O Trabalho Humano na História e o Nascimento do Direito do Trabalho

AutorLorena Vasconcelos Porto
Páginas30-37

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1. O trabalho humano na história

No decorrer da história, as sociedades humanas se organizaram de formas diferentes para produzir os bens e serviços necessários ao atendimento das suas necessidades. Nesse sentido, surgiram relações de trabalho - que consistem no modo como os homens se relacionam para propiciar a modificação da natureza pelo seu engenho - também diversas. O trabalho, portanto, sempre esteve presente nas sociedades humanas organizadas, embora a sua forma de articulação tenha variado ao longo do tempo1.

Pode-se identificar quatro sistemas econômicos ou modos de produção que marcaram a evolução da civilização ocidental: o comunismo primitivo, o escravismo, o feudalismo e o capita-lismo2. Em cada um deles, os homens se relacionavam de modo diferente para viabilizar a produção, havendo distinções quanto à propriedade dos meios de produção e à repartição dos frutos advindos do trabalho. Em linhas gerais, pode-se dizer que no comunismo primitivo a propriedade de tais meios (terras, utensílios, ferramentas) pertencia a toda a sociedade, todos os seus membros trabalhavam e tinham acesso aos frutos produzidos.

1.1. Escravismo

No escravismo, houve a apropriação dos meios de produção por uma classe - os senhores - que exploravam o trabalho de outra classe - os escravos - se apropriando também dos frutos produzidos. O escravo era considerado, juridicamente, não como pessoa, mas, sim, como coisa, razão pela qual não era tutelado pelo ordenamento jurídico; tratava-se de um mero objeto de propriedade do senhor, que com ele mantinha uma relação de direito real. Não sendo um sujeito de direitos, o escravo não podia prestar o consentimento contratual (e, consequentemente, contrair obrigações), sendo até mesmo destituído do direito à vida e ao tratamento digno, embora o senhor estivesse sujeito a sanções penais se o matasse sem motivo3.

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A condição de escravo podia derivar de várias situações, como a de nascer de mãe escrava, de ser prisioneiro de guerra, de sofrer condenação penal, de descumprir obrigações tributárias, de desertar do exército4. A escravidão, entre os egípcios, os gregos e os romanos, atingiu grandes proporções. Na Roma e na Grécia antigas, cerca de 80% da população era composta por escravos. De fato, com a passagem da República para o Império, no mundo romano, a escravidão tornou-se a principal forma de trabalho. Os escravos executavam todo o labor manual e, inclusive, grande parte das atividades clericais, burocráticas e artísticas5. Na Grécia havia fábricas de flautas, de facas, de ferramentas agrícolas e de móveis, onde todos os trabalhadores eram escravos. Em Roma os grandes senhores tinham escravos de várias classes: desde pastores até gladiadores, músicos, filósofos e poetas6. Em troca dos serviços prestados, os escravos recebiam alimentação e vestuário suficientes para sobreviverem.

A economia era predominantemente agrícola e os senhores apropriavam-se do excedente produzido por seus escravos. Nessa época, foram escritas algumas obras que procuravam justificar a escravidão. Platão e Aristóteles, entre outros filósofos, afirmavam que esta era um fenômeno "natural", isto é, o único sistema possível, e que existiria para sempre. Com efeito, para o Estagirita, a escravidão cumpria um papel essencial, era justa e necessária, pois deixava os homens livres do labor para a as atividades intelectuais, filosóficas e políticas7.

De fato, as atividades laborativas de caráter prevalentemente manual, assim como os sujeitos nela empenhados, eram desvalorizados socialmente.

O crescimento da população e da complexidade das relações sociais fez com que os senhores começassem a utilizar a mão de obra de escravos alheios, cujo serviço arrendavam. Progressivamente, os homens livres e de baixa renda passaram também a arrendar os seus serviços. As condições desse contrato, do mesmo modo que as do escravo, eram regidas pela locação de coisas, cuja denominação genérica era locatio conductio. Esta surgiu, no mundo romano, por volta dos séculos VII e VI a.C.

Havia três espécies de locatio conductio: a locatio rei (em que uma parte concedia à outra o uso e gozo de uma coisa em troca de uma retribuição); a locatio operis faciendi (essa figura, pela qual uma pessoa se obrigava a executar uma determinada obra e entregá-la à outra, mediante um preço e assumindo os riscos, corresponde à atual empreitada); locatio operarum (na qual uma parte, em troca de uma remuneração fixada tendo em vista o tempo gasto na execução, prestava serviços à outra, a qual assumia os riscos daí advindos). Importa notar que, na Antiguidade Clássica, a locação de obras e de serviços era escassa, se comparada ao trabalho escravo8.

