O trabalho escravo na contemporaneidade

AutorCarla Maria Santos Carneiro - Germano Campos Silva - Lila de Fátima Carvalho Ramos
Páginas133-147

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Segundo um regimento de 1633 o castigo é realizado por etapas: depois de bem açoitado, o senhor mandará picar o escravo com navalha ou faca que corte bem e dar-lhe com sal, sumo de limão e urina e o meterá alguns dias na corrente, e sendo fêmea, será açoitada à guisa de baioneta dentro de casa com o mesmo açoite.

Outros castigos também são utilizados: retalhamento dos fundilhos com faca e cauterização das fendas com cera quente; chicote em tripas de couro duro; a palmatória, uma argola de madeira parecida com uma mão para golpear as mãos dos escravos; o pelourinho, onde se dá o açoite: o escravo fica com as mãos presas ao alto e recebe lombadas de acordo com a infração cometida. (KOSHIBA; PEREIRA, 2004, p. 34)

Em palestra proferida no dia 30 de janeiro de 2014, no Auditório da Escola Superior de Advocacia da Ordem dos Advogados do Brasil — Seção de Goiás, em memória ao Dia Nacional de Combate ao Trabalho Escravo, instituído em 2009 pela Lei n. 12.064 que estabeleceu o dia 28 de janeiro em homenagem aos auditores fiscais do trabalho assassinados naquele dia do ano de 2004 quando realizavam inspeção em fazendas situadas no município de Unaí, na região Noroeste de Minas Gerais, foi relatado ao público presente o depoimento de testemunhas ouvidas em processo judicial trabalhista acerca dos maus-tratos infringidos pela Sra. Helena às trabalhadoras de uma indústria de confecção de roupas situada em uma cidade na região Sul do Estado de Goiás, com cerca de 100 empregados.

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Obtido acesso à íntegra do referido processo, constatou-se que a primeira testemunha da autora, quando ouvida no Processo n. 0011422-20.2013.5.18.0001 junto à Primeira Vara do Trabalho de Itumbiara, declarou:

[... ] que trabalhou com HELENA por todo o período em que esteve na empresa; que HELENA gritava com os funcionários e os xingavam, exemplificando que em relação à depoente HELENA ficava olhando "feio" e dizendo que se não estivesse satisfeita que pedisse conta; que nunca presenciou agressão física de HELENA em relação a algum funcionário; que com a depoente ocorreu de HELENA tapar sua boca com esparadrapo para que não conversasse na produção; que HELENA já amarrou um dos pés da depoente alegando que um único pé solto a produção era mais alta; que a direção da empresa tinha conhecimento do comportamento de HELENA e nunca fez nada; que HELENA apelidava algumas pessoas na produção com termos como "tartaruga"; que na época a depoente não tomou providência e nem reclamou nada para a empresa por não ter tido percepção de que as situações vivenciadas eram humilhantes. "Nada mais".

Já a segunda testemunha da autora, ouvida no mesmo processo, reafirmou que:

HELENA era muito agressiva e mal-educada no tratamento com os subordinados, sendo comum as colegas chorarem porque HELENA gritava, xingava, apelidava as funcionárias com expressões como tartaruga, mosca e lesma, mandava calar a boca de modo ríspido, chegava a dar beliscões nas subordinadas; que houve uma situação em que HELENA colocou uma agulha para uma funcionária sentasse em cima, se não fosse uma colega ter advertido a pessoa que usaria a cadeira a situação teria machucado a funcionária; que direto o pessoal reclamava o comportamento de HELENA; que a direção da empresa até chamava HELENA para conversar e pedir que não repetisse suas condutas, mas ainda assim ela persistia utilizando os procedimentos já narrados; que a depoente presenciou situações específicas envolvendo a reclamante e HELENA como, por exemplo, HELENA beliscar a reclamante, dizendo que ela era uma mosca morta, que não tinha produção, que nunca chegaria ao cargo de costureira 2; que em algumas dessas situações a reclamante ia para o banheiro chorar e teve uma vez que ao retornar a reclamante ainda teve que ouvir provocações de HELENA dizendo que a reclamante tinha demorado tanto no banheiro que achou que ela tivesse caído no vaso; que HELENA comportava-se deste modo com todos; que

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sabe que teve funcionário que foi ao Sindicato questionar a situação das férias, mas não sabe dizer os desdobramentos. "Nada mais".

