Trabalho Escravo Infantil e a Perpetuação do Ciclo de Miséria, Desigualdade e Exploração

AutorTainá de Oliveira Meinberg Cunha
Páginas133-140

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Tainá de Oliveira Meinberg Cunha 1

Introdução

O trabalho infantil tem em seu seio uma forma de trabalho análogo ao de escravo. Primeiramente, porque ambas explorações ocorrem em âmbitos coincidentes, geralmente no campo, na agricultura e na pecuária, e com características semelhantes. O trabalho infantil conta com uma alta carga de vulnerabilidade para se concretizar, tal como na relação de escravidão, pois o empregador busca na criança justamente uma mão de obra maleável, de fácil exploração e também extremamente barata. Diante disso, o trabalho infantil acaba por ser, em sua essência, um trabalho escravo. A criança, mão de obra desqualificada, acaba direcionada para trabalhos braçais e físicos, com pagamentos ínfimos e alta carga exploratória.

Além dessa conexão entre as referidas modalidades de exploração do trabalhador, a principal relação entre o trabalho infantil e o trabalho escravo é o ciclo existente entre ambos, ou seja, inicia-se com a criança escravizada, inserida em um meio de desqualificação, miséria e vulnerabilidade, que acaba por se perpetuar dentro do processo escravizador, mesmo depois de adulta. Assim, ao abordar a questão do trabalho escravo contemporâneo, é preciso olhar também para o início da exploração dos cidadãos que são resgatados dessa situação, tendo em vista que grande parte deles é introduzida nesse contexto de exploração ainda quando criança. Dessa forma, necessário se faz o debate a respeito do trabalho infantil, como precursor do trabalho análogo ao de escravo e da intrínseca relação existentes entre os ilícitos.

Dentro desse ciclo exploratório, podem ser apontados diferentes fatores que interferem na manutenção da exploração laboral de crianças e adolescentes. No presente trabalho, será analisado o fator econômico, partir da expressão e do reflexo da desigualdade social como forma determinante para a ocorrência desses crimes, na medida em que as crianças vítimas de trabalho escravo vêm de famílias em situação de vulnerabilidade e em condições de miséria, sendo o trabalho do menor uma forma de complementação de renda para sobrevivência. Além disso, também será abordada a análise inversa: como essas formas de exploração contribuem para a estratificação da estrutura social e da perpetuação da desigualdade.

Breve histórico do trabalho infantil no brasil

Ao longo da evolução do mercado de trabalho no país, em todas as suas fases, pôde ser observada a manutenção do labor por crianças e adolescentes, seja quando ainda legalizada a prática, seja atualmente, quando ilícita a conduta.

O início dessa forma de exploração remonta aos tempos ainda de colonização do país, estando intimamente ligado à escravidão. Os filhos de escravos acompanhavam seus pais no desempenho de suas funções, realizando, muitas vezes, tarefas que exigiam esforços que iam além das suas condições físicas (KASSOUF, 2007, p. 324).

Dessa forma, já na origem da exploração dessa mão de obra é possível visualizar a desigualdade: o trabalho não era para qualquer criança, mas sim para os filhos de escravo, que já nasciam em uma condição de desigualdade em relação aos filhos dos senhores. Essa disparidade era observada até mesmo nas relações entre as crianças, tendo em vista que muitos dos filhos de escravos eram conduzidos não para lavouras ou mine-ração, mas para servir às crianças da casa-grande, o que

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tornava evidente a estratificação social da época. Nesse sentido, verificava-se que:

As crianças escravas serviam como cavalo de montaria, burros de leiteira, de carro de cavalo, em que um barbante serve de rédea, um galho de goiabeira de chicote. Os meninos brancos reproduziam nas brincadeiras as relações de dominação da escravidão. (HISTÓRIAS..., 2016)

No final do século XIX, durante o processo brasileiro de industrialização, o uso da mão de obra infantil na produção seguiu a mesma tendência observada nos demais países. Segundo Marx, em “O Capital”, com a modernização da maquinaria, a força muscular torna-se prescindível e os detentores de produção passam a se utilizar de trabalhadores fracos e flexíveis, ou seja, mulheres e crianças. Assim, segundo o autor, o trabalhador, homem, deixa de vender sua força de trabalho, para vender a família, criando um novo mercado de escravos (MARX, 2013). Nas palavras de Alice Monteiro de Barros:

