Trabalho escravo: reflexões sobre a responsabilidade na cadeia produtiva

AutorAna Elisa Alves Brito Segatti - Dirce Trevisi Prado Novaes - Christiane Vieira Nogueira - João Filipe Moreira Lacerda Sabino - Mariana Flesch Fortes
Páginas67-85

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Introdução

O trabalho apresenta algumas relexões sobre a responsabilidade dos que se beneiciam do trabalho escravo numa cadeia produtiva. Os auto-

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res são Procuradores do Trabalho e no seu cotidiano enfrentam questões relacionadas com essa matéria. Não se trata de produção acadêmica ou resultado de pesquisas cientíicas desenvolvidas na Universidade, mas da tentativa de elaborar o que a prática do Ministério Público do Trabalho vem apontando.

A instituição tem buscado, no decorrer dos anos, aperfeiçoar sua atuação no combate a esse problema e a responsabilização de todos os beneiciados por essa forma de violação da dignidade humana tem se mostrado o caminho mais eicaz e justo para combatê-la.

É incontestável que o pequeno agenciador - o "gato", nas atividades rurais; o oicinista, na indústria têxtil ou o arregimentador de turmas, na cons-trução civil - não é o principal obtentor de lucro no contexto da submissão de trabalhadores à condição análoga à de escravo. Por consequência, não deve ser o único a responder pelo fato, seja com a imposição de obrigações de fazer ou não fazer e/ou pagamento de indenizações, no caso do plano civil-trabalhista, seja com a pena criminal. Para além dessa primeira camada, há um encadeamento de exploração nesses modelos produtivos que envolve pecuaristas e frigoríicos, carvoeiros e siderúrgicas, confecções e grifes, construtoras terceirizadas e grandes empreiteiras. Então, sob pena de reprodução das estruturas excludentes e desiguais da nossa sociedade, punir apenas a camada mais imediata não é suiciente sequer para ques-tionar o sistema laboral que reduz trabalhadores à situação de escravos. Necessário chegar aos maiores beneiciados e aos que auferem grandes lucros a partir dessa estrutura perversa. Nesse sentido, as relexões aqui expostas.

As ponderações e trilhas apresentadas, embora discutidas, aprofundadas e organizadas pelo grupo de autores, também não são resultado apenas das observações dos participantes, mas produto da construção cotidiana e coletiva do MPT. Com exceção da proposta de responsabilização criminal das pessoas jurídicas, as demais teorias não são inéditas: algumas já foram abordadas em artigos de Procuradores do Trabalho muito atuantes na área e várias têm sido utilizadas nas ações civis públicas e termos de ajustamento de conduta elaborados em todo o país.

Partimos de algumas premissas e pressupostos e optamos por não tratar de temas mais basilares na questão do trabalho escravo, tais como o histórico, as raízes, as deinições e previsões legais, os quais, embora extre-mamente relevantes, são tomados como algo já consolidado para todos que convivem com esta temática. A escolha foi a da abordagem direta e objetiva das teorias que vêm sendo ou que podem ser utilizadas para fundamentar a responsabilização dos beneiciários inais da cadeia produtiva que contém

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nas suas etapas exploração de trabalho escravo. As teorias serão tratadas pelos prismas da responsabilidade civil-trabalhista e criminal.

1. Responsabilidade civil-trabalhista

No plano civil-trabalhista, algumas teorias buscam explicar a atuação de cada um dos atores nas diversas camadas produtivas dentro de uma cadeia em que há exploração de mão de obra análoga à de escravo e, a partir dessas constatações, delimitar a responsabilidade dos beneiciados por esse tipo de violação de direitos trabalhistas fundamentais e da dignidade humana. Abordaremos quatro delas: a subordinação jurídica estrutural/ integrativa; os contratos coligados/conexos; a teoria da cegueira deliberada; e a responsabilidade pelo meio ambiente de trabalho.

1.1. Subordinação jurídica estrutural

A sociedade tem passado por grandes transformações decorrentes da revolução cibernética da automação, da globalização dos mercados, da internacionalização das operações, da mudança no sistema de produção capitalista que culminou com a existência de contratos coligados, entre outros fatores. Tais transformações resultaram na tendência moderna em admitir a lexibilização dos direitos trabalhistas via negociação coletiva, garantindo um núcleo mínimo de direitos ao trabalhador a im de tornar a empresa mais competitiva para o mercado.

No entanto, não se pode admitir apenas uma proteção mínima ao trabalhador ou assegurar uma concorrência desleal entre as empresas no mercado de trabalho. Por certo, a solução para esta questão não é a exclusão social e a desproteção do trabalhador, mas sim evitar o dumping social e garantir os direitos dos trabalhadores.

Com o objetivo de preservar o princípio da dignidade humana e o da proteção social, bem como em razão das transformações ocorridas na realidade socioeconômica e no mundo do trabalho, o direito do trabalho sofre adaptações.

