Como os tribunais brasileiros têm tratado as atitudes discriminatórias, sob as lentes da responsabilidade civil?

AutorNelson Rosenvald e Felipe Peixoto Braga Netto
Ocupação do AutorPós-Doutor em Direito Civil pela Universidade Roma-Tre-IT/Pós-Doutor em Direito Civil pela Universidade de Bologna (Alma Mater Studiorium)
Páginas323-348
COMO OS TRIBUNAIS BRASILEIROS TÊM
TRATADO AS ATITUDES DISCRIMINATÓRIAS,
SOB AS LENTES DA RESPONSABILIDADE CIVIL?
Nelson Rosenvald
Pós-Doutor em Direito Civil pela Universidade Roma-Tre-IT. Pós-Doutor em Direito
Societário pela Universidade de Coimbra. Doutor e Mestre em Direito Civil pela
PUC/SP. Procurador de Justiça do Ministério Público de Minas Gerais. Professor do
Doutorado e Mestrado do IDP-DF.
Felipe Peixoto Braga Netto
Pós-Doutor em Direito Civil pela Universidade de Bologna (Alma Mater Studiorium).
Doutor em Teoria do Estado e Direito Constitucional pela PUC-RJ; Mestre em Direito
Civil pela Universidade de Pernambuco; Procurador da República em Minas Gerais;
Professor da Escola Superior do Ministério Público da União – ESMPU.
Sumário: 1. Introdução. 2. As múltiplas facetas discriminatórias. 2.1 Discriminações em
virtude do sexo. 2.2 Discriminações em virtude da cor da pele. 2.3 Discriminações em
virtude de orientações sexuais e identidade de gênero. 2.4 Discriminações em virtude da
origem geográca. 2.5 Discriminações em virtude de opções religiosas. 2.6 Discriminações
em virtude de condições físicas, idade etc. 3. Liberdade para quê? Um progressivo amparo
jurídico-constitucional dos aspectos existenciais da vida humana. 4. Conclusão: Em defesa
do pluralismo: o espaço jurídico da valorização da diferença. 5. Referências.
“Numa sociedade discriminatória como a que vivemos,
a mulher é diferente, o negro é diferente, o homossexual é o diferente,
o transexual é diferente. Diferente de quem traçou o modelo,
porque tinha poder para ser o espelho e não o retratado”
(Ministra Cármen Lúcia – STF/2019- ADO/26).
1. INTRODUÇÃO
Não parece necessário muito esforço argumentativo para evidenciar a clara repulsa
de nossa Constituição às atitudes discriminatórias. Sejam expressas através de ações
(como mais frequentemente ocorre) ou de omissões, não importa. A Constituição da
República, cujo fundamento, entre outros, é a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III),
repudia quaisquer condutas que trilhem a estrada do menosprezo à pessoa humana, sua
redução a tipos com propósitos ultrajantes ou isolacionistas.
Nossa Constituição tem como objetivos fundamentais construir uma sociedade
livre, justa e solidária (CF, art. 3º, I), garantir o desenvolvimento nacional (CF, art. 3º, II),
erradicar a pobreza, a marginalização, e reduzir as desigualdades sociais e regionais (CF,
art. 3º, III), promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade
e quaisquer outras formas de discriminação (CF, art. 3º, IV). Desigualar pessoas, à luz
EBOOK DIREITO GENERO E VULNERABILIDADE_2ed.indb 323EBOOK DIREITO GENERO E VULNERABILIDADE_2ed.indb 323 07/03/2021 11:15:5707/03/2021 11:15:57
NELSON ROSENVALD E FELIPE PEIXOTO BRAGA NETTO
324
da nossa Constituição, será sempre arbitrário e constitucionalmente vedado, a menos
que a desequiparação busque, aí sim, reequilibrar situações de substancial desajuste. A
diversidade de ideias, de religiões, de opções sexuais, de modos de vida, é bem-vinda e
deve ser protegida e incentivada. Veremos, mais adiante, em situações e normas especí-
f‌icas, essa clara opção constitucional.
A Internet – com a pluralidade e a liberdade de expressão que a caracteriza (e o fácil
anonimato, reconheça-se) – é território fértil para atitudes criminosas ou civilmente da-
nosas. Proliferam comunidades que pregam a violência contra minorias e a discriminação
sexual e racial. As páginas de conteúdo homofóbico e racista aproveitam a ausência de
f‌iscalização prévia dos seus conteúdos e a difícil (mas não impossível) persecução penal
em relação a tais crimes.
Naturalmente, além das consequências civis, tais condutas perfazem ilícitos penais.
Nesta obra, como o leitor pode intuir, as dimensões criminais do fenômeno não serão
estudadas. Interessa-nos, sim, indagar em que medida poderemos ter danos indenizá-
veis nessas odiosas situações. O direito civil do século XXI prestigia, concretamente, as
liberdades fundamentais, e cabe ao Estado não só respeitá-las, como agir – concreta e
efetivamente – para que os demais particulares também as respeitem.
A literatura jurídica hoje amplamente percebe que os direitos fundamentais são
reconhecidos a toda e qualquer pessoa, pelo só fato de ser pessoa.1 Somos iguais em
dignidade, essa é a premissa normativa da ordem jurídico-constitucional. Porém, o fato
de sermos iguais em dignidade não apaga nossas diferenças, pelo contrário. A dignidade
humana é vetor normativo que reconhece e consagra o direito à diferença. O pluralismo
não é só um fato que deve ser constatado, mas é algo que merece ser celebrado e valori-
zado. Nossa Constituição Federal alberga e promove o pluralismo. Anote-se, aliás, que
a herança cultural que o direito atual deixará às futuras gerações, além de um crescente
diálogo ético, será o respeito ao pluralismo. Em outras palavras, a ordem jurídica brasileira
reconhece na diversidade um valor a ser protegido e resguardado de lesões ou ameaças de
lesões. Estamos tentando construir, no século XXI, um direito que seja amigo da diferença.
2. AS MÚLTIPLAS FACETAS DISCRIMINATÓRIAS
2.1 Discriminações em virtude do sexo
Não poderíamos impunemente af‌irmar que inexistem, entre nós, discriminações
contra a mulher. Talvez, porém, possamos nos alegrar por constatar que se ainda estamos
longe de uma situação ideal, já caminhamos – social e normativamente –, na matéria,
em relação ao passado. A mulher, progressivamente ocupando espaço social, conseguiu
1. Habermas aponta que “após duzentos anos de história constitucional moderna, nós temos uma maior compreen-
são sobre o que distinguiu esse desenvolvimento desde o princípio: a dignidade humana forma o ‘portal’ através
do qual a substância igualitária e universalista da moralidade é importada para o direito”. Continua: “A ideia de
dignidade humana é o eixo conceitual que conecta a moral do igual respeito por cada um ao direito positivo e ao
processo legislativo democrático, de tal modo que essa interação, sob circunstâncias históricas favoráveis, pôde
se originar de uma ordem política fundada nos direitos humanos.” (HABERMAS, s.d., p. 8).
EBOOK DIREITO GENERO E VULNERABILIDADE_2ed.indb 324EBOOK DIREITO GENERO E VULNERABILIDADE_2ed.indb 324 07/03/2021 11:15:5707/03/2021 11:15:57

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT