Trabalho intermitente

AutorRodrigo Trindade de Souza
Páginas50-66
TRABALHO INTERMITENTE
Rodrigo Trindade de Souza(*)
(*) Juiz do Trabalho no TRT-IV. Mestre em Direito das Relações Sociais pela UFPR. Especialista em Direito do Trabalho pela UDELAR (Montevideo-
-Uruguai) e pela Unibrasil (Curitiba-PR). Professor da disciplina de Direito do Trabalho III da Femargs — Escola da Magistratura do Trabalho do RS.
Professor convidado em cursos de pós-graduação em diversas instituições. Fundador e Vice-Presidente da Academia Sul-Rio-Grandense de Direito do
Trabalho — ASRDT. Presidente da Associação dos Magistrados da Justiça do Trabalho da 4ª Região — Amatra-IV.
(1) HIGA, Flávio da Costa. Reforma trabalhista e contrato de trabalho intermitente: uma tentativa de aproximação dialógica junto ao senado. In: Suple-
mento Trabalhista LTr, São Paulo, 043, 2017.
INTRODUÇÃO
A admissão no sistema jurídico brasileiro do con-
trato de emprego com jornada intermitente foi uma das
mais controvertidas matérias da Lei n. 13.467/2017.
Surgiu com objetivos declarados de disciplinar re-
lações até então autônomas, formalizar contratos de
emprego, permitir recusa de acionamentos, sem impo-
sição de penalidades; acolher flexibilidade de tempo
de trabalho, sem limitações de remuneração; adequar
necessidades ocasionais de mão de obra, sem impo-
sição de pagamento de salários para longos períodos
improdutivos.
Também chamado de contrato zero-hora, tem
como característica mais marcante a exclusão do
cômputo de tempo à disposição do trabalhador como
período para contagem de jornada de trabalho, asso-
ciado à imprevisibilidade de efetivo acionamento.
Entre as diversas alterações trazidas com a Re-
forma Trabalhista, essa parece ser a mais apartada das
modalidades contratuais então conhecidas e aplicadas,
e segue com contornos práticos ainda indefinidos. Em
grande parte, isso é resultado da deficiência de redação
e conteúdo das novas regras; mas, essencialmente, re-
sulta da dificuldade de compatibilização com diversos
princípios, objetivos e elementos fundantes do Direito
do Trabalho.
Sem qualquer pretensão de esgotamento do tema,
cumpre ao presente artigo introduzir considerações
mais urgentes sobre o conteúdo e oferecer respostas
para possível aplicação.
1. ORIGENS
a) Direito comparado
Ainda que em conformações diferentes, diversos
países aplicam ou já utilizaram o contrato de trabalho
intermitente. Flávio da Costa Higa fez completo le-
vantamento de direito comparado e é a partir dele que
apresentamos algumas experiências internacionais(1).
A Nova Zelândia é nação reconhecida como a
primeira a positivar essa modalidade de contratação.
Seu zero-hour contract surgiu com a Employment Re-
lations Act. Tratou-se, todavia, de experimento rejeita-
do. Depois de mais de uma década, os resultados não
foram os esperados e verificou-se ausência de benefí-
cios aos trabalhadores, sem remuneração mínima que
permitisse subsistência digna. Posteriormente a essa
análise, o parlamento neozelandês votou e aprovou, de
forma unânime, o Employment Relations Amendment
Act, de 2016, rejeitando o modelo. A partir de então,
os contratos devem especificar mínimo de horas de
trabalho garantidas, dias de semana de execução dos
serviços e horários de início e final da jornada.
Na Itália, o trabalho intermitente recebeu regula-
ção no art. 13 do Decreto Legislativo n. 15, de 2015,
e n. 81 e há outorga de competência aos contratos
REFORMA TRABALHISTA • PRIMEIRO ANO 51
coletivos para fixar regras de implantação. A lei, to-
davia, fixa limites, como faixas etárias em que há per-
missão da contratação especial.
O Gesetz über Teilzeitarbert und befristete
Arbeitsvertrüge é o instrumento legal alemão para
contratação intermitente e também estabelece restri-
ções, como presunção de duração de dez horas sema-
nais de trabalho e três horas diárias.
A preferência por “civilizar” o contrato de tra-
balho intermitente vem igualmente compartilhada na
legislação portuguesa. No art. 159 do Código de Tra-
balho lusitano, exemplificativamente, estabelece-se
período máximo em que pode viger a intermitência.
Como se verá ao longo desse estudo, nenhuma
das diversas limitações legais reconhecidas como ne-
cessárias nas experiências internacionais foi observa-
da no diploma brasileiro.
b) Experiências brasileiras anteriores à Lei n.