(...) a mão de obra da mulher e do menor é solicitada na indústria têxtil, tanto na Inglaterra, como na França, porque menos dispendiosa e mais dócil. O processo de industrialização vivido pelo mundo europeu, no século XIX, caracterizou-se pela exploração dessas chamadas meias-forças. (BARROS, 1995)

Dessa forma, as crianças, consideradas mão de obra barata e de fácil manipulação, encheram os pátios industriais brasileiros. De acordo com dados da Organização Internacional do Trabalho – OIT, em 1890, do total de empregados em estabelecimentos industriais de São Paulo, 15% eram crianças e adolescentes. Vinte anos depois, esse equivalente já era de 30%. Já em 1919, segundo dados do Departamento Estadual do Trabalho, 37% do total de trabalhadores do setor têxtil eram crianças e jovens e, na capital paulista, esse índice chegava a 40% (FALEIROS, 2008, p. 58-59).

Sobre o começo do desenvolvimento da legislação acerca do tema, cumpre esclarecer que não se pode afirmar que esse veio com intuito primário de erradicar o trabalho infantil. Em verdade, o Código de Menores, tratado como o primeiro arcabouço legislativo de proteção ao menor, estava longe de criar uma estrutura de direitos e garantias aos menores de todas as classes sociais, tendo em vista estabelecer diretrizes a crianças e jovens excluídos, com o objetivo de afastá-las da delinquência. Conforme afirma Silva:

Na verdade, o objetivo do Estado, numa socie-dade pós-escravista, extremamente desigual, era controlar a pobreza, dando à criança de baixa renda o trabalho precoce, como forma de prevenir uma espécie de delinquência latente, e a institucionalização como maneira regenerativa de sua inevitável perdição. (SILVA, 2009, p. 43-44)

Essa forma de encarar o trabalho infantil, regulando-o como forma de mascarar a pobreza e a desigualdade, e não com vistas à proteção à criança, acaba resultando em um forte fator cultural no enfrentamento ao problema: o labor passa a ser visto como uma necessidade e uma benesse à criança pobre. É o famoso e velho jargão: “melhor trabalhar do que virar bandido.”

Segundo Viviane Colucci, desembargadora do Tribunal Regional do Trabalho da 12ª Região (SC):

o fenômeno do trabalho infantil está baseado numa estrutura social que promove desigualdade e infelizmente sobrevive em razão da concepção de que os filhos das famílias de condições sociais mais desfavorecidas devem trabalhar, seja como alternativa para gerar aumento da renda familiar, seja como forma de combate à perversa ociosidade. (ARCO-VERDE, GIMENES, 2012)

Nesse mesmo sentido, outra opinião que merece destaque é o da professora Daniela Muradas2, que, em aula ministrada para a Universidade Federal de Minas Gerais, expôs entendimento no sentido de que o início da proteção legislativa à criança no meio trabalhista, na verdade, se deu para proteger o trabalho do homem, que começou a perder seus postos de labor para a mão de obra barata e maleável dos menores.

Assim, de certo modo, pode-se afirmar que a utilização da força de trabalho infantil auxiliou o desenvolvimento do capitalismo no processo de acumulação de riquezas. Os trabalhadores adultos apresentavam resistência em se transformar em proletários industriais, ao passo que as crianças se apresentavam como mão de obra facilmente manipulável. Dessa forma, tendo em vista a instabilidade com que se apresentavam para o trabalho os empregados adultos e, ainda, a redução dos custos e salários que a contratação da mão de obra infantil propiciava, a criança se tornou uma ótima

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opção para os empregadores, que, amparados pela legislação pelo fator social e pela necessidade financeira das famílias economicamente prejudicadas, não viram obstáculos nessa exploração (CARVALHO, COSTA, MONTEIRO).

Dessa forma, até mesmo quando analisado o âmbito legislativo, pode-se notar como esse veio permeado não pela responsabilidade protetiva entre Estado e crianças, mas sim pela relação de...

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