Trabalho decente

AutorGeorgenor de Sousa Franco Filho
Ocupação do AutorDesembargador do Trabalho de carreira do Tribunal Regional do Trabalho da 8ª Região
Páginas322-333

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1. Sentido de decência no trabalho

Tratar de decência no mundo do trabalho importa em dizer da indecência de certas práticas. Por isso, em muitos países, inclusive no Brasil, há trabalho indecente: explora-se o trabalhador, retira-se-lhe a dignidade de ser humano, suprime-se, muita vez, o acesso à civilização, e, neste aspecto, surge a figura do aviamento, tão lamentavelmente típica na região amazônica, e que muitos, por equívoco, chamam de trabalho escravo.

Opondo-se a essas indecências, o trabalho decente é o produtivo e adequadamente remunerado, onde se propugna superar a pobreza, reduzir as diferenças sociais, sustentar a democracia, promover desenvolvimento sustentável, oferecer qualidade e segurança, respeitar os direitos fundamentais. Ao cabo, garante-se vida digna ao trabalhador e a sua família. Garante-se, igualmente, proteção social, que abrange combate ao desemprego, adequados sistemas de saúde, inclusive preventiva, incremento da educação, com a hoje indispensável inserção no mundo virtual. Nos países anglo-saxões, chama-se decent work. Em Portugal, chamam de trabalho digno. Aqui, chamamos trabalho decente. O nome não importa. O que interessa é seu alcance e sua intenção.

O trabalho decente encontra-se naquele fundamento que, a nosso ver, é o mais expressivo da República brasileira: o da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da Constituição). Demais disso, os princípios fundamentais constitucionais indicam claramente esse objetivo maior: o de erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais (art. 3º, III), e de promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (art. 3º, IV).

Essa luta que toda a sociedade mundial propugna objetiva, basicamente, quatro resultados, que podem ser obtidos a médio prazo:

  1. a superação da pobreza importa, no mínimo, em rigorosa redistribuição de renda e adoção de mecanismos que envolvem obtenção de alimentação adequada, acesso à educação técnico-profissionalizante, direito a serviços de saúde eficientes;

  2. a redução das desigualdades sociais é corolário do primeiro, aqui também identificamos a necessidade de superar todos os focos de discriminação, inclusive a xenofobia, tanto aquela verificada com os estrangeiros, como as que decorrem das migrações internas;

  3. a garantia da governabilidade democrática, tema que envolve honestidade da classe política, fortalecimento das instituições, respeito pelos governantes que, a seu turno, devem respeitar a população;

  4. o desenvolvimento sustentável que significa que devemos desenvolver, mas não precisamos destruir, e envolve, necessariamente, a participação dos países tecnologicamente desenvolvidos a fim de dotar os demais de mecanismos antipoluentes, sobretudo no que respeita a emissão de dióxido de carbono à atmosfera, com vistas a minimizar os efeitos do aquecimento global iminente. Também abrange meio ambiente sadio, inclusive meio ambiente do trabalho, objeto da Convenção n. 155 da OIT, ratificada pelo Brasil, que será tratada adiante (v., nesta Parte, Capítulo XXI).

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2. Um problema sério: a ásia indecente

É de se acreditar que, de todos os continentes, a Ásia é o que apresenta os mais graves problemas de trabalho indecente. É que lá estão presentes milhares de empresas transnacionais e as garantias dos trabalhadores são cada vez menores. Vejamos dados colhidos na rede mundial de computadores, a partir de estudos efetuados pela OIT1.

Existe um bilhão de trabalhadores da Ásia (mais de cinco vezes a população inteira do Brasil) abaixo da linha da pobreza, recebendo menos de US$ 2,00/dia, o que equivale ao preço de um frango no Brasil. E, desse bilhão, 330 milhões ganha menos de US$ 1,00/dia, ou o correspondente a uma passagem de ônibus na cidade de Belém do Pará (em torno de R$ 3,00) e menos que na cidade de São Paulo (aproximadamente R$ 4,00).

A situação agrava-se: o forte crescimento do comércio, dos investimentos e da produção registrado não foi suficiente para responder ao aumento da força de trabalho e enfrentar o crescente desemprego, tanto que, em 2010, 250 milhões de pessoas estavam a procura de emprego.

Os números assustam. Hoje, 1,9 bilhão de mulheres e homens trabalham na Ásia, mas, em 2005, 48% (41, 6 milhões) dos jovens desempregados do mundo estavam ali, e o risco da juventude de ficar desempregada é três vezes maior que os adultos.

Outros problemas identificados pela OIT revelam que a produtividade cresceu, mas salários não aumentaram. Na China, a produtividade industrial aumentou mais de 170% entre 1990 e 1999 e os salários subiram apenas pouco mais de 80%, e, entre 2000 e 2010, triplicaram2. Na capital (Beijing), o salário mínimo é de 960 yuans, que corresponde a R$ 220,00/mês, menos que no Japão onde o salário é de 800 ienes por hora, equivalente a R$ 4.200,00/mês3.

