Tratamento jurídico da ortotanásia no Brasil
Autor | Juliane Caroline Pannebecker |
Ocupação do Autor | Mestranda em Direito Civil pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro |
Páginas | 299-315 |
TRATAMENTO JURÍDICO
DA ORTOTANÁSIA NO BRASIL
Juliane Caroline Pannebecker
Mestranda em Direito Civil pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro.
Sumário: 1. Introdução. 2. Ortotanásia: questões relevantes. 2.1 Eutanásia passiva? 3. Debates
a respeito do tema – argumentos contrários e favoráveis à ortotanásia. 4. Tratamento jurídico
no Brasil. 5. Conclusão.
1. INTRODUÇÃO
A morte não se limita ao evento que, por si só, põe fim ao funcionamento mecânico
do corpo, constitui um processo1 complexo entrelaçado às emoções humanas. É um ine-
xorável fim, tão certo quanto indesejado e temido. Culturalmente, o mesmo indivíduo
que ordena sua vida adulta, luta para alcançar suas realizações pessoais e profissionais e se
prepara para os mais variados eventos, tende a ignorar aquele que sabe que um dia chegará.
Há um temor ligado a própria morte, e também à do outro próximo por laços afetivos,
além das mais variadas percepções a seu respeito. Fato é que a morte, ao menos para a
maioria dos povos ocidentais, passou a ser algo socialmente intolerável.2 Essa dificuldade
de abordagem reflete no campo jurídico, e, atrelada a outros fatores, contribui negati-
vamente na tratativa de questões pontuais cuja regulamentação é imperiosa, como é o
caso das diretivas antecipadas de vontade, da eutanásia, ortotanásia, dentre outros temas.
No decorrer deste estudo, pretende-se discorrer a respeito desta última, trazer a
tona algumas noções relevantes, para que se compreenda o que é, de fato, a ortotanásia,
quais seriam os seus limites, o que caracteriza um paciente terminal, o que a diferencia
da eutanásia passiva, para que ao final seja possível compreender o tratamento jurídico
que lhe é conferido hoje no Brasil, analisando a sua suficiência e compatibilidade com
os valores principais do ordenamento.
1. Como bem explica Heloisa Helena Barboza: “Na verdade, a morte, tanto quanto o nascimento, é um processo, uma
sequência de ocorrências, das quais uma é escolhida para caracterizar o termo inicial da produção ou cessação
de efeitos jurídicos”. BARBOZA, Heloisa Helena. Autonomia em face da morte: uma alternativa para a eutanásia?
In: BARBOZA, Heloisa Helena; MENEZES, Rachel Aisengart; PEREIRA, Tânia da Silva. Vida, morte e dignidade
humana. Rio de Janeiro: GZ, 2010. p. 33.
2. Como bem define Alexandre Morais da Rosa: “E os limites da morte sempre são de conteúdo variado (Rui Cunha
Martins), a saber, depende da dimensão individual deste impacto, considerando não só do próprio agente que se
sente arrostado com a morte, como também de seu núcleo familiar e, especialmente, com a projeção “politicamente
correta” de não se deixar morrer. Enfim, o que anteriormente era considerado como algo normal, ou seja, a morte,
passou a ser um encontro intolerável”. ROSA, Alexandre Morais da. As fronteira público-privadas da dor: entre o
direito e a obrigação de viver. In: BARBOZA, Heloisa Helena; MENEZES, Rachel Aisengart; PEREIRA, Tânia da
Silva. Vida, morte e dignidade humana. Rio de Janeiro: GZ, 2010. p. 52.
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JULIANE CAROLINE PANNEBECKER
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As discussões aqui ventiladas merecem ser analisadas à luz da dignidade da pessoa
humana como regra-matriz do texto constitucional que tutela o direito à vida digna e o
direito a uma morte digna.3 A dignidade revela-se, neste contexto, também como valor
jurídico, pois estes direitos compõem o seu substrato material, na medida em que se
entrelaçam à integridade psicofísica e à liberdade.4 Ao mesmo indivíduo, dotado de ca-
pacidade e livre para guiar a sua existência de acordo com os princípios morais, éticos e
religiosos que achar convenientes, deve-se assegurar o direito de pensar e reger a própria
morte conforme a noção de dignidade que melhor refleti-los.
