com a intencao de sempre propiciar ao leitor especializado um maior fluxo de informacoes para que possa investigar mais a fundo os elementos aqui apresentados e, inclusive, questionar as afirmacoes aqui inscritas. No entanto, tambem preocupados com o leitor de ocasiao, que almeja apenas uma introducao ao tema e uma leitura menos pesada, incluimos todos os temas fundamentais no corpo principal do texto. Portanto, para uma leitura mais leve e dinamica, nao ha problema nenhum em pular as notas de rodape, uma vez que ainda assim se tera um acesso aos argumentos essenciais aqui postulados.

  2. O conhecimento cientifico entre um projeto moderno de dominacao e a demarcacao cientifica.

    Se vuelve cruda mentira Lo que ayer fue tierna verdad Y hasta la tierra fecunda Se convierte en arenal Atahualpa Yupanqui Como ja afirmado, podemos abordar o conhecimento cientifico a partir de uma perspectiva pessimista, considerando mais enfaticamente o que ele efetivamente realizou e suas origens sociais, ou desde uma perspectiva deontologica, isto e, mais preocupada em responder como deveria funcionar o conhecimento de vies mais sofisticado e aprofundado. Ambas as discussoes sao importantes para a reflexao acerca da construcao do conhecimento.

    Na primeira abordagem, faz-se necessario localizar o conhecimento cientifico tal como o conhecemos hoje dentro de um projeto moderno de dominacao e de controle da natureza, que so pode surgir a partir do desenvolvimento do capitalismo e do colonialismo (6). Desse cenario, potencializam-se ainda mais os principios do Esclarecimento (7), tal como descrito por Adorno e Horkheimer. Emerge um processo de quantificacao e matematizacao da realidade que culmina em um profundo fatalismo historico:

    Ao tornar-se, no procedimento matematico, a incognita de uma equacao, o desconhecido fica assim caracterizado como um velho conhecido, mesmo antes de se ter determinado o seu valor. Antes e depois da teoria dos quanta, a natureza e aquilo que deve ser compreendido matematicamente; mesmo o que nao se encaixa, insolubilidade e irracionalidade, e cercado por teoremas matematicos. Identificando por antecipacao o mundo matematizado, pensado ate as ultimas consequencias, com a verdade, o iluminismo acredita estar a salvo diante do retorno do mito. Ele identifica pensar e matematica. Assim, esta fica como que deixada a solta, convertida em instancia absoluta (ADORNO; HORKHEIMER, 1975, p. 112). Esse processo, no fim das contas, significa um intento de dominar e controlar a natureza, degradando-a imensamente:

    O rigor cientifico, porque fundado no rigor matematico, e um rigor que quantifica e que, ao quantificar, desqualifica, um rigor que, ao objetivar os fenomenos, os objetualiza e os degrada, que, ao caracterizar os fenomenos, os caricaturiza. E, em suma e finalmente, uma forma de rigor que, ao afirmar a personalidade do cientista, destroi a personalidade da natureza (SOUSA SANTOS, 1988, p. 58). Alem disso, tal postura de apreensao/dominacao "torna comparaveis as coisas que nao tem denominador comum, quando as reduz a grandezas abstratas". Desse modo, veda-se qualquer estudo preocupado com as qualidades da coisa (ADORNO; HORKHEIMER, 1975, p. 100). Assim, o processo final do Esclarecimento e do conhecimento cientifico descamba na racionalidade instrumental, incapaz de pensar valorativamente os fins de sua pratica: "a propria razao tornou-se mero instrumento auxiliar do aparato economico que tudo abrange", tornou-se "puro orgao dos fins" (ADORNO; HORKHEIMER, 1975, p. 116).

    Esse completo absenteismo de pensar os fins e os valores permitiu, por exemplo, a criacao de maquinas sofisticadas de exterminio da populacao humana. Uma classica demonstracao disso e o relato de Hannah Arendt sobre como Adolf Eichmann, em seu trabalho de exportar judeus para os campos de exterminio, conseguia realizar tao odiosa tarefa e preocupar-se apenas com os meios burocraticos necessarios para alcancar tais fins, esquecendo-se de refletir sobre o mal contido nesse fim ordenado por seus superiores: era marcado por uma "completa ignorancia de tudo que nao fosse direta, tecnica e burocraticamente conectado com o seu emprego" (ARENDT, 2006, p. 77, traducao nossa) e, ainda por cima, gabava-se da "objetividade" com a qual realizava suas funcoes (ARENDT, 2006, p. 95). Essa, no fim das contas, nao passa da objetividade que fundamentou historicamente e ainda fundamenta a ciencia instrumental moderna.

    Essa forma quantificadora de pensar a realidade concatena uma visao de mundo que separa peremptoriamente o momento do conhecimento entre o sujeito (ativo, racional, em movimento) e o objeto (passivo, bruto, inerte). Na teoria tradicional, "sujeito e objeto sao rigorosamente separados" (HORKHEIMER, 1975a, p. 153). Assim, reproduz-se uma dinamica de dominacao: "a distancia do sujeito ao objeto, pressuposto da abstracao, fundamenta-se na distancia a coisa que o senhor obtem por meio do assenhoreamento" (ADORNO; HORKHEIMER, 1975, p. 104).

    Essa separacao, ao fim e ao cabo, conduz a uma simplificacao de uma relacao que e muito mais complexa, porque, em primeiro lugar, esquece que o processo de investigacao nao e tao puro quanto imaginam os empiristas, porque o estudo do pesquisador sempre tem como...

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