Desde 1990, tem ocorrido redução salarial, no Paquistão, de 8,5%, e na Índia, de 22%. A jornada semanal é de cinquenta horas ou mais em Bangladesh, Honk Kong, Malásia, República da Coreia, Sri Lanka e Tailândia. No Japão é de nove horas/dia, e na China de 8,5hs/dia4. Há discriminação acentuada em razão de sexo. Na Singapura, v. g., mulheres ganham 61% do que recebem os homens. Ademais, aumentou o fluxo migratório (2,6 a 2,9 milhões foram para o exterior) e houve redução expressiva do trabalho infantil, mas, apesar disso, 122,3 milhões de crianças trabalham na Ásia, ou seja, 64% do total mundial. De outro lado, saúde e segurança do trabalho ruins e um milhão de pessoas morrem anualmente em acidentes e doenças do trabalho. Por fim, a taxa de sindicalização reduzida é bastante reduzida. Os índices são: 3% e 8% em Bangladesh, Tailândia, Malásia e Coreia do Sul, e 16% e 19% na Nova Zelândia, Austrália e Singapura.

3. O problema no brasil

Um dos primeiros graves problemas brasileiros é o trabalho informal. As estatísticas revelam crescimento dessa atividade, em 1992, envolvendo 53,4%, aumentando em 1996 para 53,8% e, em 1999, para 55,9% .Em 1999. Esses percentuais começaram a cair a partir de 2002 e, em 2006, envolvia 51,8% da mão de obra ativa.

Essa redução mesmo inexpressiva do trabalho informal no Brasil, aumentou o acesso à Previdência Social, em 46% entre 1992 e 2002, chegando, em 2006, a 50,5%, justamente porque cresceu o emprego formal5.

Da mesma forma, contatou-se que houve recuperação do poder aquisitivo do salário mínimo, a partir de 1996. De setembro de 1994, quando era de R$ 70, 00, até abril de 2007, quando atingiu R$ 380,00, a inflação calculada pelo INPC-IBGE foi de 182,4%, o reajuste salarial foi de 442,9%, resultando em ganho real de R$ 92,2%. É incrível, mas são os números.

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Tendência semelhante ocorreu com o rendimento. O rendimento médio do trabalhador subiu após o Plano Real, mas caiu de forma sistemática entre 1996 e 2003, e começou a recuperar-se somente a partir de 2005.

Podem ser apontadas como causas do aumento da renda média do trabalhadores seguintes pontos:

  1. diminuição do desemprego;

  2. recuperação do poder de compra do salário mínimo;

  3. melhores negociações coletivas diretas;

  4. melhorias do trabalho da mulher; e

  5. acesso da população negra ao mercado de trabalho.

3.1. truck system e aviamento

O truck system é uma prática de trabalho proibida no Brasil. Por esse mecanismo, o empregador mantém seu empregado em regime de servidão por dívidas, similar à de um escravo, como se todas as despesas do trabalhador (roupa, alimentação, moradia) tivessem que ser feitas dentro da empresa.

A CLT, no art. 462 e §§, proíbe esse tipo de trabalho, quer pelo desconto de uniforme de uso obrigatório, quer pela compra de mantimentos em estabelecimento patronal (§ 2º), neste caso sempre sem intenção de lucro (§ 3º). Como recorda Mozart Victor Russomano, nesse caso, a autoridade administrativa deve estar vigilante, fiscalizando essa negociação, de modo que sejam cobrados preços razoáveis, sem intuito de lucro e tendo em vista, sempre, o benefício do trabalhador6.

É permitido, todavia, o desconto do salário do obreiro por danos que ele, dolosamente, causar (§ 1º), recordando, no particular, que deverá, nesse caso, ficar cabalmente demonstrada a intenção do empregado de prejudicar o empregador.

Consigna o dispositivo:

Art. 462. Ao empregador é vedado efetuar qualquer desconto nos salários do empregado, salvo quando este resultar de adiantamentos, de dispositivos de lei ou de contrato coletivo.

§ 1º Em caso de dano causado pelo empregado, o desconto será lícito, desde de que esta possibilidade tenha sido acordada ou na ocorrência de dolo do empregado.

§ 2º É vedado à empresa que mantiver armazém para venda de mercadorias aos empregados ou serviços estimados a proporcionar-lhes prestações in natura exercer qualquer coação ou induzimento no sentido de que os empregados se utilizem do armazém ou dos serviços.

§ 3º Sempre que não for possível o acesso dos empregados a armazéns ou serviços não mantidos pela Empresa, é lícito à autoridade competente determinar a adoção de medidas adequadas, visando a que as mercadorias sejam vendidas e os serviços prestados a preços razoáveis, sem intuito de lucro e sempre em benefício das empregados.

§ 4º Observado o disposto neste Capítulo, é vedado às empresas limitar, por qualquer forma, a liberdade dos empregados de dispor do seu salário.

A prática do truck system existe ainda no Brasil. Na Amazônia, chama-se aviamento7, e existe...

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