Trabalho escravo contemporâneo: instrumento de acúmulo do capitalismo

AutorShirley Silveira Andrade
CargoDoutora pela Universidade de Brasília; Professora do Curso de Direito da Universidade Federal de Sergipe (UFSE). E-mail: direitoshumanospe@yahoo.com.br
Páginas404-429

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Shirley Silveira Andrade 1

Recebido em 15.5.2016

Aprovado em 1.6.2016

Resumo: Este trabalho parte da problemática da relação entre o modo de produção e a utilização do Trabalho Escravo Contemporâneo (TEC). Ele surgiu do debate realizado na tese de doutorado da autora, cuja pesquisa de campo fora realizada no estado do Tocantins. Surgiu a discussão se há base teórica para sustentar que o TEC é compatível com o modo de produção capitalista, já que esse se sustenta através do trabalho livre. Para estudo do objeto realizamos o método do materialismo histórico e dialético. Fizemos uma pesquisa bibliográfica, como analisamos dados quantitativos fornecidos pela Comissão Pastoral da Terra no Tocantins as respeito do trabalho escravo na região, pois foi nosso foco da pesquisa de campo na tese de doutorado. Ao longo do trabalho, depois de analisarmos o trabalhado escravo em diversos modos de produção, concluímos que ele sempre foi fundamental para a aumulação da propriedade privada e no sistema capitalista é um dos instrumentos do acúmulo do capital.

Abstract: This study of the issue of the relationship between the mode of production and the use of Slave Labor Contemporary (SLC). He emerged from the debate on the doctoral thesis of the author, whose field research carried out in the state of Tocantins. Came the discussion is no theoretical basis to support the SLC is compatible with the capitalist mode of production, as this is sustained by free labor. To object of the study performed the method of dialectical and historical materialism. We did a literature search, we analyze quantitative data provided by the Pastoral Land Commission in the Tocantins about slave labor in the region, because it was our focus from field research in the doctoral thesis. Throughout the work, after reviewing the slave worked in various production methods, we conclude that he has always been fundamental to acumulation of private property and the capitalist system is one of capital accumulation instruments.

Palavras-chave: Trabalho escravo contemporâneo; Capitalismo; Propriedade privada.

Keywords: Contemporary slave labor; Capitalism; Private property.

Introdução

Este artigo surgiu como parte das reflexões realizadas na tese de doutorado da autora pela Universidade de Brasilia. O objeto aqui analisado faz parte da preocupação dos estudos com a formação da consciência dos trabalhadores rurais escravizados. Na

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tese, investigamos as razões que influenciam o reconhecimento da condição de escravizados ou a sua negação. Mas ao nos aprofundarmos com nosso objeto da tese, observamos a necessidade da análise da esturtura em que esse tipo de trabalho se realiza. Isso foi muito importante para compreendermos as razões da utilização do trabalho escravo em nossos dias. Debate relevante para compreender as relações de trabalho e a organização econômica de uma sociedade.

Na Ideologia Alemã (MARX, ENGELS, 2001), já há a categorização dos tipos de propriedade e sua relação com a divisão do trabalho. Com a Propriedade Tribal, a produção e a estrutura social se limitavam a uma extensão da família. Depois, a Propriedade Comunal Antiga, resultante da união de várias tribos, formou a cidade. Já havia a propriedade privada, e as relações de produção ocorriam através de cidadãos livres e escravos.

Na Feudal, a produção da vida material estava condicionada à agricultura rudimentar e ao artesanato. No campo, as relações de produção se davam entre o servo, preso à propriedade fundiária e ao senhor; e, nas cidades, entre mestres, oficiais, aprendizes e plebe de jornaleiros, pouca foi a divisão do trabalho. Na Propriedade Burguesa, o aumento da divisão do trabalho veio com a criação de um intermediador da produção: o comerciante. Isso proporcionou um alargamento comercial que ultrapassou os limites locais. Assim, percebemos uma relação íntima entre a maneira em que uma sociedade se organiza economicamente e como se dá a divisão social do trabalho. No momento em que nos encontramos, em uma fase de domínio do capital nos perguntamos da necessidade ainda da utilização da mão de obra escrava nos moldes contemporâneos. Esse é o foco de análise desse trabalho: pensar essa relação entre o modo de produção capitalista e a utilização do Trabalho escravo Contemporâneo (TEC) na área rural.