Embora a escravidão tenha permitido a construção de algumas obras públicas grandiosas e propiciado certa evolução da ciência e da cultura, tais avanços não são tão significativos, caso se considere que o regime vigorou durante milênios. Além disso, ele apresenta manifestamente vários problemas. Em primeiro lugar, podemos citar o óbice moral, hoje instransponível, de justificar a plena degradação da pessoa humana por um sistema social e de poder. Em segundo lugar, temos a circunstância de esse regime exigir uma estrutura altamente repressiva para a sua manutenção. Em terceiro lugar, podemos apontar a sua notória ineficiência do ponto de vista organizativo, técnico, cultural, social e político. Finalmente, um grave defeito desse regime é ter dado origem à ideia de que todo trabalho é indigno, o que desestimulou a atividade inventiva e, no período romano, limitou o progresso tecnológico, contribuindo para a estagnação da economia.

O último grande império ocidental caracterizado pelo regime escravocrata foi o romano, cuja queda, no Ocidente, ocorreu no século V d.C., ocasionando o surgimento de um novo sistema: o feudalismo9.

1.2. Feudalismo

No feudalismo, os meios de produção também pertenciam apenas a alguns membros da sociedade: os senhores feudais. Aqueles que não detinham tais meios - os servos da gleba - trabalhavam para o senhor em troca de proteção. O servo não era livre, pois estava preso à terra e seguia a sorte desta. De fato, embora não tivesse a condição jurídica do escravo, pois era considerado como sujeito de direitos, o servo não dispunha de sua liberdade, vez que estava sujeito às mais severas restrições, inclusive de deslocamento10.

A sociedade feudal era estamental, organizada a partir de uma rígida e praticamente imóvel hierarquia: o camponês (servo da gleba) recebia a proteção do senhor feudal, o qual, por sua vez, devia lealdade e era protegido por um senhor mais

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poderoso, e assim sucessivamente, até culminar no rei, figura máxima na escala hierárquica. Os fortes protegiam os fracos, mas em troca de um preço elevado. Os senhores concediam a seus vassalos o feudo (direito hereditário de usar a terra) em troca de pagamentos em dinheiro, alimentos, trabalho ou lealdade militar. Na base da pirâmide hierárquica estava o servo, que cultivava a terra.

Como não havia uma autoridade central forte para impor um sistema de leis, as relações sociais eram regidas pelos costumes e tradições do feudo. Estes tinham grande influência na determinação do modo de viver e de pensar das populações medievais. Ilustrativamente, na Inglaterra, "um senhor podia impor sanções a outro que, como vassalo seu, houvesse violado repetidamente os costumes no tratamento dispensado aos servos"11.

O termo "servo" origina-se da palavra latina servus, que significa "escravo". Todavia, a servidão apresentava diferenças importantes em relação à escravidão. O escravo, como vimos, era uma propriedade do senhor, passível de ser comprado e vendido à revelia de sua vontade; o servo, ao contrário, não podia ser separado de sua família ou da terra. Quando o senhor transferia a posse do feudo, o servo era com ela transferido, passando a se submeter ao novo senhor.

Todavia, o servo também estava sujeito, em graus variáveis, a obrigações por vezes pesadas e, assim, estava longe de ser livre. Cumpre notar que a Igreja Católica foi, durante a Idade Média, a maior proprietária de terras na Europa Ocidental, divididas em feudos, nos quais era mantido o mesmo sistema acima descrito.

Havia também uma grande quantidade de cidades dispersas pela Europa, muitas das quais se destacavam como importantes centros manufatureiros. Os bens produzidos eram vendidos aos feudos ou negociados no comércio distante. A identidade de profissão, como força de aproximação entre os homens, levou-os a se unirem, para assegurar direitos e prerrogativas, surgindo as corporações de ofício, também denominadas "associações de artes e misteres" ou guildas. Eram corporações de artesões, comerciantes e outros ofícios, sendo as instituições econômicas dominantes nas cidades e cuja origem remonta ao Império Romano12. Para produzir ou vender determinado bem ou serviço era necessário estar filiado a uma guilda, a qual regulamentava minuciosamente tais atividades econômicas13.

Um dos preceitos morais mais importantes na época medieval, por influência da ética cristã, era que os comerciantes tinham que vender as suas mercadorias pelo chamado "justo preço", isto é, um preço que compensasse os esforços relativos ao transporte do produto e à busca do comprador, suficiente apenas para manter a sua condição tradicional e costumeira. Assim, o objetivo deveria ser a reprodução das condições de vida, e não a acumulação de riqueza, condenada com severidade.

Outro preceito importante, no sentido também de inibir a acumulação, era a proibição da usura, isto é, do empréstimo de dinheiro a juros. Na Inglaterra, ilustrativamente, foi promulgada uma Lei contra a usura, que a proibia sob pena de prisão14.

A Igreja a considerava uma infração...

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