Trabalhadoras Brasileiras no período entre 1950 e 1964

AutorAdriana Regina Strabelli - Giovanna Maria Magalhães Souto Maior - Patricia Maria Di Lallo Leite do Amaral - Regina Stela Corrêa Vieira
Páginas63-77

Page 63

Ver notas 1, 2, 3 y 4

1. Introdução

O período entre 1950 e 1964 retratado nos livros de História e que automaticamente vem à mente da maioria das brasileiras e brasileiros é marcado por acontecimentos protagonizados pelos homens que chefiaram o país na época: o segundo governo de Getúlio Vargas, no qual foi criada a Petrobrás, marcado pelo atentado que feriu Carlos Lacerda, a pressão e o suicídio de Vargas em 1954; a assunção à presidência da República por Café Filho; o desenvolvimentismo do governo de Juscelino Kubitschek, com seu plano de metas e a interiorização do país por meio da construção de Brasília; Jânio Quadros e a renúncia mal articulada; o governo João Goulart, suas reformas de base e o golpe civil-militar.

Invisíveis estão as mulheres nessa narrativa, cabendo a elas um papel coadjuvante, predominantemente de "companheiras", reforçando a máxima de que "por trás de um grande homem, há sempre uma grande mulher". Pouco se olha para a participação das mulheres dessa época além do âmbito doméstico, o que gera a falsa ideia de que sua presença não foi relevante para o Brasil e deixa de lado sua atuação em diversos setores, desde a produção fabril até a política e o ativismo social.

É justamente este "outro lado" da História que o presente artigo pretende despertar, o lado das trabalhadoras e lutadoras no Brasil. Para tanto, aborda-se inicialmente a representação social das mulheres nesse período, analisando tanto os estereótipos femininos como, também, os reflexos das relações de gênero no ordenamento jurídico nacional. Em seguida, busca-se contrapor a imagem construída da "mulher padrão" com a realidade das mais diversas mulheres inseridas no trabalho e nas lutas sociais. Por fim, apresentam-se breves relatos de mulheres que marcaram a época, as quais, mesmo não sendo as únicas, merecem destaque por terem construído com suas próprias mãos a nossa história. São elas: as pioneiras de Brasília, Carolina de Jesus, Darcy Vargas, Alzira Vargas, Moema Toscano, Nieta Campos, Zilda Xavier e Zuleika Alambert.

2. A representação feminina na sociedade e no direito

Nos "Anos Dourados"5, período que se estende de 1945 a 1964 no Brasil, as representações de gênero foram bastante acentuadas. A construção cultural do papel dos homens e das mulheres na sociedade foi reforçada de modo a impor certos modelos de conduta pautados na divisão sexual do trabalho, dominando a ideia de que as mulheres nasciam para ser donas-

Page 64

-de-casa, esposas e mães, dedicadas aos cuidados do lar e da família.

Este padrão de feminilidade era voltado, sobretudo, às mulheres brancas e de classe média, que possuíam família ou marido para financiar sua permanência em casa, vez que para as mulheres pobres e negras não restava alternativa senão o trabalho remunerado fora de casa para poderem se sustentar. Ainda assim, as expectativas sociais acabavam sendo incorporadas à realidade, "influenciando suas atitudes e pesando em suas escolhas".6

Exemplo de como a sociedade operava na reprodução dos estereótipos de gênero são as revistas femininas da época, como Jornal das Moças (anos 1940 e 1950) e Revista Claudia (anos 1960), que serviam de fonte de informação para as mulheres da classe média urbana. Estes periódicos reforçavam conceitos relativos à "natureza dos sexos" e "jeitinho feminino", além de apresentarem figuras como a "boa esposa", a "moça de família", a "jovem rebelde", ou o "bom partido" e o "marido ideal", ou ainda "a outra". O Jornal das Moças, em especial, colocava-se explicitamente a serviço dos "bons costumes" e da "família estável".7

Também a publicidade da época trazia forte conteúdo sexista, com nítida desvalorização da imagem feminina.8 As propagandas enfatizavam o papel submisso das mulheres em relação ao homem e sugeriam que as atividades domésticas constituíam obrigações exclusivamente femininas, enquanto a imagem masculina era associada ao trabalho remunerado e ao espaço público, reforçando o papel dos homens como prove-dores e chefes da família, a quem as mulheres deveriam agradar e conquistar.9

Ainda que nesse período o Brasil tenha ingressado em uma fase de desenvolvimento acelerado, com avanço da industrialização e da urbanização - o que se refletiu não só no aumento no número de empregos e na criação de novas ocupações no mercado de trabalho, mas também na valorização da educação escolar das mulheres -, o papel feminino primordial manteve-se vinculado ao lar e ao cuidado dos filhos e filhas.10

