Trabalhadores negros na origem da politica social brasileira/Black laborers at the beginning of Brazilian social policies.

AutorCosta, Gracyelle
CargoREVISTA EM PAUTA

Introducao

O simultaneo aniquilamento de corpos, saberes e memorias foi fundamental na construcao do mundo moderno. Sua analise seria parcial, porem, sem a compreensao do papel da hierarquizacao racial neste processo, algo ainda presente na divisao internacional do trabalho, nas desigualdades socioeconomicas, no poder politico e na producao de conhecimento.

O samba-enredo da escola de samba Estacao Primeira de Mangueira, vencedor do carnaval carioca de 2019, mostrou a importancia de revisitar a Historia diante da ascensao do conservadorismo. Nas ultimas decadas acoes afirmativas tem tornado instituicoes de ensino superior minimamente plurais, e a Academia tem sido provocada a recuperar historias ate entao nao contadas. Isso inclui ir alem da Historia Oficial, na qual pessoas negras figuram ainda como meros objetos de pesquisa, tal qual criticou Guerreiro Ramos (1957). Com este espirito surge a proposta aqui sumariada que compoe a primeira parte de uma tese de doutorado (1).

Importantes intelectuais que tratam da origem da politica social no Brasil vinculam seu surgimento as Caixas e Institutos de Aposentadoria e Pensoes (CAPs e IAPs). Depois desses marcos, segundo tal interpretacao,

0 acesso a aposentadorias, pensoes, cuidados a saude (medicamentos, hospitais, atendimento medico), alimentacao, habitacao, auxilio funeral etc. tornou-se direito social provido institucionalmente (SILVA; MAHAR, 1974; MALLOY, 1986; FALEIROS, 2000; SILVA, 2011; BEHRING; BOSCHETTI, 2011).

Tendo isso em vista, ao estudar que a Lei Eloy Chaves beneficiou ferroviarios, maritimos e portuarios com aposentadorias e pensoes, quantos imaginam estes sujeitos como negros e liderando atividades grevistas com milhares de companheiros tambem negros? Ou que, antes disso, ja organizavam seus proprios metodos de garantia de protecao e cuidados coletivos? A omissao da condicao racial destes sujeitos e grupos tende a produzir seu entendimento como brancos. Alem disso, as declaracoes nas quais a condicao racial e explicita comumente ressaltam uma brancura originalmente europeia.

Este artigo se dedica, por meio de analise qualitativa, a apresentar aspectos que revelam a presenca negra entre os trabalhadores que primeiro acessaram a politica social no Brasil. Analisa tambem a repercussao deste pertencimento em organizacoes coletivas afro-diasporicas dos proprios trabalhadores e na relacao com seus empregadores, a partir da experiencia dos portuarios do Rio de Janeiro do seculo XIX ao inicio do XX.

Portuarios, maritimos e ferroviarios: negros?

Como mencionado, a origem da politica social no Brasil tem sido atrelada as CAPs e IAPs, cuja legitimacao e posta pelo Estado atraves da chamada Lei Eloy Chaves no inicio do seculo XX (SILVA; MAHAR, 1974; MALLOY, 1986; FALEIROS, 2000; SILVA, 2011; BEHRING; BOSCHETTI, 2011). Ademais, a legislacao brasileira que previu as CAPs teve influencia latino-americana, especificamente argentina (MALLOY, 1986). Assim, o processo de institucionalizacao desse sistema ocorreu em meio a intensa mobilizacao de trabalhadores no pais e no mundo, que resultou em tratados e acordos internacionais.

O Decreto-Legislativo no 4.682, de 24/01/1923, instituiu a obrigatoriedade das CAPs a ferroviarios, estendida atraves do Decreto n. 5.109, de 20/12/1926, a portuarios e maritimos. De 1933 em diante, sob o governo varguista, as Caixas foram aos poucos substituidas por IAPs. Em termos gerais, a gestao, o financiamento e o usufruto das Caixas se restringiam a unidade da empresa (publica ou privada) e aos seus trabalhadores. Ja os IAPs, vinculados ao Ministerio do Trabalho, Industria e Comercio, ampliaram a participacao e o controle do Estado na gestao dos recursos, (2) e as categorias profissionais de cada instituto foram consideradas a nivel nacional (SILVA; MAHAR, 1974). Ambas as formas, porem, preservaram a perspectiva da solidariedade entre contribuintes e beneficiarios: todos contribuem para usufruto de todos.

