Relações de trabalho e sentidos

AutorFábio de Oliveira
Ocupação do AutorProfessor do Departamento de Psicologia Social e do Trabalho do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo
Páginas75-86

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As combinações locais dos diversos elementos apresentados acima permitem o estabelecimento de relações de trabalho a partir das quais se produzem configurações do cooperativismo com sentidos muito distintos. Trata-se, como se procurou mostrar, de uma produção mútua entre relações sociais, materialidades e sentidos a partir da combinação de elementos na formação das redes que constituem cada uma das cooperativas acima apresentadas por meio dos relatos de seus trabalhadores.

Se vistos de longe, os mundos das cooperativas industriais, populares e de mão de obra apresentam semelhanças formais (são, afinal, cooperativas, têm estatutos, assembleias, relacionam-se com algum mercado etc.). Mas as semelhanças param por aí, pois, vistas de perto, apresentam construções intersubjetivas e materiais tão diferentes que poderíamos falar de mundos completamente estranhos entre si, especialmente se considerarmos os contrastes entre a cooperativa de mão de obra e as outras.

Em todas as cooperativas foi possível reconhecer, ao longo dos depoimentos, as ações dos trabalhadores, os conflitos e as negociações micropolíticas. Priscila, em um exemplo das pequenas negociações cotidianas, falou-nos, como visto acima, dos esforços para conseguir melhorias no seu espaço de trabalho e das negociações a respeito das folgas em feriados. Adilson, em um outro exemplo também já discutido, descreveu os confrontos entre opiniões diferentes no dia a dia, nas assembleias e nas relações entre operários e coordenadores de área. Em ambos exemplos, encontram-se demonstrações de como processos cotidianos de negociação concorrem para a produção do acontecer institucional.

É interessante notar, contudo, os diferentes contextos em que se dão essas negociações e as características que elas assumem em um ou outro espaço. As situações de confronto descritas por Adilson ocorrem, ou em espaços de decisão coletiva (a assembleia, as conversas informais), ou em relações que, embora marcadas por certa ambiguidade, insistem em ser horizontais (lembremo-nos do que foi discutido acima a respeito do papel dos coordenadores na cooperativa industrial).

Nas situações relatadas por Priscila, ao contrário, as negociações relativas ao espaço físico e aos feriados aconteceram na relação de oposição entre os trabalhadores e uma instância hierarquicamente superior de poder. Não são os próprios trabalhadores negociando entre si, mas reivindicando seus interesses diante de um outro que prescreve o trabalho e que centraliza as decisões no hospital. O mesmo se passa nas relações entre esses trabalhadores e a cooperativa de mão de obra, pois esta, estruturada como uma ordem burocrática, apresenta-se também como uma instância exterior de poder - basta lembrar o modo como as decisões chegam aos sócios que estão no hospital e o modo pelo qual a participação da gestão é vivida como algo à parte do dia a dia dos trabalhadores (ela depende de um curso opcionalmente oferecido aos cooperados que tiverem interesse pelo assunto).

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Em um arranjo, a condição de sócio-trabalhador convoca todos para que assumam e compartilhem as responsabilidades pela gestão. No outro, mantendo-se o dia a dia de trabalho separado da cooperativa e submetendo-se os trabalhadores às estruturas funcionais de um hospital tradicional, a vivência resultante é semelhante à de um trabalhador assalariado. Só não é idêntica simplesmente porque é pior: o vínculo de trabalho na cooperativa de mão de obra é visto, não sem razão, como inferior e mais precário do que na empresa convencional.

Com isso, nota-se também uma série de aspectos da cooperativa de mão de obra que se traduzem em sentidos muito diferentes daqueles que se constroem nas outras cooperativas.