13.467/2017
Em período anterior à vigência da Reforma Traba-
lhista, empresa estrangeira buscou aplicar contratação
de intermitência em território nacional. A pesquisa rea-
lizada por Patrícia Maeda é definitiva e dela nos utiliza-
mos nessa rememoração jurisprudencial(2).
Desde 1995, a rede de lanchonetes McDonald’s
busca introduzir modelo de “jornada móvel e variá-
vel”, com contratação sem horários fixos, pagamento
apenas dos períodos efetivamente trabalhados e des-
consideração de períodos à disposição. Materializa-se
com o funcionário aguardando acionamento em sala
dentro do estabelecimento, em período chamado de
break. Diversas ações judiciais se seguiram, buscando
reconhecer esse período como jornada de trabalho em
período à disposição, nos termos do art. 4º da CLT.
Conhecendo essa situação, em 2011, o Tribunal
Superior do Trabalho julgou o Recurso de Revista n.
9891900-16.2005.5.09, de relatoria da Ministra Dora
Maria da Costa, 8ª Turma. Ali decidiu-se pela invali-
dade da cláusula contratual que fixava a jornada variá-
vel. Reconheceu-se que, embora inexistisse vedação
expressa na legislação brasileira, a situação era pre-
judicial ao empregado, sujeitando-o ao imperativo do
empregador e transferindo o risco do negócio. Especi-
ficamente, reconheceu-se afronta aos arts. 4º e 9º da
CLT.
A mesma 3ª Turma do TST voltou a conhecer
da matéria no julgamento do Recurso de Revista n.
7627220105020070, de relatoria do Min. Mauricio
Godinho Delgado. Em fundamentação profunda, ve-
rificou-se afronta aos arts. 7º, XIII, da CRFB, e 58
da CLT. Também reconheceu que a prática da jornada
móvel atenta aos princípios fundamentais da OIT (“o
trabalho não é mercadoria”) e a princípios constitu-
cionais de valorização do trabalho e emprego, justiça
social e subordinação da propriedade à sua função
social. Eis a ementa:
AGRAVO DE INSTRUMENTO. RECURSO DE
REVISTA. JORNADA DE TRABALHO FLEXÍVEL.
INVALIDADE. AFRONTA AOS ARTIGOS 7º, XIII,
DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL, E 58, CAPUT, DA
CLT. AFRONTA AO PRIMEIRO DOS PRINCÍPIOS
FUNDAMENTAIS DA OIT (— O TRABALHO NÃO
É UMA MERCADORIA —), ENUNCIADO PELA DE-
CLARAÇÃO RELATIVA AOS FINS E OBJETIVOS
DA OIT, DE 1944 (— DECLARAÇÃO DE FILADÉL-
FIA — ANEXO). AFRONTA A QUATRO PRINCÍPIOS
CONSTITUCIONAIS CARDEAIS DE 1988: DIGNI-
DADE DA PESSOA HUMANA; VALORIZAÇÃO DO
TRABALHO E DO EMPREGO; JUSTIÇA SOCIAL;
SUBORDINAÇÃO DA PROPRIEDADE À SUA FUN-
ÇÃO SOCIAL. DIFERENÇAS SALARIAIS PERTI-
NENTES À JORNADA PADRÃO DE 08 HORAS AO
DIA E DURAÇÃO DE 44 HORAS NA SEMANA (DI-
VISOR MENSAL 220). As normas jurídicas heterôno-
mas estatais estabelecem um modelo normativo geral,
que se aplica ao conjunto do mercado de trabalho, de 08
horas de trabalho diárias e 44 semanais (art. 7º, XIII, da
CF), que não pode ser flexibilizado em prejuízo do em-
pregado. No mesmo sentido, o art. 58, caput, da CLT
A duração normal do trabalho, para os empregados em
qualquer atividade privada, não excederá de oito horas
diárias, desde que não seja fixado expressamente outro
limite —. Em face desses parâmetros, compreende-se
que a adoção de um regime de duração do trabalho am-
plamente flexível (de 08 a 44 horas semanais), com evi-
dente prejuízo ao trabalhador — principalmente porque
afeta o direito à manutenção de um nível salarial mensal
—, implica ofensa a princípios inscritos na Constituição
Federal de 1988 — dignidade da pessoa humana (arts.
1º, III, e 170, caput), valorização do trabalho e emprego
(arts. 1º, IV, e 170, caput e VIII), justiça social (art. 3º,
I, II, III e IV, e 170, caput) e subordinação da proprieda-
de à sua função social (art. 170, III). Relevante também
enfatizar que a Conferência Geral da Organização Inter-
(2) MAEDA, Patrícia. A Era dos Zero Direitos. São Paulo: LTr, 2017. p. 126-129.

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