Transformações no sistema tradicional de roça itinerante na Mata Atlântica do litoral sul brasileiro

AutorNicole Rodrigues Vicente - Alfredo Celso Fantini
CargoDoutoranda em Recursos Genéticos Vegetais e pesquisadora do Núcleo de Florestas Tropicais da Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, SC, Brasil - Doutor em Ciências Florestais pela University of Wisconsin, Madison, EUA
Páginas183-203
1807-1384.2014v11n2p183
Esta obra foi licenciada com uma Licença Creative Commons - Atribuição 3.0 Não
Adaptada.
TRANSFORMAÇÕES NO SISTEMA TRADICIONAL DE ROÇA ITINERANTE NA
MATA ATLÂNTICA DO LITORAL SUL BRASILEIRO
Nicole Rodrigues Vicente
1
Alfredo Celso Fantini2
Resumo:
Este artigo visa compreender as mudanças ocorridas no sistema tradicional de roça
itinerante no litoral de Santa Catarina ao longo das últimas quatro décadas. A pesquisa
foi desenvolvida junto a agricultores tradicionais moradores de duas microbacias
hidrográficas do município de Biguaçu-SC. A unidade amostral foi a propriedade onde
reside o informante-chave, selecionado via Bola-de-Neve. Foram conduzidas
entrevistas semiestruturadas, observações participante e turnês-guiadas para coleta
de dados. A análise de dados se deu por meio do software Atlas.ti, de estatística
descritiva e análise multivariada de Componentes Principais. Os dados foram
interpretados com base na linha histórica de ocorrência. A pesquisa diagnosticou que
o manejo realizado pela população local se fundamenta na condução periódica de
cultivos agrícolas e florestais, num sistema de rotação com períodos de pousio. As
principais culturas agrícolas utilizadas eram a mandioca, a banana, o milho, o café e a
cana-de-açúcar, mas atualmente apenas a mandioca tem forte expressão. Para todas
as fases de desenvolvimento do manejo os agricultores apresentam conhecimentos
específicos de leitura da paisagem e da dinâmica florestal. Mudanças nas políticas
agrícolas e gestão das florestas nativas têm afetado diretamente o sistema de roça
itinerante nas microbacias estudadas. A população local apresenta relação intrínseca
com os recursos florestais nativos devendo ter seu modo de vida respeitado e seu
sistema tradicional valorizado.
Palavras-chave: Roça-de-toco. Agricultura familiar. Florestas secundárias.
Populações tradicionais. Ecologia histórica.
1 INTRODUÇÃO
As principais bases para compreender as respostas das paisagens perante a
influência das ações humanas provêm do arcabouço teórico da ecologia histórica, bem
como para analisar as transformações humanas resultantes das transformações na
paisagem (LUNT; SPOONER, 2005; BALÉE, 2006). Na complexidade da paisagem, os
1 Doutoranda em Recursos Genéticos Vegetais e pesquisadora do Núcleo de Florestas Tropicais da
Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, SC, Brasil. E-mail: nicsrv@gmail.com
2 Doutor em Ciências Florestais pela University of Wisconsin, Madison, EUA. Professor do
Departamento de Fitotecnia, Centro de Ciências Agrárias, Laboratório de Ecologia e Manejo de
Ecossistemas Florestais da Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, SC, Brasil. E-mail:
afantini@cca.ufsc.br
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R. Inter. Interdisc. INTERthesis, Florianópolis, v.11, n.2, p.183-203, Jul./Dez. 2014
agricultores estão cotidianamente manejando os agroecossistemas e os elementos da
biodiversidade a eles associados (BROOKFIELD; PADOCH, 2007). Muitas práticas
utilizadas por povos tradicionais estão direcionadas a promoção da heterogeneidade
no habitat em nível de paisagem e intensificar o manejo de uso. Essas práticas
aumentam tanto a complexidade local quanto a diversidade dos recursos biológicos
disponíveis (BERKES et al., 1995; JARVIS et al., 2007). A análise dessas relações
entre ser humano e paisagem se fundamenta em ciências como ecologia, geografia,
história ambiental, antropologia (SOLÓRZANO et al., 2009), focando principalmente na
escala temporal e espacial desta relação. Dessa forma, a interferência humana na
paisagem tem apresentado influência dos padrões dinâmicos dos ecossistemas, mas
nem sempre em um cenário de degradação (WILLIS et al., 2004), e sim na
contribuição desta relação para aumento da diversidade alfa e beta (BALÉE, 1992;
2006).
De acordo com as características étnicas dos povoamentos humanos a
interação com a paisagem em que habitam e se relacionam seguem diferentes rumos.
Povos caiçaras e quilombolas (ADAMS, 2000a; 2000b; HANAZAKI et al., 2000;
HANAZAKI et al., 2006; ADAMS et al., 2013), migrantes europeus (ZUCHIWISHI et al,
2010; MILANESI et al., 2013) e povos indígenas (FLOWERS, et al., 1982; CRIVOS et
al., 2007) atuam-na paisagem de formas distintas, mas são influenciadas por suas
ações. Por esse motivo a compreensão etnográfica sobre as populações humanas e
seus recursos ambientais manejados é uma ferramenta intrínseca para a análise em
ecologia histórica (COOMES et al., 2000; CAIRNS, 2007; GARRITY, 2007). A
agricultura itinerante, típica dos ecossistemas florestais tropicais, tem sido praticada
por populações tradicionais ao redor do mundo, durante séculos, como um meio
resiliente de adaptação às condições ambientais impostas por estes ecossistemas
complexos (CONKLIN, 1961; BROWN; SCHRECKENBERG, 1998; ADAMS, 2000a;
MAZOYER; ROUDART, 2010; VLIET et al., 2012). Estes sistemas agrícola-florestais
de roça itinerante, ou agroflorestais, são praticados principalmente por populações
indígenas da América Latina, África e Ásia especialmente em regiões montanhosas
(SOEDARSONO E HARTANTI, 1995; COLFER et al., 1997; ROUÉ, 2000; MICHON,
2005; CAIRNS, 2007; PADOCH E PINEDO-VASQUEZ, 2010). Apesar do seu potencial
para promoção das florestas este sistema tradicional tem sido substituído ao longo dos
trópicos por atividades agrícolas com monocultivo que degradam e impactam
negativamente o meio ambiente (VLIET et al., 2012).

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