A "retirada", por exemplo, que é a denominação dada aos rendimentos mensais de cada cooperado (aquilo que se retira do valor produzido ao final de um ano fiscal na forma de uma antecipação mensal), volta a ser "salário" para os cooperados do hospital, isto é, a retirada recebe a mesma denominação dos rendimentos de trabalhadores contratados pela CLT (salário, afinal, é o pagamento pela mão de obra comprada como mercadoria). Note-se que entre todos os trabalhadores das outras cooperativas houve um grande cuidado em fazer essa distinção como modo de afirmar que estão de fato em uma cooperativa.

Um outro exemplo, a divisão das sobras no final do ano é sempre tema para grandes debates na cooperativa industrial entre aqueles que preferem investir no patrimônio da empresa e ganhar mais depois e aqueles que preferem fazer uso imediato do dinheiro. Essa divisão não é mencionada pelos trabalhadores da cooperativa de mão de obra e aparece vagamente entre os cooperados das cooperativas populares (que, pelas baixas retiradas, têm pouca ou nenhuma sobra no final de um ano fiscal).

No entanto, são os trabalhadores da cooperativa de mão de obra os únicos que se queixam contra a "ausência" do décimo terceiro salário. Isso faz sentido se pensarmos que o contrato que sua cooperativa tem com o hospital a remunera em função do número de trabalhadores cedidos e do grau de instrução que possuem. As retiradas e as sobras, nesse caso, não dependem de um melhor ou pior desempenho da cooperativa (como nas cooperativas dos outros depoentes), mas da negociação com o hospital e do limite imposto pela média salarial de cada um desses profissionais no mercado de trabalho.

Se a estrutura do mundo não se modifica, isto é, se os elementos que configuram a rede que é a cooperativa não se constituem como um contexto fundamentalmente distinto do trabalho assalariado, não há condições suficientes para que a vivência como funcionário (ou "trabalhador autônomo") se transforme na vivência de sócio-trabalhador, isto é, o sentido do cooperativismo não difere substancialmente do sentido do trabalho assalariado.

Por sua vez, mesmo considerando-se ser uma empresa em transição, a metalúrgica que se transformou em cooperativa oferece-nos para a reflexão uma composição muito interessante de elementos, pois, mesmo que tenham sido mantidos cargos semelhantes aos

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das antigas chefias (os atuais coordenadores), a mudança para a condição de proprietários do empreendimento e a impossibilidade que têm os coordenadores de demitir um operário faz com que a autoridade de um ex-chefe que ainda venha a aspirar o comando autocrático caia por terra. Mesmo que uma cultura de cooperação esteja em intensa construção, mesmo que essa cooperativa industrial ainda não tenha "descoberto", por exemplo, os grupos semiautônomos (na versão toyotista ou sociotécnica) ou implementado mudanças substanciais na forma como o trabalho fabril é realizado, essa mudança na estrutura do mundo tal qual ele se apresenta aos trabalhadores faz com que os resquícios de autoridade do processo de trabalho herdado pela cooperativa sejam deslocados, fiquem fora de lugar. Estão presentes, mas de um modo distinto, pois o poder que tinha o chefe de demitir ou de proteger já não tem lugar no novo contexto e essa "autoridade" tem que fazer frente, na rede em que se insere, a outros agentes, como a figura do sócio-trabalhador ou a da assembleia.

Há que se questionar a necessidade ou não da existência dos coordenadores e se eles seriam ou não apenas um elemento de transição da empresa convencional para a cooperativa. Em todo caso, trata-se de uma decisão assumida pelo grupo de trabalhadores na sua tentativa de tocar adiante seu negócio. Há ainda que se considerar a análise feita no capítulo anterior pelo técnico mecânico Eduardo a respeito das diferenças tecnológicas entre as cooperativas industriais e as cooperativas populares artesanais e de serviços.

No caso ainda da cooperativa industrial e também das cooperativas populares, tem um peso muito grande a preocupação com a prosperidade do negócio, pois a manutenção da sobrevivência do empreendimento é um valor primordial compartilhado pela...

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