Nesse contexto, a subordinação, elemento caracterizador da relação de emprego, para não se tornar um conceito obsoleto e inócuo, deve ser ampliado, inclusive para acompanhar o avanço social e garantir a tutela do direito do trabalho aos obreiros que dela necessitam.

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O conceito clássico da subordinação de natureza subjetiva já não é suiciente para delimitar a existência da relação de emprego. A subordinação de natureza subjetiva encontra-se fundamentada na pessoa do trabalhador, o qual se submete ao poder diretivo do empregador para a realização da prestação laborativa. Portanto, há limitação na autonomia do trabalhador, pois o empregador tem o poder de direção sobre a atividade a ser desempenhada.

Com os avanços socioeconômicos, a acepção clássica subjetivista da subordinação deu ensejo à de natureza objetiva, ou seja, a subordinação passou a estar relacionada com o direcionamento objetivo do empregador em relação à forma como deve ser desenvolvida a prestação de serviços. Nesta hipótese, o poder diretivo do empregador incide sobre a execução da atividade a ser desempenhada pelo trabalhador e não em relação à pessoa humana (do trabalhador). Não é a pessoa humana do empregado que se insere no poder de direção do empregador, mas sim a tarefa a ser desenvolvida que se insere na organização empresarial e ica sujeita ao comando e à direção do empregador.

Portanto, o conceito da subordinação deve ser readequado às carac-terísticas do mercado de trabalho contemporâneo, a im de preservar uma proteção social mínima ao trabalhador e não excluí-lo do sistema normativo legal.

Nesse contexto, Mauricio Godinho Delgado propôs o conceito de subordinação estrutural, nos seguintes termos:

"Estrutural é, pois, a subordinação que se manifesta pela inserção do trabalhador na dinâmica do tomador de seus serviços, independentemente de receber (ou não) suas ordens diretas, mas acolhendo estruturalmente, sua dinâmica de organização e funcionamento." (DELGADO, 2006)

Veriicamos, assim, a evolução da subordinação objetiva para a es-trutural, ou seja, aquela que é considerada a atividade desenvolvida pelo trabalhador como inserida na dinâmica da organização empresarial, inclusive do tomador de serviços. A subordinação estrutural resulta da necessidade de proteção social ao trabalhador, contratado inclusive pela empresa terceirizada, mas diretamente vinculado à organização empresarial da empresa tomadora, a qual se utiliza da atividade do trabalhador para alcançar o seu objetivo inal. O tomador dos serviços é o responsável pela produção e por todos os trabalhadores envolvidos, independentemente da terceirização ser lícita ou ilícita.

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No entanto, não é suiciente a inserção da atividade do trabalhador na organização empresarial para caracterização da subordinação estrutural ou integrativa, pois tal situação também pode acontecer com o trabalhador autônomo. Assim, necessária a exclusão dos elementos caracterizadores da autonomia, como o trabalhador não assumir riscos e perdas resultantes de sua atividade e não colher os frutos que decorrem de sua atividade.

Para a doutrinadora Lorena Vasconcelos Porto "a subordinação integrativa é formada a partir da conjugação da noção de subordinação objetiva com os critérios que excluem a autonomia [...]", podendo ser assim deinida:

"A subordinação, em sua dimensão integrativa, faz-se presente quando a prestação de trabalho integra as atividades exercidas pelo empregador e o trabalhador não possui uma organização empresarial própria, não assume riscos de ganhos ou de perdas e não é proprietário dos frutos do seu trabalho, que pertencem, originariamente, à organização produtiva alheia para a qual presta a sua atividade." (PORTO, 2009)

Necessário, pois, avaliar a integração da tarefa desenvolvida pelo trabalhador na organização empresarial. Na sociedade contemporânea, a empresa secciona as atividades empresariais interna e externamente, o que permite a integração da atividade desempenhada pelo trabalhador.

Nesse contexto, encontramos diversas atividades nas quais se encontra exploração de mão de obra análoga à de escravo. Tomando o exemplo do setor têxtil, a empresa tomadora (grife) controla todo o processo de produção, deine as peças, desenha as roupas, estabelece o padrão de qualidade, preço, cor, acessórios, medidas, quantidade a ser produzida, prazo para entrega. Tais especiicações e exigências são transmitidas aos fornecedores contratados, os quais na realidade não possuem capacidade produtiva - empregados (costureiros) e máquinas - suiciente para a execução dos serviços e assim acabam contratando as oicinas. Estas se submetem às diretrizes da empresa tomadora e estão sujeitas a penas por seu descumprimento.

Portanto, não há autonomia do trabalhador que desempenha a sua atividade submetida ao controle e direção da empresa tomadora, ou seja, a atividade do trabalhador está...

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