Transformações sociais e apreciação judicial

AutorCarlos Aurélio Mota De Souza
Páginas193-261


1. Evento e decisão: hiato indesejável
O ideal da justiça célere seria a pronta intervenção do julgador
no evento do fato jurídico e a imediata aplicação do remédio legal,
o que, todavia, é impraticável, senão utópico. Em países de sistemas
judiciais desenvolvidos (ou mais democráticos), os juízes estão a
postos para atender às ocorrências mais graves: infrações de trân-
sito são levadas de pronto ao seu conhecimento: agrantes de deli-
tos, drogas, alcoolismo, agressões, identicamente. Mesmo situações
mais complexas são apresentadas rapidamente (em dias ou semanas)
a um júri preliminar (sistema jurídico anglo-norte americano). Em
sistemas como o nosso, as ocorrências judicialmente relevantes so-
frem um esvaziamento, através de morosos inquéritos (policiais ou
administrativos), cuja consequência inevitável é distanciar os dois
poo los do caso jurídico emergente, evento e adecisão, levando, mui-
tíssimas vezes à consequência inevitável da impunidade.
Há, como é notório, atividades sociais e esportivas (concurso de
jurados, jogos, campeonatos) em que o julgamento está intimamente
ligado ao evento, àquilo que está acontecendo (ilícito, transgressão,
indisciplina ou o que for), nas quais o juiz ou árbitro julga sobre a ir-
regularidade praticada por algum jogador (cidadão)1. Essa desejável
1 Juízes eleitorais, por exemplo, de plantão durante programas gratuitos dos candida-
tos, em eleições passadas, atuaram instantaneamente, censurando os programas no
ato, cortando cenas contrárias às normas da propaganda eleitoral. Está em prática
a audiência de custódia com a imediata apresentação do preso ao juiz, um novo
 
instantaneidade do ato de julgar nos conduz a duas reexões: uma,
que o juiz deve possuir profundo conhecimento de seu ofício, das
regras do jogo (processo)2, para poder decidir de imediato (resta-
belecer a ordem, cobrar a falta, reequilibrar as partes); outra, que
deve cultivar virtudes especiais como atenção, diligência, acuidade,
prudência (e, para o Direito, se acrescentariam a moderação, afabili-
dade, benevolência, simplicidade) para decidir com acerto3.
Tais considerações sugerem duas outras ordens de indagações: é
ou não possível, na prática forense, minimizar ou reduzir o hiato que
medeia do acontecimento à decisão, de modo a aproximar rapida-
mente o homem do evento ao homem da justiça, a m de não se per-
der, nos desvãos dos inquéritos e dos autos, a verdade real, o frescor
do acontecimento, a identidade das pessoas, o calor dos interesses, o
brilho e as cores da realidade, afastando, em consequência, os riscos
da improbidade, da dubiedade absolvedora, da impunidade revol-
tante, ou, o que é pior, da injustiça irreparável? E, ainda, se todos os
males e críticas à tormentosa morosidade da Justiça não provêm de
uma fonte maior, mas não única, que é o próprio sistema jurídico,
mantenedor de um positivismo dogmático que se mostra recalci-
trante e incapaz de se renovar, diante das enormes transformações
sócio-político-econômicas da realidade moderna?
Medidas processuais existem, entretanto, admitindo o exercício
dos direitos com mais presteza, aumentando a proximidade entre
evento e julgado. No CPC de 1973 encontram-se as ações cautelares,
liminares e interditos e os remédios constitucionais ínsitos no ordena-
mento jurídico4; Em nova sistemática o novo CPC estabeleceu vários
tipos de tutelas: de urgência, arts. 300-302 (273, 804/73); antecipada,
rumo à evolução civilizatória do processo penal, objeto do Projeto de Lei do Senado
Nº 554/2011.
2 Piero CALAMANDREI. Il processo come giuoco. In: Scritti giuridici in onore di F.
Carnelutti, vol. II.
3 M.P. FABREGUETTES. A lójica judiciária e a arte de julgar, p. 480.
4 CPC, arts 799 a 889, além de regras esparsas (arts. 266, 653, 793, 1018, par. único;
701, 1001, 1016, par. 1º e 1197); no Código Civil, arts. 445, 453, 507, par. único.
Cf. nosso Poderes éticos do juiz, p. 81-82; João Batista LOPES. Os poderes do juiz
e o aprimoramento da proteção jurisdicional. Revista de Processo, vol. 35, 58-59.
Cf. também. Sydney SANCHES. Poder cautelar geral do juiz. Revista dos Tribunais,
605, 12, Galeno LACERDA. Comentários ao CPC, Vol. VIII, T. 1, p. 136.
 
arts. 303-304; cautelar, art. 305 a 310 (art. 801, 273 §7º/73), de evi-
dência, art. 311(273 e inc.II, § 6º, 901-906/73), e manteve os interdi-
tos, art. 567 (art. 932/73).
De outra parte, a conquista dos Juizados Especiais de Pequenas
Causas5, Justiça, mais consentânea com as realidades sociais, moder-
na “justiça dos pobres”6, fundamenta-se amplamente nos institutos
da conciliação e da mediação, de valor processual e social agora mais
prestigiado. Essa justiça especial, por sua oportunidade, pelo alcance
de suas regras de aplicação, e pelo alto grau de conabilidade em seu
funcionamento, a nosso ver se equipara a novo paradigma judicial,
emulação da justiça trabalhista, ainda considerada autêntica justiça
de equidade, como na expressão do Juiz Renato Gomes Ferreira:
Quer julgando com equidade, quer julgando por equidade, hu-
manizando, adaptando, corrigindo, suprindo ou criando normas
para soluções que obtenham a justa composição da lide [...] os
pretórios trabalhistas armam uma das mais altas expressões de
sua dignidade, em contato vivo com o colorido multiforme da
realidade dos fatos7.
É igualmente o entendimento de outro Juiz trabalhista, Arion
Sayão Romita, ao armar que “forte corrente doutrinária sustenta
que, ao apreciarem dissídios coletivos de natureza econômica, os tri-
bunais do trabalho assumem características de jurisdição de equi-
dade”8. E, anal, importante o ensinamento do professor Octávio
Bueno Magano, ao asseverar que: “O Direito do Trabalho constitui
verdadeiro campo de eleição para aplicação da equidade9.
2. O poder judicial da conciliação e da mediação
A nosso ver, como dissemos, conciliação e mediação assumem
importantes funções no processo em geral e recebem tratamento de
5 Lei 7.244, de 07.11.84, revogada pela atual L 9099, de 29.09.95, dos Juizados Espe-
ciais Civis e Criminais.
6 Antonio MENGER. El Derecho civil y los pobres, p. 68-69.
7 Renato Gomes FERREIRA. Equidade em Direito do Trabalho, p. 31.
8 Arion Sayão ROMITA. Equidade e Dissídios Coletivos, p. 85.
9 Octávio Bueno MAGANO. Manual de Direito do Trabalho, p. 104.

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT