O tratado no Brasil

AutorCarlos Roberto Husek
Ocupação do AutorDesembargador do TRT da 2ª Região Professor da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Membro da Academia Paulista de Direito, Membro da Comunidade de Juristas da Língua Portuguesa
Páginas118-133

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1. Fundamentos gerais

Há necessidade de fixarmos bem quais as dificuldades de um tratado no Brasil, porque, embora negociado e aprovado, sua inserção no Ordenamento Jurídico Nacional não é tranquila.

Dois aspectos podem ser destacados: o da constitucionalidade extrínseca e o da constitucionalidade intrínseca, como ensina Albuquerque Mello89.

Denomina-se constitucionalidade extrínseca a chamada "ratificação imperfeita", isto é, o Poder Executivo ratifica o tratado - envia carta de ratificação - sem tê-lo submetido à aprovação legislativa.

Nesse caso, em se tratando de convenções que "acarretem encargos ou compromissos gravosos ao patrimônio nacional" (art. 49, I, CF), não há cumprimento da norma constitucional.

Três teorias confrontam-se: a) validade do tratado; b) invalidade do tratado; e c) tratado pode ou não ser válido:

  1. validade do tratado - tem por base o Direito Alemão, uma vez que este não exigia a aprovação do Legislativo para todo e qualquer tratado. Embora esta seja uma questão que interessa ao Direito Interno, é fato que a prática interna do Estado pode dificultar futuros acordos internacionais;

  2. invalidade do tratado - para esta teoria, o Direito Interno deve andar a par com o Direito Internacional. Caso a lei interna exija alguma condição, o tratado não se tem por válido, se a exigência não for cumprida. As relações internacionais ficam inseguras, com esse posicionamento;

  3. tratado pode ou não ser válido - trata-se de teoria mista, para a qual a nulidade do tratado só ocorrerá se a violação do Direito Interno for notória e fundamental.

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2. Fundamentos internos

Na verdade, esta última concepção viu-se consagrada internacionalmente com a Convenção de Viena de 1969 (Tratado dos tratados/Código dos tratados), na parte relativa à nulidade dos Tratados (arts. 46 e 47 da Convenção).

O primeiro artigo estabelece que o Estado não poderá invocar o Direito Interno para descumprir o tratado, salvo se tal violação disser respeito a uma regra de Direito Interno de importância fundamental.

O segundo artigo fala da autoridade do representante do Estado para expressar o consentimento deste em um tratado. Caso haja alguma restrição específica no Direito Interno sobre a atuação desse representante e o mesmo omitir sobre a restrição, isso não poderá ser invocado para anular o consentimento expresso; exceção feita se essa restrição tiver sido notificada aos outros Estados negociadores.

O Brasil, pelo art. 49, I, da Constituição Federal, parecia filiar-se à terceira concepção, isto é, a de que o tratado pode ou não ser válido, seguindo, também, a Convenção de Viena.

É fato, no entanto, que os tratados devem, após a negociação e assinatura, passar pelo Congresso Nacional (as duas casas do Congresso), conforme dispositivo constitucional.

O Legislador constituinte, praticamente, afastou a possibilidade de tratados simplificados e não permitiu a ratificação externa sem o cumprimento dessa regra.

A constitucionalidade intrínseca leva em conta não a formalidade do tratado, mas o conteúdo de alguma norma convencional que viole a Lei Maior. A formalidade (passos para a aprovação) é respeitada.

Albuquerque Mello dá notícia de que nos EUA, o tratado limita-se à Constituição; entretanto, a Corte Suprema nunca declarou um Tratado inconstitucional (obra já citada).

Lembra, também, que na Bélgica não cabe aos Tribunais apreciarem a constitucionalidade dos Tratados, o que, de igual modo, ocorre na Holanda. Aliás, neste último país, se três quartos dos Estados Gerais aprovarem o tratado, a Constituição fica modificada.

Tanto a ratificação imperfeita (constitucionalidade extrínseca), como a intrínseca merecem reflexão profunda dos estudiosos.

3. Posição do Brasil

Nossa Constituição, de forma expressa, admite a apreciação do tratado pelo Judiciário e o STF já teve oportunidade de declarar a inconstitucionali-

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dade, por exemplo, de alguns tratados: Convenção n. 158 da Organização Internacional do Trabalho - OIT - (garantia de emprego) e a de n. 110 do mesmo organismo (trabalhadores na fazenda), ambas denunciadas pelo Brasil.

Assim, o Supremo Tribunal Federal poderá declarar o tratado inconstitucional, suspendendo sua vigência interna; todavia, o Tratado continuará em vigor na área internacional, acarretando a responsabilidade do Estado.

O Texto Constitucional não estabelece regras objetivas para eventuais conflitos entre Tratados Internacionais, Leis Internas e Normas Constitucionais.

Mariângela Ariosi afirma que em vários casos o STF optou pelo monismo internacional, privilegiando o tratado sobre o Direito Interno90.

