O trabalho na Constituição italiana

AutorEdilton Meireles
Ocupação do AutorDesembargador do Trabalho (TRT/BA). Doutor em Direito (PUC/SP). Professor da UFBa e da UCSal
Páginas57-68

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5.1. Texto Constitucional

De todas as mais importantes Constituições europeias, aquela que dá maior destaque e relevo ao trabalho é a Constituição Italiana de 1947 (promulgada em 27 de dezembro de 1947 e em vigor a partir de 1º de janeiro de 1948). Isso porque, logo em seu primeiro artigo ela dispõe que “A Itália é uma República Democrática fundada no trabalho”144.

Já em seu art. 4º estabelece que “a República reconhece a todos os cidadãos o direito ao trabalho e promove as condições para tornar efetivo este direito”. Dispõe, ainda, neste mesmo artigo, que “todo cidadão tem o dever de exercer, segundo as próprias possibilidades e a própria opção, uma atividade ou uma função que contribua para o progresso material ou espiritual da sociedade”. E para cumprir esse desiderato, o art. 3º estabelece que “cabe [é obrigação] à República afastar os obstáculos de ordem econômica e social que, limitando de fato a liberdade e a igualdade dos cidadãos, impedem o pleno desenvolvimento da pessoa humana e a participação efetiva de todos os trabalhadores na organização política, econômica e social do País”.

Mais especificamente em relação ao direito do trabalho, encontramos na Constituição italiana, em seus arts. 35 a 43, no Título que cuida das Relações Econômicas, diversas disposições que tratam da proteção do trabalho.

Assim é que se tutela “o trabalho em todas as suas formas e aplicações”, cuidando-se da “formação e da elevação profissional dos trabalhadores”, promovendo “os acordos e as organizações internacionais empenhados em afirmar e disciplinar os direitos do trabalho” e “reconhece a liberdade de emigração, salvo as obrigações estabelecidas pela lei no interesse geral”, bem como “tutela o trabalho italiano no exterior” (art. 35).

A Constituição italiana, ainda, assegura ao trabalhador “direito a uma retribuição proporcional à quantidade e qualidade do seu trabalho, que seja suficiente

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para garantir para si e para a sua família uma existência livre e digna”, assegurando-lhe o repouso semanal e as férias anuais remuneradas, sem direito à renúncia dos mesmos (art. 36).

Prevê expressamente a igualdade do trabalho da mulher, mas protege a família (conciliação trabalho e família), estabelecendo que as condições de trabalho devem permitir o cumprimento dos deveres familiares, assegurando “à mãe e à criança uma especial e adequada proteção” (art. 37).

Em relação ao menor, ainda dispõe que ele deve ser objeto de proteção especial, além de lhe ser assegurado isonomia de tratamento no trabalho (art. 37).

O Estado italiano também confere proteção a todo cidadão impossibilitado de trabalhar e desprovido dos recursos necessários para viver, inclusive os deficientes e incapacitados, assistindo-os no desemprego (art. 38).

A liberdade sindical é também cláusula fundamental (art. 39), assim como o direito de greve, que deve ser exercido no âmbito das leis que o regulamentam (art. 40).

Tem expressa disposição prevendo a possibilidade de expropriação, com o intuito de transferir a propriedade ao Estado, a entidades públicas ou a comunidades de trabalhadores ou de usuários, de empresas “que se relacionem com serviços públicos essenciais ou com fontes de energia ou com situações de monopólio, e tenham caráter de preeminente interesse geral” (art. 43).

Da mesma forma, “para fins de elevação econômica e social do trabalho e em harmonia com as exigências da produção”, a República italiana “reconhece o direito dos trabalhadores de colaborar, nas formas e nos limites fixados pelas leis, na gestão das empresas” (art. 46).

Por fim, não se pode olvidar que, ao lado do direito à “efetiva participação de todos os trabalhadores na organização política, econômica e social do País” (art. 3º), a Carta republicana da Itália assegurou a representação dos trabalhadores no Conselho Nacional da Economia e do Trabalho, sendo este órgão de consulta das Câmaras e do Governo para as matérias pertinentes (art. 99). E, neste desiderato, cabe a este órgão, inclusive, a iniciativa legislativa sobre matérias relacionadas à economia e trabalho.

5.2. O trabalho na Constituição italiana

A Constituição italiana de 1947, surgida ao fim do regime fascista, ocupa-se largamente do direito do trabalho. Ela é fruto do embate surgido entre as forças autoritárias, que sustentavam a supremacia da propriedade privada e do capital e as forças sociais. Ou, nas palavras de Marx, na luta entre o capital e trabalho. “Uma

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guerra em torno da ordem social e em suas relações com a ordem política”145. Em parte, uma luta entre marxistas e católicos146.