A proeminencia de ferroviarios, maritimos e portuarios como pioneiros no acesso a esta logica securitaria, como regra, tem sido relacionada com seu papel economico estrategico numa economia agroexportadora. Sua historia, porem, esta longe de ser explicada apenas nestes termos. A trajetoria das atividades maritimas, ferroviarias e portuarias no Brasil do XIX possui pontos de contato significativos diante de um projeto de sociedade que tomou os meios de transporte como condutores do pais ao "progresso" (3) : 1) a dinamizacao alinhada ao aumento da exportacao e producao de bens primarios; 2) o emprego de mao de obra cativa, livre e liberta. Sera concedida atencao a este ultimo ponto, mesmo que brevemente, privilegiando a experiencia negra entre estes segmentos nos periodos pre e Pos-Abolicao (1888).

O historiador Roberio Souza (2007) identificou a presenca de livres, libertos e escravizados nacionais e estrangeiros na construcao da primeira ferrovia da Bahia, que ligou o interior do sertao baiano a capital, Salvador, a Bahia and San Francisco Railway Company (BSFR), inaugurada em 1860. Segundo Lamounier (2000), nesta companhia os nacionais foram maioria, o que Souza (2007) complementa indicando entre estes uma predominancia negra. Muitos deles, concentrados nas "turmas" responsaveis pela construcao das linhas ferroviarias, antes e depois da Abolicao, foram contratados por empreitada (4) e com baixos proventos (SOUZA, 2007; LAMOUNIER, 2008).

No seculo XIX a Marinha de Guerra, chamada de Armada Imperial, recorria ao "recrutamento" compulsorio de indigenas, africanos e afrodescendentes escravizados, bem como de livres "vadios", para composicao de mao de obra (5). Outra estrategia da Armada foi a criacao de escolas de aprendizes para treinamento de jovens orfaos e carentes (OLIVEIRA, 2013), uma maioria negra, no caso do Rio de Janeiro, que se manteve mesmo apos a Abolicao. As formas de recrutamento da mao de obra da Armada Imperial abrem caminhos para se identificar os trabalhadores da Marinha Mercante, sobretudo devido a cessao de mao de obra da propria Armada para a Mercante. Alem disso, a propria Mercante fazia uso de mao de obra escravizada, o que a Armada deixou de fazer em dado momento.

Sobre a composicao racial dos maritimos no Rio de Janeiro, no fim do seculo XIX, Cruz (2000, p. 271) afirma que:

Na dinamica colonial, a imposicao dos padroes civilizatorios eurocentricos pelos grupos dominantes nao foi impingida sem que houvesse resistencia dos grupos dominados. Muito pelo contrario, a memoria da Diaspora Negra nao so traz a marca da escravidao, como tambem das lutas de negacao desse padrao de sociabilidade (ALMEIDA, 2014, p. 141). Segundo os mapas estatisticos da Capitania do Porto do Rio de Janeiro, no ano de 1865, 47,5% da tripulacao das embarcacoes de cabotagem matriculadas na provincia eram constituidos por homens brancos e 52,5% por homens de cor. Dos brancos, 72% eram estrangeiros, e dos pretos e pardos, 80,2% eram escravos. O trafego interno do porto e a pesca ocupavam, por sua vez, 908 brancos (26%), sendo 88,8% estrangeiros, e 2 591 pretos e pardos (74%), dos quais 90,2% eram escravos.

Em regioes como Rio Grande (RS), Oliveira (2013) identificou o uso de trabalhadores negros escravizados, livres e libertos nessas atividades. Lamounier (2008, p. 7), por sua vez, afirma que "no Brasil, no setor de transportes, os escravos eram empregados nas tropas de mulas, na marinha mercante e nas companhias de navegacao de cabotagem". E possivel supor que, como nas atividades ferroviarias, as empresas maritimas contratavam quantidades consideraveis de escravizados africanos e afrodescendentes, libertos e livres (nacionais ou nao).

Entre os portuarios, o exemplo do Rio de Janeiro denota uma maioria de trabalhadores negros nesse periodo. No maior porto do pais nos oitocentos, o segmento negro, entre cativos e libertos, predominou nessas atividades na zona portuaria carioca e se notabilizou pelas formas de realizacao do trabalho e de organizacao coletiva para preservacao de seus interesses (MATTOS, 2010). Esta organizacao se dava em grupos, que ficaram conhecidos como "cantos", turmas ou tropas. Estes grupos se reuniam por territorios e eram regidos por um lider, tambem negro (livre, liberto ou escravizado), cujo nome varia no tempo e espaco - capataz, capitao de "canto", feitor, capitao, puxador etc. Sua lideranca se expressava tanto ao empreitar o trabalho, quanto ao deliberar tarefas e negociar com contratantes (6). O trabalho era realizado ao som de cantos africanos entoados pelo grupo (REIS, 1996; CRUZ, 2000; ARANTES, 2010; MCPHEE, 2014). Na Bahia, Joao Jose Reis (1993) demonstra que a quantidade de escravizados ao ganho, de maioria nago, encarregados de servicos de transportes, era tambem consideravel na cidade de Salvador. O ritmo e a maneira de conduzir os trabalhos tambem eram similares.

Nos tres casos, entre o...

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