Para alguns, pode parecer normal imaginar o fim da vida em um leito de UTI assistido
por inúmeros profissionais, submetido às mais diversas terapias destinadas a postergar
o falecimento, ainda que iminente e inevitável, impulsionados pela esperança na sobre-
vivência, pela crença no milagre da vida, pela aversão à derrotabilidade da morte, pela
confiança depositada na medicina. Para outros, entretanto, pode parecer humilhante,
nocivo ou cruel a submissão no fim da vida a um aparato tecnológico incapaz de curar.
A conservação artificial da vida pode significar a propagação do sofrimento – tanto do
doente quanto da família – sustentando-se uma invencibilidade de certa forma arrogante,
diante da natureza finita de todos os seres.
As abordagens aqui propostas sobre vida e morte, portanto, não se baseiam em uma
ou outra acepção, diante da pluralidade de significados que ambas podem adquirir, não
havendo um unívoco ou universal. Além disso, como bem ilustrado por Ronald Dworkin
em importante estudo para a presente temática, pensar na morte exige que ao mesmo
tempo se reflita sobre a vida.5
Neste raciocínio, o conteúdo da dignidade humana nem sempre pode ser universa-
lizado, sob pena de transgressão às liberdades individuais, especialmente à autonomia do
indivíduo. O reconhecimento de seu caráter polissêmico e multifuncional6 se compati-
biliza com o respeito à liberdade de ser, de viver e de morrer, com a possibilidade de que
3. SCHREIBER, Anderson. Direitos da Personalidade. São Paulo: Atlas, 2014. p. 60.
4. Maria Celina Bodin de Moraes, ao tratar da definição jurídica da dignidade humana, aponta que o seu substrato
material pode ser desdobrado em quatro postulados: “i) o sujeito moral (ético) reconhece a existência dos outros
como sujeitos iguais a ele; ii) merecedores do mesmo respeito à integridade psicofísica de que é titular; iii) é do-
tado de vontade livre, de autodeterminação; iv) é parte do grupo social, em relação ao qual tem a garantia de não
vir a ser marginalizado. São corolários desta elaboração os princípios jurídicos da igualdade, da integridade física
e moral – psicofísica –, da liberdade e da solidariedade”. MORAES, Maria Celina Bodin de. Na medida da pessoa
humana: estudos de direito civil-constitucional. Rio de Janeiro: Processo, 2016. p. 85.
5. Para o presente estudo, importantes as reflexões do autor “A morte domina porque não é apenas o começo do nada,
mas o fim de tudo, e o modo como pensamos e falamos sobre a morte – a ênfase que colocamos no ‘morrer com
dignidade’ – mostra como é importante que a vida termine apropriadamente, que a morte seja um reflexo do modo
como desejamos ter vivido. Não podemos compreender o que a morte significa para as pessoas (...) enquanto não
a pusermos de lado por um momento e nos voltarmos para a vida”. DWORKIN, Ronald. Domínio da vida: aborto,
eutanásia e liberdades individuais. São Paulo: Martins Fontes, 2009. p. 280-281.
6. Como descreve Daniel Sarmento: “O princípio da dignidade da pessoa humana tem múltiplas funções na ordem
jurídica brasileira, o que é natural, haja vista a sua importância capital e o seu vastíssimo âmbito de incidência. Focarei
aqui as que me parecem mais relevantes: fator de legitimação do Estado e do Direito, norte para a hermenêutica
jurídica, diretriz para ponderação de interesses colidentes, fator de limitação de direitos fundamentais, parâmetro
para o controle de validade de atos estatais e particulares, critério para identificação de direitos fundamentais e
fonte de direitos não enumerados”. SARMENTO, Daniel. Dignidade da pessoa humana: conteúdo, trajetórias e
metodologia. Belo Horizonte: Fórum, 2016. p. 77.
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