Transexualidade e a vida vivida: consciência e transformação

AutorMaria de Fátima Freire de Sá e Marina Carneiro Matos Sillmann
Páginas95-114

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Apresentação

A transexualidade é uma realidade que não pode ficar alheia à esfera jurídica. O único meio de se garantir uma sociedade sadia é permitir o convívio das diferenças. Nesse artigo, ficção e realidade são objetos de reflexão, na busca por soluções que privilegiem o ser humano, garantindo-lhe a dignidade e o livre desenvolvimento de sua personalidade. Jurisprudências dos tribunais são destacadas para demonstrar a diversidade de seus fundamentos. Na esfera legislativa, o Projeto de Lei "João Nery" busca o reconhecimento da autonomia do transexual a partir da autodefinição de gênero. O debate sobre gênero nas escolas também é objeto de análise, bem como os projetos de lei sobre o assunto.

"A faculdade de se pensar que a realidade de hoje é a única verdadeira, se por um lado nos sustenta, por outro precipita-nos num vazio sem fim, porque a realidade de hoje está destinada a revelar-se amanhã como ilusão. E a vida não conclui.

Não pode concluir. Se amanhã concluir, acabou."

Luigi Pirandello 1

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1 Introdução

A autonomia privada é pano de fundo para a discussão que ora trazemos. E, na contemporaneidade, começou-se a trabalhar a ideia de correlação/codependência entre autonomias pública e privada. Voltar os olhos para o pretérito conferiu a capacidade crítico-reflexiva necessária à percepção de que uma perspectiva isolada, seja ela pública ou privada, é, também, uma perspectiva carente, manca, cujos passos capengas não levam além do que a uma ótica parcial.

Logo, a adoção de uma concepção de autonomia integradora dos espaços público e privado é a única que, diante de uma pluralidade, propicia a preservação da variável individual dentro de uma realidade intersubjetivamente compartilhada na qual cada um possa se preservar, mas, ao mesmo tempo, reconhecer o outro e participar da construção desse universo comungado sem que, para tal, excluam-se as diferenças.2

E é nesse contexto que trazemos o tema transexualidade. Vamos abordá-lo à luz do Direito compreendido como sistema de princípios, na busca pelo constante reconhecimento recíproco de iguais liberdades fundamentais. Isto se explica porque não há mais a possibilidade de imposição de uma única concepção de "vida boa", a qual nos era imposta por meio da sacralização do Direito. O Direito moderno assumiu para si o desafio de, por meio dos direitos fundamentais, "garantir espaços privados e públicos de construção e manifestação de opiniões e concepções de vida diferenciadas."3.

Se afirmarmos que, na atualidade, toda pessoa tem liberdade para construir sua pessoalidade, não resta dúvida que a sexualidade é um dos elementos desse processo construtivo. Cabe ao Direito, portanto, efetivar esse processo que compreende o construir-se pessoa, em uma constante busca por reconhecimento e pela afirmação do conteúdo da dignidade da pessoa humana.

O debate está aberto. Muitas barreiras necessitam ser transpostas para a efetivação de direitos aos transgêneros. Questões corriqueiras como, por exemplo, o uso de banheiros nas escolas e em outros lugares públicos e a possibilidade de ser chamado pelo nome social precisam de respostas.

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Negar o debate sobre gênero é inserir a vida em uma caixa que não a comporta.

2 A vida vivida: entre a ficção e a realidade

Talvez, a melhor maneira de enxergar a realidade seja torná-la ficção. Assim, em uma tela de cinema, as experiências do mundo-da-vida ganham a distância necessária para se tornar instigantes, agônicas e reais. E, sendo reais, costumam despertar nossas emoções e nossa sensibilidade para com o outro.

É com o intuito de despertar emoções e olhares para uma questão de grande importância que é a transexualidade infantil, dedicaremos as próximas linhas ao longa-metragem belga (Bélgica, França e Inglaterra) Ma Vie em Rose, lançado em 1997.

Minha vida em cor-de-rosa conta a estória da família Fabre, um núcleo composto por um homem, uma mulher e três filhos, habitantes de uma pacata vizinhança. O personagem principal é Ludovic (George DuFresne), um menino de sete anos, filho caçula de Hanna (Michele Laroque) e Pierre (Jean-Philippe Ecoffey).

Tudo parecia bem na família Fabre até que Ludovic começa a ter atitudes estranhas, a se comportar fora dos padrões "ditos normais" para um menino. O primeiro incidente ocorre em uma festa promovida pela família, quando Ludovic aparece na sala da casa maquiado e com um vestido da irmã. Nesse momento, a atitude do menino é relativizada pelos pais, que fingem não dar tanta importância. Mas uma sucessão de fatos traz a realidade à tona: Ludovic questiona seu status de menino.