Trabalho forçado e trabalho escravo

Para a Organização Internacional do Trabalho (OIT), a coerção de uma pessoa quando na realização de certos tipos de trabalho e a imposição de penalidade caso esse trabalho não seja feito, significa Trabalho Forçado. Segundo a OIT, o trabalho forçado pode estar relacionado ao tráfico de pessoas e derivar de práticas abusivas de recrutamento que levam à escravidão por dívidas.

É possível também ser decorrente da imposição de obrigações militares a civis; que possa estar ligado a práticas tradicionais ou que decorra de punição por opiniões políticas, podendo em alguns casos adquirir características da escravidão e do tráfico de escravos de tempos passados.

Sobre a conceituação de Trabalho Escravo, a OIT afirma em seu Projeto de Combate ao Trabalho Escravo no Brasil, que "toda a forma de trabalho escravo é trabalho degradante, mas o recíproco nem sempre é verdadeiro" (OIT, 2013). É que para a OIT, o trabalho escravo é sempre degradante, mas nem todo trabalho degradante é trabalho escravo.

A diferença estaria no cerceamento ou não da liberdade dos trabalhadores, que poderia ocorrer mediante a apreensão de documentos, presença de guardas armados, "gatos", de comportamento ameaçador, dívidas ilegalmente impostas ou características geográficas do local que poderiam impedir a fuga do trabalhador.

Não é assim no Brasil. De acordo com o art. 149 do Código Penal, com redação dada pela Lei n. 10.803, de 11 de dezembro de 2003, a redução de alguém a condição análoga à de escravo é caracterizada pela submissão a trabalho forçado ou jornada exaustiva; sujeição à condição degradante de trabalho; e/ou restrição por qualquer meio da locomoção em razão de dívida contraída junto ao empregador ou preposto, incorrendo em pena de reclusão, de dois a oito anos, e multa, além da pena correspondente à violência (BRASIL, 2003).

Já o § 1º do art. 149 do Código Penal, também com redação dada pela Lei n. 10.803, de 11 de dezembro de 2003, prevê que incorre nas mesmas penas aquele que cercear o uso de qualquer meio de transporte por parte do trabalhador com a finalidade de retê-lo no local de trabalho e/ou mantiver vigilância ostensiva no local de trabalho ou se apoderar de documentos ou objetos pessoais do trabalhador, com a finalidade de retê-lo no local de trabalho (BRASIL, 2003).

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E o § 2º do mesmo art. 149 do Código Penal, também com redação dada pela Lei n. 10.803, de 11 de dezembro de 2003, prevê o aumento em 50% da pena se o crime for cometido contra criança ou adolescente e/ou por motivo de preconceito de raça, cor, etnia, religião ou origem (BRASIL, 2003).

Vê-se, portanto, que no Brasil, ao contrário do que dispõe a OIT, o trabalho degradante pode também ser considerado como prática análoga a trabalho escravo, e tal fato por si só deveria ser hábil o suficiente para justificar que o empregador respeitasse a dignidade do empregado.

Trabalho escravo e expropriação

Segundo Leandro Marmo Carneiro Costa, a Proposta de Emenda Constitucional (PEC n. 57-A) que deu origem à Emenda Constitucional n. 81, de 5 de junho de 2014 e alterou a redação do art. 243 da Constituição Federal, estabelece em seu caput que, a partir de agora:

As propriedades rurais e urbanas de qualquer região do País onde forem localizadas culturas ilegais de plantas psicotrópicas ou a exploração de trabalho escravo na forma da lei serão expropriadas e destinadas à reforma agrária e a programas de habitação popular, sem qualquer indenização ao proprietário e sem prejuízo de outras sanções previstas em lei, observado, no que couber, o disposto no art. 5º. (BRASIL, 2014)

Costa afirma ainda que, chamam a atenção as peculiaridades do instituto da expropriação que implica na perda da propriedade, sem direito a qualquer tipo de indenização, diferentemente da tão conhecida desapropriação para reforma agrária em que o proprietário é indenizado pelo valor de mercado do imóvel. A desapropriação implica na reparação de um dano patrimonial causado ao cidadão, correspondendo à reafirmação da plenitude do direito de propriedade (CARNEIRO; COSTA, 2014).

Para Costa (2014), a razão pela qual se justifica expropriar e não desapropriar os imóveis onde não esteja sendo cumprida a função social, como é o caso da exploração do trabalho escravo, decorre do fato de que a desapropriação estaria remunerando a mal usada propriedade, isto é, premiando o descumprimento da...

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