Transforming from the margins: A proposal for mapping Latin American critical feminist social thought/Transformando desde as margens: Uma proposta de mapeamento do pensamento social critico feminista latino-americano.

AutorSeabra, Joana Emmerick

Introducao

Vivemos um periodo de profunda crise do capitalismo (1) (FRASER 2013, 2014). O caracteristico impulso neoliberal de ampliar e desregulamentar mercados esta dizimando os modos de vida de bilhoes de pessoas, aprofundando os niveis de desigualdade social em todo mundo, desmantelando familias e comunidades, fissurando lacos de solidariedade, apoio e resistencia, e destruindo a natureza. Esse processo devastador vem acompanhado da comodificacao crescente dos recursos naturais, do trabalho humano e do dinheiro, por exemplo, com a invencao de cotas de emissao de gas carbonico, o desenvolvimento e comercio de produtos biotecnologicos, derivativos financeiros, e servicos de provimento do trabalho reprodutivo do cuidado. Como argumenta Nancy Fraser (2013, 119), "o neoliberalismo ameaca agora [...] erodir as proprias bases de que o capitalismo depende", quais sejam os pressupostos politicos, simbolicos, naturais e humanos que permitem a sua reproducao. Essa crise, embora muitas vezes tratada como unidimensional, constitui, em verdade, um complexo de crise (FRASER 2013), que abarca multiplas dimensoes--politica/de legitimacao, economico/financeira, social/reprodutiva, e ecologica (FRASER 2013, 2014).

Os impactos dessa crise se fazem sentir de modo ainda mais profundo, e perverso, nas regioes perifericas do mundo. A America Latina, mais especificamente, se viu sob o jugo, nos anos 80 e 90, dos programas de ajustes estruturais do Fundo Monetario Internacional que, orientados pela logica do mercado, prometiam alcancar um ajuste externo, controlar a hiperinflacao e disciplinar o setor publico. Em termos mais concretos, essa primeira fase neoliberal correspondeu a um drastico corte dos gastos publicos com as politicas de bem-estar ja praticamente inexistentes na regiao, a privatizacao de empresas e servicos publicos, e a reducao de investimentos publicos em setores fundamentais, como educacao, producao energetica e infraestrutura. Somadas, essas transformacoes produziram um aprofundamento da desigualdade social ja caracteristica do subcontinente, ampliando o numero de pessoas nas camadas mais empobrecidas da populacao, e concentrando o controle da riqueza e dos recursos produtivos nas maos de poucos.

Os anos 2000 marcaram o inicio de um processo de mudanca. Na verdade, a vitoria esmagadora de Hugo Chavez na Venezuela, em 1998, e considerada o marco inicial de um novo periodo na regiao, conhecido como a "onda rosa" (SPRONK 2008). A partir desse evento inaugural, seguiram-se eleicoes de governos de esquerda e centro-esquerda na Argentina, Brasil, Chile, Uruguai, Bolivia, Equador e, mais recentemente, Nicaragua e Guatemala. Tais governos foram alcados ao poder com plataformas que prometiam reduzir a pobreza e a desigualdade social, bem como reconstruir a capacidade de investimento e intervencao social do estado com vistas a reverter os profundos danos causados por duas decadas de ajuste neoliberal (SPRONK 2008: 174). Suas eleicoes eram vistas, ja no fim da decada de 2000, como uma forte sinalizacao do declinio da hegemonia neoliberal na America Latina.

Contudo, e ainda que correndo o risco de fazermos uma analise apressada, pode-se dizer que varios desses governos fracassaram em promover mudancas estruturais no capitalismo que de fato alterassem a rota rumo a um novo sistema. Alem disso, muitos deles implementaram politicas de desenvolvimento extrativistas que contribuiram para o aprofundamento do complexo de crise--politica, ecologica, social--em que vivemos hoje. Ainda mais preocupante, a regiao passa por um periodo de retrocessos significativos, que colocam em cheque alternativas emancipatorias historicas. Nao apenas os partidos de esquerda e centro-esquerda vem perdendo espaco no ambito da politica institucional, mas discursos e grupos de direita, com pautas explicitamente alinhadas a principios neoliberais, vem ganhando, paulatinamente, mais acesso ao microfone publico, apoio popular e posicoes nas estruturas de poder. Trata-se, assim, de conjunturas complexas que mudam em alta velocidade; transformacoes marcadas pela radicalizacao da exclusao social e erupcao de novas contradicoes culturais, economicas e politicas. E essas se entrelacam com mudancas significativas na acao social, que apresenta novas expressoes espaco-temporais (RIBEIRO, 2005, RIBEIRO et. al., 2001).