Precisamos esclarecer o que estamos chamando de Trabalho Escravo Contemporâneo (TEC) antes de prosseguirmos na análise.Ricardo Rezende (Figueira, 2004, p. 35) defende que como a escravidão de hoje não é exatamente a modalidade da escravidão da antiguidade, ela vem acrescida de vários termos, como: semi, branca, contemporânea, por dívida ou, como prevê o código penal brasileiro, condição análoga à de escravo. Ele também mostra como nas entidades governamentais o termo escravidão e trabalho escravo são utilizados pelos setores do governo. O Ministério do Trabalho e

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Emprego (MTE) criou o Grupo Especial de Fiscalização Móvel (GEFM). Em 2003 foi criado, pelo então presidente Lula, o Programa Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo.

Pois bem, Esterci (2008) demonstra que a categoria escravidão se tornou política, fazendo parte de um campo de lutas que é utilizada para designar toda sorte de trabalho não-livre, da exacerbação da exploração e da desigualdade entre os homens. Sob a designação de escravidão hoje se vê maus tratos, péssimas condições de trabalho, má remuneração, alimentação precária, transporte não condizentes com leis e costumes. Ela passou a designar situações ultrajantes de desumanização. É uma espécie de metáfora do inaceitável que afeta, de forma ampla, os segmentos até os que não estão envolvidos na luta por Direitos (ESTERCI, 2008, p. 31). Portanto, TEC é um trabalho em condições desumanas.

A previsão legislativa também vai nesse sentido, apesar dos debates conceituais. A partir de 2003, a nova redação do artigo 1492, do Código Penal Brasileiro (CPB), fechou o tipo penal e passou a exigir quatro situações principais em que se caracteriza o delito: trabalhos forçados; a jornada exaustiva; restrição, por qualquer meio, da locomoção da vítima em razão de dívida contraída pelo empregado; e condições degradantes de trabalho. Além das formas equiparadas: retenção no local de trabalho, por cerceamento do uso de qualquer meio de transporte, de manutenção de vigilância ostensiva ou retenção de documentos ou objetos de uso pessoal do trabalhador.

TEC é um trabalho realizado tanto de forma obrigatória como denigrente ao ser humano. É um trabalho humilhante, onde o trabalhador é tratado igual ou pior que um animal. Há casos de trabalhadores que moram nos currais junto com os bois, ou ainda são

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impelidos a comer carnes podres em fazendas do Tocantins, nossa área de estudo. Pois bem, nosso foco nesse artigo é pensar a utilização desse tipo de trabalho no modo de produção capitalista.

Escolhemos o materialismo histórico e dialético como método de análise, devido a avaliação entre a utilização do TEC e a organização do modelo econômico introduzido no estado brasileiro. Nossa pesquisa de campo foi em Tocantins, por isso, ao final, aparecem dados dessa unidade federativa.

O Trabalho escravo a serviço da propriedade privada

Há aproximadamente 40.000 anos surgiram os primeiros grupos de seres humanos. A comunidade primitiva era basicamente nômade, com meios de trabalho rudimentares, baixa produtividade, e tinha dificuldades de alimentar o grupo através de caça, pesca e vegetais (NETTO, 2010). Com a domesticação de animais e o desenvolvimento da agricultura surgiram os elementos para sua dissolução. A maior intervenção na natureza por parte do ser humano impeliu-o pela busca do aperfeiçoamento dos meios de produção. Com isso, a produção começou a se configurar como acima das necessidades imediatas das comunidades, gerando o excedente e criando condições para a exploração dos seres humanos.

Essas ideias são bem desenvolvidas em A origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado, Engels (1985) esclarece que referente obra, escrita após a morte de Marx, é um testamento deste autor, pois se desdobrou das anotações feitas por ele a respeito do livro de Morgan - A sociedade antiga - que discute a organização dos índios iroqueses norte-americanos. A importância dos escritos de Morgan, para os dois autores, é de ter descoberto e reestabelecido nos...

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