Transplantes de órgãos: a quem cabe decidir o destino do corpo humano para depois da morte?

AutorMaici Barboza dos Santos Colombo
Ocupação do AutorDoutoranda em Direito Civil pela USP. Mestre em Direito Civil e Especialista em Direito Civil Constitucional pela UERJ. Advogada e professora
Páginas317-334
TRANSPLANTES DE ÓRGÃOS:
A QUEM CABE DECIDIR O DESTINO DO
CORPO HUMANO PARA DEPOIS DA MORTE?
Maici Barboza dos Santos Colombo
Doutoranda em Direito Civil pela USP. Mestre em Direito Civil e Especialista em Direito
Civil Constitucional pela UERJ. Advogada e professora.
Sumário: 1. Introdução. 2. Bioética e Biodireito: conceitos distintos, intersecção necessária. 3.
Disciplina normativa dos transplantes de órgãos no Brasil. 4. O consentimento para a doação
de órgãos post mortem. 5. De volta aos doadores presumidos. 5.1 Autodeterminação corpo-
ral e consentimento. 5.2 A posição da família. 5.3 O consentimento de menores de idade e
pessoas com deciência. 6. Conclusão.
1. INTRODUÇÃO
Compreender a quem se deve atribuir o direito de decidir a respeito da doação de
órgãos post mortem passa pela instigante ref‌lexão de Stefano Rodotà: “De quem é o corpo?
Da pessoa interessada, de seus familiares, de um Deus que lhe entregou, de uma natureza
que o quer inviolável, de um poder social que de mil maneiras se apodera dele, de um
médico ou de um juiz que decide o seu destino? E de que corpo estamos falando?”.1
O ordenamento jurídico após a Constituição Federal de 1988 sagrou a dignidade
humana como fundamento da República, o que, aliado aos esforços de efetividade da
carta constitucional, exigiu a conformação das normas infraconstitucionais (e mesmo
as normas constitucionais decorrentes do Poder Constituinte Derivado)2 com essa nova
base axiológica. O conteúdo valorativo da Constituição Federal de 1988 exprime, pois, o
critério de legalidade das normas, conferindo sistematicidade ao ordenamento jurídico
ao garantir-lhe a unidade e coerência.
Diante disso, as possibilidades de se lidar com o corpo humano são renovadas sob
o ponto de vista jurídico à luz da dignidade humana, cujo desaf‌io, para o presente tra-
balho, se resume às diretrizes da preservação dessa dignidade nos atos de disposição do
próprio corpo e, mais especif‌icamente, quanto à doação de órgãos e tecidos post mortem.
1. RODOTÀ, Stefano. La vida y las reglas: entre el derecho y el no derecho. Madrid: Editorial Trotta, 2010. p. 93.
2. O Supremo Tribunal Federal não admite a existência de controle de constitucionalidade das normas constitucio-
nais editadas pelo Poder Constituinte Originário, mas, com relação às normas editadas pelo Poder Constituinte
Derivado, segundo o mesmo Tribunal, é possível o controle. Veja-se, sobre o tema, a Ação Declaratória de Incons-
titucionalidade 466/DF. Na doutrina, o tema pode ser aprofundado na seguinte obra: BACHOF, Otto. Normas
constitucionais inconstitucionais. Coimbra: Almedina, 2014.
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Da inspiração f‌ilosóf‌ico-política da dignidade, notadamente kantiana,3 extrai-se
o seu conceito jurídico a partir do valor intrínseco reconhecido às pessoas humanas.4
Como verdadeira cláusula geral, a dignidade humana exprime-se em subprincípios que
aderem ao seu substrato moral: a igualdade, a integridade psicofísica, a liberdade e a
solidariedade.5
No que tange à doação de órgãos e tecidos humanos, vislumbra-se, inicialmente, a
tensão entre a autonomia existencial do indivíduo para determinar a destinação de seu
corpo ou partes dele e a solidariedade social consistente no salvamento de vidas humanas.
A título exemplif‌icativo, é essa a discussão que se encontra no bojo do Projeto de Lei do
Senado 3.176/2019, que pretende instituir o consentimento presumido para doação de
órgãos, alterando-se a atual regulamentação dada pela Lei Federal 9.434/1997.
A importância social da doação de órgãos e tecidos foi a justif‌icativa basilar do
Projeto de Lei, como consta nas palavras do Autor do Projeto, Senador Major Olímpio:
Acredito que tais medidas possam contribuir para o aumento nos índices de doadores potenciais e
efetivos, reetindo positivamente no número de transplantes de órgãos –o que, consequentemente, re-
presenta a sobrevida de milhares de pessoas que atualmente estão em las de espera por um transplante.
O objetivo do presente artigo é, portanto, analisar a autonomia corporal especif‌i-
camente nos casos de doação de órgãos entre vivos e após a morte, regulamentada pela
Lei Federal 9.434/1997, abordando-se as principais questões bioéticas e biojurídicas
que circundam o tema. Considerando que os limites sobre a interferência na vida
humana são também objeto da bioética, especialmente o estudo do consentimento, o
trabalho se iniciará pela relação entre a bioética e o biodireito, para, em seguida, haver
o aprofundamento sobre o consentimento na doação de órgãos post mortem.
A metodologia adotada é predominantemente teórico-dogmática, a partir da revisão
da literatura especializada e do acesso aos documentos of‌iciais sobre o tema.
2. BIOÉTICA E BIODIREITO: CONCEITOS DISTINTOS, INTERSECÇÃO
NECESSÁRIA
O progresso científ‌ico, sobretudo a partir do século XX, possibilitou a interferência
humana em processos antes considerados sob o domínio exclusivo da natureza.6 Um
3. Sobre o tema: MORAES, Maria Celina Bodin de. Na medida da pessoa humana: Estudos de direito-civil constitu-
cional. Rio de Janeiro: Processo, 2016.
4. Eis o conceito jurídico de dignidade humana proposto por Ingo Sarlet: “a qualidade intrínseca e distintiva reco-
nhecida em cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da
comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa
tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições exis-
tenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e corresponsável nos
destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos”. SARLET, Ingo Wolfgang.
Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição Federal de 1988. 3. ed. Porto Alegre: Livraria
do Advogado, 2004. p. 60.
5. MORAES, Maria Celina Bodin de. Na medida da pessoa humana: Estudos de direito-civil constitucional. Rio de
Janeiro: Processo, 2016.
6. “Em sua concepção alargada passou a designar os problemas éticos gerados pelos avanços nas ciências biológicas
e médicas, problemas esses que atingiram seu auge no momento em que se começou a divulgar de modo amplo,
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