Em uma cena do filme, Ludo, como era chamado, encontra-se na casa de seu amigo Jerome (Julien Riviere), filho de um casal amigo de seus pais. Inadvertidamente, Ludo entra em um quarto proibido - o quarto da irmã morta de Jerome. E o mundo feminino o encanta e o seduz. Ludo troca sua roupa por um lindo vestido rosa e, tomado pela magia do desenho O Mundo de Pam, como Pam (uma criação publicitária análoga à Barbie) se identifica e ao seu amigo Ben, o namorado de Pam. A cena mostra as duas crianças se casando perante um padre imaginário, e um beijo dado por Ludovic em Jerome, selando a união, provoca um desmaio na mãe de Jerome, que assiste, estupefata, a cena.

Na ficção, a família Fabre não vê com bons olhos a atitude de Ludo. Perdidos, tal como acontece com a maioria das famílias que vive essa situação, os pais se questionam onde "erraram" na criação do menino. E, em dado momento, a solução proposta foi fazer Ludo acompanhar mais

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o pai, que o incentiva a jogar futebol e a "fazer coisas de menino". Talvez, segundo os pais, se forçassem uma construção de masculinidades, as expressões femininas em Ludo se calassem.

É comovente o sofrimento de Ludo ao longo da estória. Uma vez aprendido que "meninos não se casam com meninos", Ludo pede à fada Pam que o transforme em uma menina para que ele possa se casar com Jerome. E as explicações biológicas de sua irmã acerca das diferenças entre meninos e meninas não o satisfazem. A conclusão de Ludovic é que Deus pretendia, sim, que ele nascesse menina, mas um dos seus cromossomos X se perdera pelo caminho, ficando o XY. Mas, por certo, Deus resolveria esse problema...

Das telas para a realidade. Uma, dentre muitas histórias, escolhida por nós: Luiza, estudante de nove anos, antes se chamava Leandro. A primeira criança transexual brasileira a receber autorização da justiça para a mudança do prenome. Na reportagem consultada, os nomes são fictícios, a pedido da família.

Segundo a mãe de Luiza, tudo começou quando Leandro tinha dois anos de idade. A mãe relata que a criança costumava pegar as presilhas das coleguinhas da creche e as ajustava em seus próprios cabelos. Depois, passou a usar blusas como vestidos e a feminilidade se acentuava. Os pais decidiram reprimir ao máximo a conduta de Leandro, mas nada mudava. Uma vez repreendido, Leandro repetia tudo escondido dos pais. De acordo com os pais, o menino colocava pregadores de roupa nos cabelos para simular longas madeixas, escondia a genitália ao entrar no banho e chegou até a pegar uma tesoura para cortar o órgão masculino.

Diante do susto, os pais propuseram à criança andar como menina dentro de casa, mas fora dali ela deveria se comportar como menino. A ideia não teve êxito porque, certa vez, um amigo da família entrou na residência sem avisar e Luiza, no quintal, escondeu-se atrás da churrasqueira tremendo de medo.

Esse foi o sinal para que os pais enfrentassem de vez a situação. Ao saberem da existência do Ambulatório Transdisciplinar de Identidade de Gênero e Orientação Sexual do Hospital das Clínicas de São Paulo, Beatriz, mãe de Leandro, pediu ajuda. Ali, os pais foram orientados a não repreender e, tampouco, a estimular o comportamento da criança. O tempo mostrou a identidade feminina, fato que levou os pais a pedirem, judicialmente, a troca do prenome de Leandro.

O processo tramitou perante a Terceira Vara da Comarca de Sorriso, no Estado de Mato Grosso e o pedido foi proposto pela Defensoria Pública. A ação de retificação de assento de registro civil pugnava pela

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alteração do nome e do gênero, sob o fundamento de que a criança nasceu com anatomia física contrária à sua identidade sexual psíquica. O juiz Anderson Candiotto, responsável pela condução do processo, determinou a realização de um estudo psicossocial e a oitiva da criança na modalidade de depoimento sem dano. Ao final, julgou procedentes os pedidos na sua totalidade, fundamentando o mérito no princípio da dignidade da pessoa humana:

a personalidade da infante, seu comportamento e aparência remetem, imprescindivelmente, ao gênero oposto de que biologicamente possui, conforme se pode observar em todas as avaliações psicológicas e laudos proferidos pelo Ambulatório de Transtorno de Identidade de Gênero e Orientação Sexual do Núcleo de Psiquiatria e Psicologia Forense (AMTIGOS) do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP/SP, único no Brasil que exerce estudos nesse aspecto, evidenciando a preocupação dos genitores em buscar as melhores condições de vida para a criança4.

Luiza encontra-se matriculada em uma escola pública porque, segundo a mãe, a escola particular "barrou, temendo afugentar a clientela" e só os professores sabem da sua história. Cientes das fases que estão por vir, quais sejam, o uso de medicamentos para bloqueio da puberdade masculina e, no futuro, outros para reforçar os traços femininos, os pais se dizem tranquilos e felizes com o desfecho da situação. E Luiza assim se manifestou na matéria: "Agora me sinto uma menina inteira. Meu único medo é minhas amigas deixarem de falar comigo se um dia descobrirem que eu...

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