Segundo Carla Bassanezi Pinsky,

O aumento da participação feminina nos serviços de consumo coletivo (enfermagem, medicina, magistério, funcionalismo burocrático etc.), que se dá de forma crescente, sobretudo, a partir dos anos 1950 (embora, proporcionalmente seja pequena), representa a medida mais importante da integração das mulheres na atividade produtiva nacional. Marca uma ruptura simbólica com a exclusividade do trabalho doméstico (...). Contudo, a incapacidade de absorção da totalidade da força de trabalho por parte da economia e o imaginário que atrela a mulher à domesticidade são grandes obstáculos ao envolvimento das mulheres no mercado de trabalho.11

Assim, apesar dos avanços parecerem amenizar as distâncias entre homens e mulheres, as relações de gênero permanecem incorporadas à cultura brasileira, orientando práticas e comportamentos que se reproduzem ao longo dos anos, alimentando a desigualdade entre os sexos. Além disso, as instituições incorporam a lógica sexista, permitindo a reprodução e a naturalização dos estereótipos femininos e masculinos, o que se reflete e pode ser aferido, de forma nítida, por meio de uma sucinta análise do ordenamento jurídico vigente à época.

No período de 1950 a 1964, a condição jurídica das mulheres era regida pelo Código Civil de 1916, que se pautava em princípios conservadores da sociedade e mantinha os homens como os chefes da sociedade conjugal. Seu art. 6º, considerava a mulher casada relativamente incapaz, equiparando-a aos maiores de 16 e menores de 21 anos, aos pródigos e aos silvícolas. Esta disposição legal tornava imprescindível a autorização

Page 65

do marido para que a mulher praticasse determinados atos, inclusive para exercer profissão (art. 242, VII12).

Previa ainda o Código Civil de 1916: que em caso de discordância entre os cônjuges, prevaleceria a vontade paterna (art. 186); que com o casamento a mulher assumiria a condição de companheira, consorte e colaboradora do marido nos encargos de família (art. 240); que na constância do casamento, o pátrio poder seria exercido pelo marido, como chefe da família (art. 380); e que a mãe que contraísse novas núpcias perderia os direitos do pátrio poder, quanto aos filhos do leito anterior, recuperando-os no caso de viuvez (art. 393).

Observa-se, assim, a situação jurídica de extrema desigualdade entre mulheres e homens, pois enquanto solteira, uma mulher sujeitava-se ao domínio do pai e depois de casada, ao domínio do marido, o que assegurava uma posição de submissão feminina. Dessa forma, o mundo jurídico reproduzia e legitimava a divisão dos papéis entre homens e mulheres, bem como a "superioridade" masculina.

Somente com o advento da Lei n. 4.121, de 27 de agosto de 1962, conhecida como Estatuto da Mulher Casada, foram determinadas significativas alterações no Código Civil de 1916 - retrato de uma sociedade conservadora e patriarcal -, sendo por isso considerada o primeiro grande marco da evolução da condição jurídica das mulheres no Brasil.

O processo histórico e político referente à aprovação deste Estatuto deve ser mencionado, a fim de conferir o merecido destaque à mobilização social e às personagens que dedicaram parte de suas vidas à causa em favor das mulheres. Ademais, desconhecê-lo pode levar ao erro comum de se considerar que o Poder Legislativo responde prontamente às mudanças sociais, sendo essas mudanças fruto de mero desenvolvimento social e econômico "natural". A história mostra a resistência dos legisladores em avançar em pautas sociais, sobretudo em questões que envolvem cultura e religião, no que se incluem as diferenças entre os sexos.

A redação do anteprojeto de lei para alteração da capacidade jurídica das mulheres casadas data de 1950, de autoria das juristas Romy Martins Medeiros da Fonseca e Ormina Ribeiro Bastos. Depois de apresentarem o anteprojeto para diversos políticos e advogados, já tendo repercussão social, o senador carioca Mozart Lago levou o documento ao Senado, em 1952, mas acabou sendo engavetado por dez anos. A insistência do movimento de mulheres e o trabalho político realizado pelas associações feministas permitiram a aprovação do texto pelo Congresso Nacional, sancionado em seguida pelo presidente João Goulart, em 1962.13

Sobre a aprovação do Estatuto da Mulher Casada, Teresa Cristina de Novaes Marques e Hildete Pereira de Melo entendem que:

(...) entre várias tentativas de modificar a capacidade jurídica das mulheres, a bem-sucedida lei de 1962 resultou de um esforço político de diversos partidos políticos que superaram seus antagonismos em outros campos do debate político e aprovaram o texto final. Os deputados e senadores que evitaram que o projeto de lei de reforma dos direitos das mulheres casadas se perdesse, como tantos outros, nos labirintos legislativos agiram em função de perspectivas de ganhos eleitorais e responderam a estratégias políticas adotadas pelos promotores da reforma que se mostraram adequadas àquele momento parlamentar.14

Sobre as mudanças introduzidas pelo Estatuto, destaca-se a revogação do dispositivo que previa a incapacidade relativa das mulheres e a consagração da sua liberdade para o exercício da profissão, viabilizando a contratação direta entre...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT