Transexualidade

AutorMaria de Fátima Freire de Sá/Bruno Torquato de Oliveira Naves
Páginas237-262
CAPÍTULO 12
TRANSEXUALIDADE1
Ó Adão, não te demos nem um lugar determinado, nem um aspecto que te seja próprio, nem tarefa
alguma especíca, a m de que obtenhas e possuas aquele lugar, aquele aspecto, aquela tarefa que
tu seguramente desejares, tudo segundo o teu parecer e a tua decisão. A natureza bem denida dos
outros seres é refreada por leis por nós prescritas. Tu, pelo contrário, não constrangido por nenhuma
limitação, determiná-la-ás para ti, segundo o teu arbítrio, a cujo poder te entreguei.2
1. A “INDEPENDÊNCIA” DO SER HUMANO
Como aspectos da pessoa humana, os direitos da personalidade não podem ser
analisados apenas como direitos subjetivos, mas principalmente como possibilidade de
vir a ser; a determinação mais íntima e segura da identidade do ser humano. Os direitos
da personalidade são situações subjetivas que protegem o devir humano; protegem a
potencialidade de se constituir pessoa dentro de um ambiente saudável.
No entanto, como determinar sob quais condições o ser humano encontra meios
propícios para desenvolver sua personalidade? Qual o modelo a se seguir?
Interessante pensar que a Modernidade foi responsável pela superação do modelo
monolítico predeterminado pela Religião ou pelo Estado.
Como nos relata Richard Tarnas,3 a Modernidade modif‌ica a noção de sujeito, ao
libertar o homem da heteronomia religiosa. O comportamento humano, especialmente
quanto ao modelo sexual adotado, era determinado pelo temor da condenação eterna.
O pecado cercava o homem e sua personalidade não devia ser construída com a sua
participação.
A consciência de si mesmo e sua relação com o outro, permitiu ao homem buscar
na ciência a “autoridade intelectual proeminente, sendo agora def‌inidora, juiz e guardiã
da visão cultural do mundo”.4
A independência do homem em relação ao pecado, às estruturas políticas e às
superstições medievais transformaram a personalidade.
1. Agradecemos a pesquisa e a contribuição de Juliana Mendonça Alvarenga, de Marcelo M. Couto e de Iara Antunes
de Souza para a atualização desse capítulo.
2. PICO DELLA MIRANDOLA, Giovanni. Discurso sobre a dignidade do homem. Lisboa: Edições 70, 2008, p. 51-53.
3. TARNAS, Richard. A epopeia do pensamento ocidental: para compreender as ideias que moldaram nossa visão de
mundo. 5. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002.
4. TARNAS, Richard. A epopeia do pensamento ocidental: para compreender as ideias que moldaram nossa visão de
mundo. 5. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002, p. 309.
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BIOÉTICA E BIODIREITO • MARIA DE FÁTIMA FREIRE DE SÁ E BRUNO TORQUATO DE OLIVEIRA NAVES
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Uma delidade psicológica que passava de Deus para o Homem, da dependência para a independência,
do outro mundo para este, do transcendental para o empírico, de mito e crença para a Razão e fato,
das universalidades para as particularidades, de um Cosmo estático determinado pelo sobrenatural
para um Cosmo em evolução determinado pela Natureza e de uma Humanidade decadente para uma
progressiva.5
A personalidade contemporânea não contempla modelos e reconhece que o único
meio de se alcançar uma justiça tão mutável quanto seu próprio destinatário é reconhe-
cendo-lhe o poder de autodeterminar interesses.
Podemos af‌irmar que, em princípio, a característica def‌inidora da Modernidade
foi responsável por sua crise. A crença na razão queria transformar a verdade metafísica
em certeza científ‌ica, quase matemática. A ordenação do caos era o interesse principal,
na qual a nomeação e a classif‌icação seriam potentes instrumentos.
No Direito também convivemos com essa necessidade ordenadora. Os códigos
ordenavam, classif‌icavam e conceituavam institutos jurídicos. Todavia, quanto mais
precisas são as def‌inições, mais elas segregam e mais se tem a conceituar. A busca pela
verdade acabou por gerar o retorno da incerteza.
A ambivalência é um subproduto do trabalho de classicação e convida a um maior esforço classica-
tório. Embora nascida do impulso de nomear/classicar, a ambivalência só pode ser combatida com
uma nomeação ainda mais exata e classes denidas de modo mais preciso ainda: isto é, com operações
tais que farão demandas ainda mais exigentes (contrafactuais) à descontinuidade e transparência do
mundo e assim darão ainda mais lugar à ambiguidade.6
Dessa forma, ciência e ambivalência estão em pontos contrários e ao mesmo tempo
muito próximos. Embora procure afastar o caos da ambivalência, precisando conceitos
e classif‌icações, a verdade cartesiana dos primórdios da Modernidade demonstrou que
a única saída para o Direito era reconhecer a individualidade e o indivíduo como seu
agente construtor.
Considerada como “aquilo que nos permite def‌inir o que é e o que não é importante
para nós”,7 a identidade permite que as potencialidades do indivíduo concretizem-se
segundo seus próprios interesses e convicções.
Enf‌im, reconhecemos a pluralidade do homem e o projeto inacabado de constru-
ção de sua personalidade, dependente da autonomia como elemento determinante da
dignidade do ser humano.
Nesse contexto de precariedade da personalidade do homem (pós) moderno, é
que propomos o estudo da situação jurídica dos transexuais.
5. TARNAS, Richard. A epopeia do pensamento ocidental: para compreender as ideias que moldaram nossa visão de
mundo. 5. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002, p. 343.
6. BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e ambivalência. Tradução de Marcus Penchel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999,
p. 11.
7. TAYLOR, Charles. As fontes do self: a construção da identidade moderna. São Paulo: Loyola, 1997, p. 47.
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