É neste sentido, ultrapassando o ideal liberal, que ela dá destaque “às afirmações de princípios e aos compromissos voltados à transformação e reforma da sociedade, no sentido de garantir à liberdade de fato (por meio da retribuição do labor, da instrução, da assistência), sem o qual o homem não é verdadeiramente livre”147. E dos seus 139 artigos, que delineiam a democracia social, ela atribui “ao trabalho um alto relevo constitucional na unidade da República fundada sobre o lavoro”148. Reafirma o caráter democrático da República italiana, após breve período fascista, mas inova ao atribuir relevância constitucional ao trabalho, reconhecendo “a força do lavoro na composição política do Estado”149.

O trabalho surge como “momento central da realidade humano-social comunitária e constitui uma pilastra” da Carta italiana150. Fundamento primário e relevante151, constitui, o trabalho, o fundamento social na Carta italiana152.

Costantino Mortati entende que essa fórmula italiana, de atribuir ao trabalho o valor fundamental e característico do Estado, é mais específica do que a expressão “Estado social”, utilizada nas Constituições francesa e alemã, já que esta última (expressão) se mostra mais genérica por não deixar claro e não individualizar “os valores que seriam necessários assumir para conferir efetividade ao mesmo princípio”. Ou seja, nessas outras ordens constitucionais, seriam genéricos os princípios orientadores válidos para alcançar um acordo sobre direitos e obrigações mais adequados para concretizar o Estado social153. Já na Constituição italiana, fica bem claro que o trabalho é o “centro motor da mobilidade social”154. E o valor trabalho se sobrepõe aos demais155, a ponto de tutelar até o trabalho dos italianos no exterior (art. 35, in fine).

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Porém, cabe esclarecer que “não é o lavoro na sua materialidade (ou a força que emana dele) que funda a República, mas a República, na sua Carta Constitucional, que opta por impor em seu fundamento o trabalho”. E, neste sentido, “o trabalho não é a ‘base fundamental’, a força social que a República tem a sua origem (e que de algum modo fundado a transcende dinamicamente), mas é a sua norma de princípio, com o democrático, da qual, portanto, deve seguir-se, com o aspecto fundamental da constituição política, que se articula na parte relativa ao ordenamento da República, como um fundamental aspecto da sua constituição formal econômica”156.

E a disposição primeira da Carta Magna da República italiana, preceituando que “a Itália é uma República Democrática fundada no trabalho”, por si só, já é uma deliberada declaração de que se deve dar máximo relevo a esta afirmação constitucional, “de valor ao mesmo tempo jurídico e ideológico”157. Exemplo unicum dentre as Constituições capitalistas da Europa, constituindo-se em uma verdadeira “supernorma”158. Isso porque a “República não deve reconhecer os privilégios econômicos, pois condenados; somente o trabalho deve ser o título de dignidade do cidadão. Constitui a medida do valor da pessoa e também a oportunidade que tem para contribuir para o progresso material ou espiritual da sociedade (art. 4º): No trabalho se realiza, portanto, a síntese entre o princípio personalístico (que implica a pretensão ao exercício de uma atividade laboral) e a solidarista (que confere a tal atividade um caráter de dever)”159.

Com essa cláusula, exclui-se que a República italiana se possa fundar em privilégios, em nobilidade hereditária ou sobre o esforço de outrem “e se afirma, ao invés, que essa se funda sobre o dever, que também é direito ao mesmo tempo para cada homem, de encontrar no seu esforço a sua livre capacidade de ser e de contribuir ao bem da comunidade nacional”160.

A partir desse preceito decorre que “a força de trabalho tem um significado político-jurídico como é de anunciar um princípio fundamental do regime político e, portanto, também um princípio institucional que condiciona a leitura da Constituição”161. Constitui “um elemento fundamental da ideologia política informante de toda estrutura estatal”162. Elemento fundamental que, diversa-

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mente da fundamentabilidade de outros direitos, insere-se dentre os cânones da hermenêutica jurídica constitucional163.

Com essa cláusula defende-se, inclusive, que o Estado italiano, surgido no pós-guerra, “não seria fundado mais sobre a propriedade privada e sobre o sufrágio universal censitário”, como ocorria nos estados liberais, mas, sim, em “um regime que na integração política e na missão social de alcançar a igualdade substancial teria reconhecido seus redutos”, que seriam o sufrágio universal (sem discriminação) e o direito ao trabalho164. O trabalho surge como verdadeiro contrapeso ao liberalismo econômico165.

O trabalho, todavia, “não é concebido como um meio de enriquecimento pessoal, mas como base ontológica do próprio Estado e do bem-estar público”166.

Com ele se busca a universalização do princípio da igualdade e, ao mesmo tempo, dos deveres da cidadania167. Busca-se a implantação da democracia168. Em suma, o trabalho é “o preço e a promessa da cidadania”, conforme pronunciou Barack Obama em seu discurso de posse na Presidência dos EUA169.

A regra do art. 1º da Constituição iataliana, por sua vez, é complementada pelo art. 3º que dispõe que é tarefa “da República...

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