Em periodos de crise como o presente, aquela/es comprometida/os com a transformacao social devem buscar apoio em propostas e alternativas criticas, capazes de oferecer, se nao modelos, ao menos elementos que nos permitam vislumbrar um horizonte de saidas emancipatorias. O que nos impoe, nas ciencias sociais, forjar teorias que deem conta de tamanha complexidade, mas que tambem se orientem para a transformacao das realidades diagnosticadas. Isso porque, quando olhamos para os espacos de producao do conhecimento na America Latina e, especialmente, para as universidades, observamos que o 'pensamento unico', como expressao ideologica neoliberal, avancou a passos largos, particularmente na decada de 1990, produzindo um "refluxo do pensamento critico e criativo e de despolitizacao da atividade academica, proporcionado, primeiro, pelas ditaduras militares" (BRINGEL, VERSIANI, s/d: 4). Como consequencia, enfrentamos hoje o tecnicismo, o discurso da eficacia, o produtivismo e os pressupostos (neoliberais) de neutralidade, que achatam quaisquer esforcos no sentido de desvelar alternativas a logica atual.

Em tal contexto, a abertura para novas e velhas propostas epistemologicas e metodos de pesquisa faz-se mister para avancarmos com outras leituras, aprendendo desde a pratica e tambem a partir de outros saberes e visoes de mundo (RIBEIRO 2005). Caminhos vem sendo pensados por distinta/os autora/os para o fortalecimento e a renovacao do pensamento social critico na America Latina. A articulacao entre teoria critica e teoria dos movimentos sociais (BRINGEL, DOMINGUES, s/d) e a aprendizagem das experiencias das sociedades perifericas latino-americanas para a construcao de um pensamento social de maior complexidade (RIBEIRO, 2005) sao algumas das abordagens que parecem convergir no compromisso da conexao entre teoria e pratica e na proposicao de epistemologias criticas que indiquem caminhos etico-politicos e teorico-metodologicos de pesquisa e acao (BRINGEL, VERSIANI, s/d).

Argumentamos que o campo dos feminismos latino-americanos se insere nesse contexto, constituindo um espaco proficuo de producao de alternativas ao complexo de crise que diagnosticamos, alternativas essas que, profundamente criticas ao status quo, buscam sua transformacao. Trata-se de praticas teoricopoliticas que constituem verdadeiros locus de esperanca, pois impulsionam o pensamento social regional ao trazer a tona a complexidade (2) da pratica e necessidade da analise critica. Mas apesar de historicamente aportarem importantes contribuicoes nessa producao e reproducao de conhecimentos, os feminismos permanecem marginalizados no ambito mais amplo do nosso fazer academico (3).

Assumindo uma postura contraria a essa marginalizacao, propomos o mapeamento do pensamento social critico feminista latino-americano a partir de uma reflexao teorico-metodologica sobre caminhos de pesquisa militante (4), desde nosso agir e viver feminista. Militante, pois se orienta por uma etica-politica preocupada em avancar com ferramentas de entendimento e conexao do existente, evidenciando a multiplicidade de sujeitos e vozes insurgentes que conformam verdadeiros territorios de resistencias praticas teorico-politicas (5) feministas latino-americanas. Buscamos assim sugerir dimensoes de mapeamento que nao apenas tornem visiveis as contribuicoes feministas para o avanco e aprofundamento do pensamento critico na regiao, mas que tambem apontem os seus principais aportes teorico-epistemologicos, os seus questionamentos e a sua diversidade constitutiva.

Como indica a feminista Sonia Alvarez (2014: 15), "como e onde 'buscamos' o feminismo 'em movimento', inevitavelmente, informa o que conseguimos enxergar e, consequentemente, flexiona como podemos imagina-lo, teoriza-lo, e portanto, pratica-lo." Isso significa dizer que o modo a partir do qual olhamos para a realidade em grande medida determina o que somos capazes de ver e, consequentemente, limita o que podemos fazer a partir do que foi visto. Dai a importancia de refletirmos sobre os nossos instrumentos de mapeamento. Ancorada naquela reflexao, Alvarez (2014) propoe um argumento teoricoepistemologico sobre a potencialidade de um conceito mais abrangente que o de 'movimento feminista', qual seja o de "campo discursivo de acao feminista". Tal conceito nao apenas da conta do carater diverso, plural, multifacetado e polifonico dos feminismos latino-americanos contemporaneos, como tambem da complexidade social atual, nesta fase de capitalismo neoliberal, em que se observa a multiplicacao de tais campos e suas distintas gramaticas politicas (ALVAREZ 2014: 43).

O conceito de campo surge assim como potente ferramenta metodologica, que pode ainda ser desagregada com vistas a realizacao de pesquisas como a que propomos. Isso porque ele nos permite, a um so tempo, pontuar que (i) as intervencoes do feminismo academico sao apenas um dos locus de producao de conhecimento critico no vasto campo dos feminismos latinoamericanos; (ii) esse locus especifico--a academia--encontra-se em continuo e profundo dialogo com outros polos de producao de pensamento critico feminista na regiao e; (iii) ao situar-se no campo feminista, as academicas e o pensamento social critico por elas produzido intervem, constroi, se relaciona, enfim, habita o 'campo feminista', contribuindo assim para a constituicao e transformacoes do proprio campo, mas tambem ressonando em outros campos movimentistas. Para desenvolver esse argumento, estabelecemos neste artigo um dialogo entre o conceito de "campo discursivo de acao" (ALVAREZ 2014), a proposta de cartografia da acao social (RIBEIRO 2001, 2005) e...

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