A Jurisprudência Brasileira da Transexualidade: uma reflexão à luz de Dworkin

AutorMaria Eugenia Bunchaft
CargoDoutora e Mestre em Teoria do Estado e Direito Constitucional pela PUC-Rio
Páginas277-308
A Jurisprudência Brasileira da Transexualidade:
uma reflexão à luz de Dworkin1
Brazilian Transexuality Jurisprudence: an insight based on Dworkin
Maria Eugenia Bunchaft
Universidade do Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo – RS, Brasil
Resumo: A transexualidade é um dos temas
mais controversos da bioética. A temática é en-
coberta por autocompreensões assimétricas de
mundo vinculadas a concepções religiosas, que
terminam por minimizar os aspectos jurídicos
fundamentais relativos ao direito à identidade
sexual. Por meio da análise de diferentes proje-
tos de lei, que tratam da temática da transexua-
lidade, objetiva-se provar que a insuficiência da
atuação do processo político majoritário na sa-
tisfação de demandas sociais específicas de tran-
sexuais tem sido suprida pelo papel pedagógico
da atuação de alguns tribunais e do Superior
Tribunal de Justiça na interpretação do direito
de mudança do prenome e do sexo. Propugna-se
investigar a relevância da estratégia de concilia-
ção de valores em uma rede harmoniosa para a
análise dos princípios jurídicos envolvidos na
temática da mudança de prenome e de sexo por
transexuais.
Palavras-chave: Transexualidade. Ativismo
Judicial. Dworkin.
Abstract: Transsexuality is one of the most
controversial topics in bioethics. The issue
is clouded by asymmetric self-judegements
of the world linked to religious conceptions,
which ultimately minimize the legal aspects
related to the fundamental right to sexual
identity. Through the analysis of different
bills dealing with the issue of transsexual-
ity we intend to demonstrate that the failure
of the performance of majoritarian political
process in satisfying social demands spe-
cific transsexuals have been supplied by the
pedagogical role of the performance of some
courts and the Superior Court of Justice on
the interpretation of the right to change the
given name and sex. Currently proposing to
investigate the relevance of the strategy to
reconcile values in a harmonious network for
the analysis of the legal principles involved
in the issue of change of first name, sex and
transsexuals.
Keywords: Transexuality. Judicial Activism.
Dworkin.
1 Recebido em: 06/08/2013
Revisado em: 14/11/2013
Aprovado em: 18/11/2013
Doi: http://dx.doi.org/10.5007/2177-7055.2013v34n67p277
A Jurisprudência Brasileira da Transexualidade: uma reflexão à luz de Dworkin
278 Seqüência (Florianópolis), n. 67, p. 277-308, dez. 2013
1 Introdução
A transexualidade é um dos temas mais controversos da bioética. A
temática é encoberta por autocompreensões assimétricas de mundo vin-
culadas a concepções religiosas, que terminam por minimizar os aspectos
jurídicos fundamentais relativos ao direito à identidade sexual. A união
entre homem e mulher, considerada um alicerce fundamental de uma so-
ciedade construído em torno do núcleo familiar, aos poucos, passa a ser
questionada. Inicialmente, a união entre homem e mulher era algo inques-
tionável, razão pela qual a moralidade majoritária inspirava discrimina-
ções contra os homossexuais. Nesse aspecto, as religiões ocidentais de-
linearam compreensões morais que concebiam o sexo em uma dimensão
reprodutora, voltada para a preservação da família e da espécie humana.
De início, é premente lecionar que a identidade sexual vem sendo
compreendida de forma mais ampla que o simples sexo morfológico. O
sexo deixa de ser considerado como um elemento fisiológico, genetica-
mente determinado e imutável, contemplando os componentes genético,
endócrino, morfológico, civil e psíquico. Ana Paula Ariston Barion Peres
(2001) ainda acrescenta duas categorias: o sexo psicossocial e o sexo de
criação. Elimar Szaniawsky (1998) destaca que o sexo psíquico contem-
pla o sexo de criação, associado ao ambiente responsável pelo processo
de desenvolvimento infantil. Em suma, decorre do relacionamento fami-
liar e da educação transmitida à criança, tendo em vista o desenvolvimen-
to do seu papel social feminino ou masculino.
Nessa linha de raciocínio, em regra, há uma compatibilidade entre
sexo biológico, legal e de criação. Em determinadas situações, todavia,
pode haver uma incompatibilidade entre a identidade de gênero e o sexo
de criação, tendo em vista a concepção de sexo psicossocial. Segundo
Antonio Chaves (2004, p, 128), o sexo psicossocial decorre de interações
genéticas, fisiológicas e psicológicas que irão delimitar a estruturação do
comportamento e da identidade sexual do indivíduo. O sexo psicossocial
pressupõe uma articulação de diversos fatores, inspirando a identidade de
gênero, que é a autocompreensão do indivíduo sobre sua sexualidade. No
entanto, o sexo psicossocial pode ser incompatível com o sexo biológico:
Maria Eugenia Bunchaft
Seqüência (Florianópolis), n. 67, p. 277-308, dez. 2013 279
o indivíduo é biologicamente perfeito, mas identifica-se com o sexo femi-
nino.
Nesse ponto, os tribunais têm partido de uma leitura moral do or-
denamento jurídico e de uma perspectiva reconstrutiva, superando auto-
compreensões assimétricas de mundo. Por meio da análise de diferentes
projetos de lei, que tratam da temática da transexualidade, pretende-se de-
monstrar que a insuficiência da atuação do processo político majoritário
na satisfação de demandas sociais específicas de transexuais tem sido su-
prida pelo papel pedagógico da atuação de alguns tribunais e do Superior
Tribunal de Justiça na interpretação do direito de mudança do prenome e
do sexo. Mas por que motivo se faz imprescindível a compreensão da teo-
ria do valor delineada por Dworkin na análise da temática dos direitos de
transexuais na jurisprudência brasileira? É necessária, porque a temática
da transexualidade não é apenas uma questão de política, mas, sobretudo,
uma questão de princípio. A temática do transexualismo enseja, de um
lado, um debate sobre a concepção de justiça, segurança jurídica, demo-
cracia, igualdade e liberdade na sua argumentação, que são conceitos in-
terpretativos pertencentes ao domínio do valor.
De outro lado, recentes decisões judiciais do STJ na regulamen-
tação do direito à mudança de prenome e sexo por transexuais inspiram
uma possível discussão sobre monismo e pluralismo de valores. O plu-
ralismo de valores é uma das questões mais discutidas na filosofia políti-
ca contemporânea. Essa temática é analisada por Dworkin em Justice for
Hedgehogs (2011), onde enfrenta a problemática da contraposição entre
monismo e pluralismo de valores. O título da obra diz respeito ao poema
de Arquíloco, a que se refere Isaiah Berlin em seu livro, The Hedgehogs
and the Fox: An Essay on Tolstoy’s View of History (1993), no qual discu-
te a problemática do monismo e pluralismo. Portanto, “[...] a raposa sabe
muitas coisas, mas o porco-espinho sabe apenas uma e grandiosa coisa
[...]”, afirma o poeta grego Arquíloco. (BERLIN, 1993, p. 435)
Não obstante toda a perspicácia da raposa e a possibilidade de de-
senvolver estratégias variadas para capturar o ouriço, no fim, a raposa ter-
mina superada pela mesma artimanha de sempre: o ouriço transforma-se
em uma bola com espinhos apontando para direções diversas, inviabili-

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