Transição democrática e cultura jurídica: reflexões a partir do 'caso araguaia

AutorFauzi Hassan Choukr
Ocupação do AutorPós-Doutor em Democracia e Direitos Humanos pela Universidade de Coimbra; Doutor e Mestre pela Universidade de São Paulo
Páginas129-160
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TRANSIÇÃO DEMOCRÁTICA E
CULTURA JURÍDICA: REFLEXÕES
A PARTIR DO “CASO ARAGUAIA”1
fauzi haSSan choukR2
RESUMO
A revisão da lei da anistia insere-se num contexto mais amplo que,
em seu todo, pode ser denominado de justiça de transição, conjunto
de mecanismos jurídicos e extrajurídicos que busca reconstruir as
bases sustentáveis do Estado de Direito na superação dos períodos
de exceção. Marcada por suas peculiaridades, a anistia brasileira
mereceu o crivo de constitucionalidade pelo Supremo Tribunal Fe-
deral e a censura de inconvecionalidade pela Corte Americana de
Direitos Humanos. Dar ecácia aos mandamentos internacionais
naquilo que rompe com o direito interno agura-se o desao atual
do Estado brasileiro tarefa que, no entanto, pode ser solapada pelas
insuciências da própria capacitação técnica e de uma cultura jurí-
dica adequadas à tarefa.
Palavras-chave: anistia; justiça de transição; formação jurídica
1 O presente texto busca consolidar as principais observações efetuadas pelo Autor quan-
do da palestra proferida no XXII Congresso Nacional do CONPEDI sob o titulo “Memória,
verdade e justiça: anal, qual o conteúdo jurídico desses direitos?”.SP. 2013.
2 Pós-Doutor em Democracia e Direitos Humanos pela Universidade de Coimbra; Dou-
tor e Mestre pela Universidade de São Paulo. Promotor de Justiça no Estado de São Paulo.
E-mail: choukr@gmail.com
Experiências de justiça de transição: aspectos relevantes
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Introdução
A inacabada transição política brasileira vive um momento de explí-
cita colisão entre os compromissos internacionais constitucionalmente as-
sumidos pela Constituição da República de 1988 e a compreensão jurídica
interna dos fundamentos, alcances e limites da denominada “lei da anistia.
Essa tensão se projeta de forma clara nas posturas, de um lado, da
Corte Interamericana de Direitos Humanos (CADH) e, de outro, o Supre-
mo Tribunal Federal (STF) e tendem a tornar excludentes a visão inter-
nacional em relação à interna, com a potencial supremacia desta última
sobre aquela como decorrência, em última análise, da visão tradicional do
conceito de soberania3, aparentemente ainda não arejada pela proteção
internacional dos direitos humanos4.
Esse conito não é um inédito e restrito à experiência transicional
brasileira diferentemente do que uma abordagem estritamente endógena
pode sugerir sendo certo que a experiência comparada e internacional po-
dem auxiliar na ampliação da análise5.
Porém, mais do que um conito meramente normativo deve-se ter
em conta que não basta a inserção da ordem legal brasileira num contex-
to internacional mas, sobretudo, para que ela surja como uma prática no
“direito vivo” é necessária a existência de atores jurídicos nacionais capazes
de compreender esse movimento e que tenham a percepção da democracia
enquanto processo histórico.
3 Para uma ampla visão da superação do conceito tradicional de soberania com a inserção
da proteção dos direitos fundamentais na discussão ver FERRAJOLI, Luigi. A soberania no
mundo moderno: nascimento e crise do Estado nacional. Martins Fontes, 2002 bem como
DELMAS-MARTY, Mireille. Três desaos para um direito mundial. Lumen Juris, 2003.
4 Para uma das primeiras abordagens do assunto no direito interno brasileiro ainda no
context do regime militar ver LEWANDOWSKI, Enrique Ricardo. Proteção dos direitos hu-
manos na ordem interna e internacional. Forense, 1984.
5 Para uma visão pontual do direito argentino sobre a implementação das decisões da
CADH no direito interno daquele país veja-se GONZÁLEZ-SALZBERG, Damián A. A im-
plemetação [sic] das sentenças da Corte Interamericana de Direitos Humanos na Argentina:
uma análise do vaivém jurisprudencial da Corte Suprema de Justiça da Nação. Revista inter-
nacional de direitos humanos: SUR, 2011.
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Transição democrática e cultura jurídica: reexões a partir do “Caso Araguaia”
O texto que segue buscará abordar algumas questões da construção
fático-jurídica do denominado “caso Araguaia” e as respostas iniciais de
direito interno ao quanto foi decidido pela CADH sobre o assunto.
1 A construção da abertura no plano
político-jurídico
A devolução do poder político aos civis caracterizou-se pelo que
se denominou de abertura que, com seu ritmo próprio, no plano jurídi-
co se deu a partir de uma ampla reforma na Lei de Segurança Nacional
Lei nº 6.620, de 17.12.19786, seguida pela Emenda Constitucional nº 11,
de 31.12.1978. A esses diplomas jurídicos, seguiu-se a fundamental Lei de
Anistia, de nº 6.683, aos 28 dias de Agosto de 1979, posteriormente re-
gulamentada pelo Decreto nº 84.143, de 01º de Novembro de 1979, já no
governo Figueiredo.
No plano político, a transição foi operada por meio de um conjunto
de alianças entre governistas, oposição moderada e militares ex-governo, e
fez com que no Brasil ocorresse uma transição pactuada8 com início no
governo G posto que o aumento das ondas de protestos pró-direitos
humanos iniciadas a partir de 19789 forçou-a mesmo contra a vontade de
6 Posteriormente, a Lei de Segurança Nacional editada pelo então Presidente, o General
Geisel, foi substituída por outra, a de nº 7.170, de 14 de Dezembro de 1983.
7 Nestes dois últimos diplomas, em especial, ca bem explícita a clara razão da pergunta
formulada inicialmente no questionário ao qual este relatório se destina a responder, tendo
em vista que a lei citada ofertou uma possibilidade de “mútua anistia, ao contrário dos mi-
litares do Chile e da Argentina, que optaram pela “auto anistia”.
8 A t ransição é um processo complexo cuja compreensão não se exaure em abordagem
única. Tampouco se pode desejar homogeneidade de enfoques diante de fatores como a
própria longevidade do processo em seu aspecto formal (de 1978 a 1988, tomadas como
balizas a lei da anistia e a promulgação da Constituição de 1988) e o tempo já decorrido
entre o regime militar e o presente momento. Assim, fala-se em fases de compreensão da
transição. Neste sentido COUTO, Cláudio Gonçalves. A Longa Constituinte: Reforma do
Estado e Fluidez Institucional no Brasil. Dados [online]. 1998, vol.41, n.1 ISSN 0011-5258.
http://dx.doi.org/10.1590/S0011-52581998000100002.
9 Há, no entanto, quem sustente que “Diferentemente do observado em outros países da
região, no Brasil a anistia aos perseguidos políticos não foi apenas bastante desejada, como
constantemente reivindicada, desde o início da ditadura. Na re alidade, uma verdadeira luta

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