Dentre eles, menciona: União Federal v. Cia. Rádio Internacional do Brasil, quando por unanimidade o STF decidiu que um Tratado revogava as leis internas (Apelação Cível n. 9.587). Há menção de um acórdão de 1914, num pedido de extradição (n. 7, 1913) em que a Corte declarava estar em vigor um tratado, apesar de uma lei posterior a ele contrária. No mesmo sentido, uma Apelação Cível n. 7.872, de 1943.

As decisões da Justiça vão do dualismo ao monismo moderado (vide capítulo I). No RE n. 80.004, em julgamento polêmico que durou de 9.75 a 6.77, o STF passou a admitir a derrogação de um tratado por lei posterior. A questão versava sobre a Convenção de Genebra e as letras de câmbio e notas promissórias. O Decreto-lei posterior exigiu registro da NPE; o tratado, não (Decreto-lei n. 427/69 deu vigência ao Tratado no Brasil).

As disposições constitucionais reforçam o monismo moderado, porque o nosso sistema não repele o Direito Internacional, representado por um Tratado; ao contrário, incentiva-o, mas impõe obstáculos para a sua consecução interna.

A Constituição Federal de 1988 estabelece no seu art. 102:

"Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe: ... III - julgar, mediante recurso extraordinário, as causas decididas em única ou última instância, quando a decisão recorrida: a) contrariar dispositivo desta Constituição; b) declarar inconstitucionalidade de Tratado ou Lei Federal."

Claro que para tal declaração de inconstitucionalidade é necessário confrontar o Tratado Internacional com as Leis Fundamentais; em tese, as que estão na Carta Magna.

Por outro lado, é bom lembrar que a Constituição Federal prevê que o Supremo Tribunal Federal pode no exercício de sua função negar vigência à lei ou a tratado; mas não prevê que o tratado necessite ser incorporado ao Direito Nacional por intermédio de uma espécie normativa interna, embora

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isto sempre ocorra, em virtude do art. 49, I, por meio do Decreto Legislativo e após, com a promulgação e publicidade do tratado.

Tratado é tratado, podemos dizer: tratado não é lei; tratado não é decreto. Tais capas de que se reveste o tratado servem para lhe dar feição interna. O tratado, em si, é um Instituto diverso das demais figuras constitucionais e a Constituição Federal, em última análise, acaba por consagrar a vigência do tratado, independentemente de lei especial.

Os arts. 49, I, 84, VIII, 102, 105, 109, 178, 192 e outros da Constituição falam de tratado, acordo, convenção e não de Lei, Decreto ou o que o valha.

A exigência de aprovação legislativa, que se concretiza pelo Decreto Legislativo e da promulgação presidencial, bem como da publicidade, apenas tornam o tratado conhecido e executável no território.

Por outro lado, no Brasil, nunca houve qualquer dispositivo constitucional acerca da hierarquia entre o tratado e a Norma Constitucional. Somente o art. 102, III, b, da Constituição Federal revela que o tratado está submetido ao controle de constitucionalidade, o que se pode fazer por ação direta de inconstitucionalidade ou a declaratória de constitucionalidade (art. 103 e seu § 4º, CF).

Esse controle, no entanto, faz concluir pela preeminência da Carta Magna sobre a maioria dos tratados (salvo os relativos a Direitos Humanos).

Pensamos que o mundo moderno exige a primazia do Direito Internacional sobre o Direito Interno. É bom observar que estamos falando em Direito, não em força política, em economia ou em ideologia. Os mecanismos para o Estado defender-se dessas invasões não jurídicas podem vir configurados na Ordem Jurídica Nacional, ainda quando se revestirem de normas internacionais. Por esse último motivo, além de outros de ordem interna é que se justifica o controle de constitucionalidade.

Não se olvide que tal controle não é exercido só pelo Judiciário, mas, também, pelo Legislativo e pelo Executivo e até pela opinião pública, pelos meios de comunicação para repelir a norma internacional não desejada.

Em relação às normas infraconstitucionais, embora, em tese, pelo sistema atual a elas poderia o tratado equivaler, uma interpretação sistemática das normas constitucionais, dos tratados e das organizações que o Brasil anuiu e pertence, revelam que se há de dar prevalência ao tratado internacional, modificando nossa opinião, exposta nas edições anteriores. Fraga Mirtô, assim doutrina91.

Arrepia aos defensores da soberania - não o somos menos - dizer que o melhor seria estabelecer a primazia do tratado. Entretanto, não há motivo para que isso não aconteça se obedecermos nossa própria ordem.

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O representante brasileiro, numa reunião de negociações para a feitura de um tratado, não pode ultrapassar a área de sua representação que vem marcada pelo sistema legal do país na Lei Maior.

De qualquer modo, a simples assinatura do representante em um tratado não gera responsabilidade internacional.

Enfim, não correremos nenhum risco se atuarmos com a seriedade desejada, na ordem interna e na...

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